Alvíssaras balzaqueanas

Vi na livraria que a Editora Globo está relançando “A Comédia Humana” de Balzac. Terceira edição, agora.

Portanto, antes de mais nada, se você não a tem vá correndo comprar. São 17 volumes. Compre. O preço é meio salgado, mas vale cada tostão que você der nesses livros. Se não puder comprar todos, compre ao menos o volume IV (que tem “O Pai Goriot” e uma belíssima seleção de contos) e o VII (que traz “Ilusões Perdidas”).

“A Comédia Humana” é uma daquelas obras que todo mundo deveria ler, assim como “Dom Quixote”, “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázov”, “Ana Karênina”, “Em Busca do Tempo Perdido”, umas quatro peças de Shakespeare e o “Dom Casmurro”. Compre. Leia. Você não vai se arrepender.

Acho que quase tudo o que eu podia dizer de Balzac já disse aqui, anos atrás. E desde aquela época eu já implorava a quem quisesse ouvir pela reedição dessa obra magnífica.

No entanto, essa é de todas a pior. O design da capa é modernoso mas não diz nada; o papel mais vagabundo faz com que o volume seja mais grosso — o texto em tipos e espaçamentos maiores, no entanto, facilitam a leitura e são uma qualidade; além disso, a decisão óbvia de colocar o “Prefácio” de Balzac no primeiro volume é uma correção a uma grande bobagem na edição anterior. Comparada à segunda edição, com sua capa em courino e sobrecapa razoavelmente elegante, contida, a nova edição não é verdadeiramente moderna nem é bonita. É mais pobre, na verdade, como uma velha maquiada para parecer mais jovem mas que acaba sendo apenas patética.

Mas é “A Comédia Humana” de volta às livrarias, afinal. A capa, o papel, tudo isso deixa de importar assim eu você passa pelas primeiras quatro, cinco páginas de cada romance de Balzac.

O mais curioso é que, por uma razão que tentam justificar numa nova introdução à obra mas que continuo achando inexplicável, não corrigiram aquele que é, na minha opinião, o único equívoco nas traduções supervisionadas pelo Paulo Rónai: o aportuguesamento de nomes próprios, que nos obriga a conviver com Luciano de Rubempré e Eugênio de Rastignac, por exemplo. A esta altura da história humana, em que a globalização faz com que idiomas sejam irremediavelmente permeados por elementos estrangeiros e a internet contribui para a formação de uma babel eletrônica, é inacreditável nós ainda tenhamos que conviver com essa mania portuguesa. Esta edição perdeu a chance de corrigir esse erro. Mas isso não é grave.

Grave é perder a chance de mergulhar em Balzac.

Um cinema em cada cidade

O texto abaixo é um e-mail enviado por mim para uma amiga há algum tempo, que tinha me mandado um e-mail descendo a lenha em mim por causa desse post. Lembrei dele e, embora já não saiba a quantas anda esse projeto de cinemas em cidades com 100 mil habitantes, continua sendo o meu ponto de vista.

Acho que você saiu do ponto principal — a garantia de acesso do povo a cultura, e mesmo à produção cinematográfica — para apenas repetir um discurso velho, que confunde o meio e a mensagem.

Pior, desconsiderou a discussão sobre o que realmente importa. Partiu apenas para a defesa e repetição do projeto e seu discurso, esquecendo, inclusive, que o ponto aqui não é negar o acesso do povo à informação cultural; é ver se há formas mais eficientes de realizar esse direito.

Em primeiro lugar, os dados que você cita são pouquíssimos e limitados, e não justificam sua urgência para que eu pesquise por aí. Você podia citar um mais interessante: sabe quantos cinemas existem na Índia? 12 mil, o que dá uma relação per capita ainda menor que a do Brasil. No entanto, no mesmo 2009 em que o Brasil produziu 75 filmes, a Índia produziu 1288 longas, de um total de algo menos de 3 mil peças em celuloide. Os dados que você cita tampouco mencionam que os pouco menos de 6 mil cinemas (e cerca de 40 mil telas) existentes nos EUA em 2001 (número que começou a decair depois do boom dos multiplexes nos anos 90) são um número proporcionalmente muito menor do que o que havia em 1930, quando 65% dos americanos iam ao cinema semanalmente. Hoje são apenas 9,7%.

Esses números, que são a realidade que elitistas como eu deveriam conhecer, deveriam servir para ao menos fazer vocês questionarem essa obsessão pervertida por salas de cinema. Quanto ao resto da sua argumentação, é apenas justificativa de uma ideia. É algo válido, mas apenas a partir do momento em que se concorda com sua premissa. E eu não concordo.

Dados jogados assim, sem levar em conta o seu contexto, funcionam como palavra de ordem. Mas não se sustentam com tanta graça sozinhas porque desconsideram a realidade em redor e a evolução histórica. O mesmo texto da Ancine de onde você tirou a palavra de ordem de que “O Brasil é o 60º país na relação salas de cinema/habitantes” lembra que o número de salas no país duplicou com os multiplexes (processo que, aliás, se repetiu no mundo inteiro); aí lembra que 80% das salas de exibição ficavam no interior (dado insuficiente porque não distingue o interior desenvolvido de São Paulo, como Santo André ou Osasco, de cusdemundo como Cabrobó, Cumbe ou Uauá).

