Antes de tudo

Quando vi “Antes do Amanhecer” pela primeira vez, ele não me disse muito. Um filme dos anos 90 (visto no início dos anos 2000), uma história de amor entre jovens bonitos, um final convenientemente aberto que é construído pelas experiências de cada espectador. Talvez aqueles dias não fossem os melhores para assisti-lo, não sei; o fato é que o filme me pareceu outro road movie romântico pós-adolescente como tantos outros — “Garota Sinal Verde” com mais estofo, quem sabe?

Assisti à sua sequência, “Antes do Entardecer”, alguns anos depois. Fora a beleza ensolarada de Paris, que sempre vejo como quem olha foto da amada distante, o que vi a princípio me pareceu apenas uma sequência feita para aproveitar a posição cult do filme original e resolver o que tinha sido deixado em aberto. O filme passou batido, como uns tantos mais em 2004.

Confessar isso agora talvez seja a pior confissão que se pode fazer, a confissão inequívoca de incompetência e insensibilidade absolutas, a confissão de que não, você não sabe nada, não consegue ver nada, ver de verdade. Ou talvez filmes assim precisem ser vistos em épocas específicas de sua vida, porque nas outras você é apenas o mesmo velho cínico de sempre. Não sei. Sei apenas que mais uma vez gostei do filme como gostaria de alguns outros por aí. Bons filmes; mas apenas bons.

No final do ano passado, com o lançamento do terceiro filme dessa trilogia, “Antes da Meia-Noite”, resolvi rever antes os dois primeiros filmes, já esquecidos.

Não sei se é triste, ou um alento, perceber finalmente que estive diante de uma obra prima, do que é provavelmente a mais consistente trilogia de todos os tempos, e do que certamente é a série cinematográfica mais significativa da minha época.

Before Sunrise: VienaAntes do Amanhecer”é uma daquelas pequenas joias que o cinema apresenta ao mundo de vez em quando. Um daqueles filmes de simplicidade estonteante e enganadora, que escondem uma qualidade rara: a de conseguir encapsular em celuloide a experiência e os anseios de uma época. Nesse sentido, ele talvez seja o “grande romance americano” dos anos 90. Em sua delicadeza, em sua leveza ao tratar do momento exato do nascimento do amor, “Antes do Amanhecer” é daquelas obras que conseguem dissecar com lirismo e poesia a emoção de ser muito jovem e estar vivo.

“Antes do Amanhecer” fala ao espectador de uma forma que poucos outros filmes românticos podem falar. O final em aberto pode dizer muito sobre quem você é: um romântico, se acha que seis meses depois eles se reencontraram na estação de trem em Viena; ou um cínico, se acredita que em 60 dias Jesse e Celine se tornaram lembranças agradáveis em uma vida agitada e ocupada por novos amores, fugazes ou não. Mas não é isso que faz o filme. É a capacidade de, num cenário improvável, capturar em algumas horas de caminhada a essência de estar vivo e de ser jovem em 1994. É nos diálogos entre Jesse e Celine que uma geração inteira pode se encontrar no que tem de mais precioso: seus sonhos, seus anseios. E, principalmente, é na maneira como compartilham tudo isso que o filme atinge o status de crônica de seu tempo.

Fico pensando que, se tivesse visto esse filme em 1985, talvez ele fosse o meu guia para o resto da vida; talvez fizesse dele o modelo pelo qual mediria todos os relacionamentos futuros, e as moças que eu viesse a querer tivessem que ser como a Julie Delpy, moças de beleza simples mas inequívoca lendo um livro mais highbrow que o meu, talvez neuróticas e complexas demais; e talvez bundas e peitos e pelos e remelexos fossem menos importantes do que foram. (Não, isso é demais, a quem eu quero enganar, e pensando direitinho que bom que a vida me deu meu justo quinhão, que ela sabe o que dar e a quem dar.)

Já em “Amanhecer” fica claro de qual geração estamos falando: os filhos dos anos 60, uma geração que, nas palavras de Celine, já não se sentia no direito de reclamar de um mundo condescendente e de fartura, e sente o vazio resultante disso. Por essa razão, além da sua própria história de amor, do encontro entre Jesse e Celine, esse é também um filme que tenta definir a tal geração Y. E é o início de uma série sobre o que nos define como seres humanos, seres sociais: relacionamentos. “Você conhece alguém que esteja em um relacionamento feliz?”, pergunta Celine no primeiro filme. Esse é o Graal procurado pela série: a felicidade específica que só se pode alcançar com outra pessoa. E assim “Amanhecer” delineia as perguntas que os filmes seguintes tentarão responder.

Antes do Entardecer“, realizado 9 anos depois, pode ser visto apenas como o elo necessário e fundamental para a resolução do primeiro filme, e foi assim que o vi por anos. Mas ele é mais que isso, muito mais. São os personagens de Delpy e Hawke, 9 anos mais velhos, com as cicatrizes que a vida lhes deu — a ele um filho querido e um casamento sem amor, a ela uma sucessão indistinta de relacionamentos insuficientes —, que conseguem retratar com fidelidade assustadora os dilemas e, novamente, os anseios dessa geração, agora mais velha, agora na casa dos 30, com pelo menos 10 anos de consciência de que as desculpas morreram de cansaço, anos em que a realidade se instalou com rudeza e sem-cerimônia na vida de cada um, colocando suas personas de 9 anos atrás em perspectiva nem sempre galante.

“Antes do Entardecer” é o filme que dá significado e grandeza à série, e desse ponto de vista é talvez o mais importante dos três. Ele coloca as coisas em outro patamar. É o filme que explica o que estávamos vendo e descortina diante de nós um panorama talvez inimaginado.

Aos 23 anos, em “Amanhecer”, Celine e Jesse ainda são meninos ingênuos, que acreditam num paradoxo interessante, mas que nunca mais se repetirá. Naquele momento eles acreditam que o amor será forte o bastante para fazê-los reencontrar-se seis meses depois; mas se não for, tudo bem: eles têm todo o tempo do mundo pela frente, e a vida é boa e embora eles até admitam que ela não será sempre como naquela noite de verão em Viena, têm a certeza de que jamais será um inverno sombrio e sem fim.

Mas agora, já na casa dos 30, eles compreendem melhor isso a que chamam vida. Agora sabem o que perderam quando não se reencontraram em Viena. E por isso, por essa consciência, seus personagens conseguem alcançar uma universalidade rara no cinema. Eles conseguem dar voz real — sem afetações e sem simplismos — a toda uma geração. O que parecia ser uma sequência é mais que isso: é o reinício de algo muito maior.

Uma fala de Julie Delpy, num passeio de bateau mouche, talvez resuma a razão de ser dessa sequência e de toda a trilogia, e acaba fazendo do segundo filme muito mais do que um simples elo de ligação: “Acho que, quando você é jovem, simplesmente acredita que vai encontrar muitas pessoas com as quais se conectará; e mais tarde na vida você percebe que isso só acontece umas poucas vezes.” Essa é a razão de ser desses filmes; e o mais importante, essa é a percepção a que as pessoas chegam aí pelos 30 e poucos anos.

As conclusões a que “Antes do Entardecer” chega — especificamente essa conclusão a que Celine chegou — seriam impossíveis em “Antes do Amanhecer”. Ao mesmo tempo, é ela que explica a grandeza do primeiro. Porque essa é a verdade que jaz subjacente ali. Foi essa conexão, que agora Celine descobre tão rara, que vimos no primeiro filme; foi ela que fez dele uma pequena obra-prima; foi por causa dela que nos apaixonamos pela fita e por aqueles personagens.

É “Antes da Meia-Noite”, no entanto, que oferece as maiores surpresas, e que reafirma a trilogia como uma das grandes da história.

Trilogias parecem ter se tornado o eixo do cinema americano. Qualquer pretenso blockbuster é feito tendo em vista a possibilidade de, no mínimo, uma sequência. Terceiros filmes no entanto costumam ser uma decepção. Apenas citando alguns exemplos recentes, “Homem Aranha 3” e The Dark Knight Rises destruíram séries bem sucedidas.

Mas talvez por ter sido concebida de maneira extremamente orgânica, talvez por ser o resultado de uma evolução natural e não o produto de uma reunião de diretoria, talvez porque seus idealizadores ambicionaram fazer mais do que um mero filme, talvez porque tem em si qualidades que se veem mais facilmente na literatura, esta trilogia muda esse padrão.

Até agora, o que vínhamos vendo era um bom filme e uma sequência que o explica e o engrandece. “Antes da Meia-Noite”, no entanto, muda o jogo. Até agora, o amor se comportava dentro das regras do cinema tradicional. “Antes da Meia Noite” subverte tudo isso e mostra uma faceta menos bela: o amor como parte da experiência humana muito mais rica e complexa do que se costuma ver no cinema (e, para todos os efeitos, nas redes sociais). Mesquinho, pequeno, rancoroso, baixo. “Antes da Meia Noite” leva o amor à vida real, e ele parece talvez um pouco menos belo do que pode parecer, menos belo do que parecia em “Antes do Amanhecer”.

É a cena da discussão no quarto de hotel — um presente de mau gosto e intrusivo dado por seus amigos gregos, mas curiosamente comum no cotidiano dos casais — que faz de “Antes da Meia-Noite” um dos melhores filmes de 2013, e coroa a série como talvez a melhor trilogia de todos os tempos. Da esperança e liberdade de dois pós-adolescentes ingênuos e crédulos de 1994 aos adultos cansados, falhos, às voltas com uma série de compromissos existenciais e frustrações 18 anos depois, a série de Linklater, Delpy e Hawke se consolida, aqui, como a grande crônica da sua geração — que calha de ser a minha.

Talvez o personagem de Hawke seja bonzinho demais, conciliador demais, sensato demais, apaixonado demais. O fato é que o que se vê ali é, com infelizmente poucas variações, o que milhões de casais vivem no seu cotidiano: as dificuldades do casamento, o conflito doloroso entre o sonho e a realidade. A luta diária para fazer um casamento dar certo apesar de tudo — da rotina, do outro, dos outros, dos milhões de pequenas coisas que fazem as pessoas quererem se afastar daquelas a quem amaram ou amam, das pequenices que fazem a maior parte das vidas de todos.

Não há outro filme, ou série de filmes, que aborde o amor da forma como a série “Antes” aborda. Do romance idealizado do primeiro filme à mesquinhez e às mágoas acumuladas do terceiro, o que vemos é a crônica crescentemente desiludida do amor.

Mas não descrente.

E essa é a grande diferença, é o que talvez dê a “Antes” sua grandeza única. Da esperança juvenil do primeiro, passando pela alegria agridoce do reencontro no segundo — de Jesse e Celine, sim, mas também deles consigo mesmos —, e chegando à raiva mal contida e à melancolia frustrada do terceiro filme, cada um deles é uma reafirmação da validade do amor, das razões pelas quais se deve seguir em frente, os motivos pelos quais devemos nos entregar, uma reafirmação da ideia de que as pessoas se realizam ao se dar ao outro. Talvez a grande beleza de “Antes”, na maneira como se construiu ao longo dos últimos quase 20 anos, seja a percepção de que o amor, como a vida, é paradoxal e contraditório — ou, mais que isso, que é só assim, no paradoxo e na contradição, que ambos podem se realizar completamente.

Talvez o mais doloroso seja perceber que Julie Delpy, em “Antes do Amanhecer”, é a mulher com que eu sonhava aos 17 anos. Em “Antes da Meia Noite”, é as mulheres que tive — e isso é assustador, porque quando você percebe que sempre teve o que quis a vida toma novos sentidos. Mas ao mesmo tempo indica a verdade que jaz no cerne desses filmes, aquela verdade universal, que se aplica a tantas pessoas e suas histórias únicas e particulares.

Sim, é possível que  “Antes da Meia-Noite” não seja o melhor filme de 2013. Mas ele faz dessa trilogia que encerra — pelo menos durante os próximos 8 anos — a melhor de todos os tempos, a mais significativa. “Antes do Amanhecer”, “Antes do Entardecer” e “Antes da Meia-Noite” legam à humanidade um retrato acurado e sensível do amor neste fin-de-siècle, um retrato fiel e pungente, e é isso que faz deles bom cinema e, acima de tudo, filmes necessários.