Ainda o texto da Ancine:

O Brasil já teve um parque exibidor vigoroso e descentralizado: quase 3.300 salas em 1975, uma para cada 30.000 habitantes, 80% em cidades do interior. Desde então, o país mudou. Quase cento e vinte milhões de pessoas a mais passaram a viver nas cidades. A urbanização acelerada, a falta de investimentos em infraestrutura urbana, a baixa capitalização das empresas exibidoras, as mudanças tecnológicas, entre outros fatores, alteraram a geografia do cinema. Em 1997, chegamos a pouco mais de 1.000 salas.

A impressão que tenho ao ver esse parágrafo é a de que, mesmo quando os dados estão na sua frente, você pode escolher não vê-los. É óbvio que se as salas de cinema foram desaparecendo havia uma razão muito objetiva. Isso está claro nesse texto. Mas essa simples recapitulação cronológica não diz o mais importante: que o elemento mais importante nessa transformação foi a TV.

A TV acabou com muitas das funções dos cinemas. Extinguiu os cinejornais. Garantiu dramaturgia gratuita com mais conforto para milhões de pessoas. Foi por isso que primeiro os cinemas de bairro e depois os dos centros das cidades fecharam: não podiam mais atrair público suficiente, porque já não eram a única forma de ver um filme. Durante muito tempo eles ainda se sustentaram com filmes B e pornôs; depois nem isso, porque o videocassete destruiu a pornografia cinematográfica. (Na verdade, a consolidação da TV mudou o próprio cinema em ciclos constantes, a partir dos anos 50, mas essa é outra discussão.)

Aí está o problema. O culto à sala da exibição é anacrônico e elitista, mais elitista do que você me julga — é um conceito antigo, que parte da visão edulcorada de que ir ao cinema é algo que todo mundo quer.

E não é. O que as pessoas querem é ver filmes.

É aí que deve entrar o Estado: garantindo que as pessoas tenham acesso ao cinema nacional, seja onde for, seja como for. Por isso o anacronismo dessa discussão: nego confunde o meio com a mensagem, em detrimento desta última. Ao propor levar um cinema para cada cidade de algum porte, o Estado tenta recriar artificialmente uma situação que a evolução cultural e econômica tornou insustentável e que, pior, desconsidera todo o avanço tecnológico dos últimos 60 anos. Quer algo mais anacrônico que isso?

Entendo até que se tente preservar cinemas antigos, como o Odeon (e como deveriam fazer com o São Luiz de Fortaleza, que da última vez que vi estava fechado e já foi um dos cinemas mais luxuosos do Brasil, joia da coroa de Severiano Ribeiro, e o Jandaia em Salvador, o mais belo de todos, monumento perfeito aos barões do cacau). Trata-se, neste caso, de preservar ao menos um desses lieux de mémoires que as cidades vêm perdendo. Mas criar cinema no século XXI onde não existe nenhum é uma grande bobagem.

O que vocês estão fazendo tem pontos de contato com a tentativa desesperada das gravadoras de garantir o seu mercado, embora seus objetivos e motivações sejam diferentes. Sala de cinema, como CD, é simplesmente meio de distribuição. Fez sentido quando era a única forma de assistir a um filme qualquer; hoje, não deveria ser o que importa para quem produz nem é o que o público acha fundamental. E por isso é preciso levar em consideração os novos meios de distribuição.

A questão é: vocês querem que o povo veja filmes brasileiros ou vá ao cinema ver filmes brasileiros? Porque apesar do que vocês parecem achar, isso não é a mesma coisa. Vocês parecem partir do princípio de que salas de cinema cumprem uma função cultural e socialmente efetiva e insubstituível. E isso já não é verdade no Brasil desde 18 de setembro de 1950.

Acho também que não custa olhar em volta, entender a realidade como ela se apresenta. Os cinemas desapareceram, ponto, leve uma guirlanda de flores para eles. E no caminho veja que um mercado imenso de DVDs piratas floresce assustadoramente; é cada vez mais difícil passar por uma calçada onde eles não estejam expostos, ir a algum bar onde um vendedor não os tente vender a você. Os seja: em vez de se manter no passado cor-de-rosa (bem, como é cinema deve ser sépia, né? Aquele amarelado de “O Pecado de Todos Nós” cairia bem) do MiNC, as pessoas evoluíram, mudaram a sua forma de consumir cinema.

Na boa? Se com esse dinheiro que se pretende gastar para construir, manter e garantir programação nesses cinemas o Estado simplesmente gravasse DVDs e os distribuísse de graça, vocês conseguiriam muito mais, e ampliariam ainda mais o mercado para esse pessoal que vive de audiovisual. Eu pessoalmente duvido que esse povo que você invoca para me chamar de elitista aturasse metade dos filmes que você reclama que não chegaram às salas de exibição; mas novamente, não é essa a discussão (me desculpe, mas quando vejo alguém falando nesse “resto da cinematografia do mundo que nunca chegará a essa mesma parcela que tem seu dvd e compra o pirata” eu invoco São Stanislau, porque pressupõe um interesse que, sinceramente, não existe).

De qualquer forma, esse é só um aspecto menor dessa discussão. Acho também que o MinC faria mais pelo segmento do audiovisual, que é o que está em discussão aqui, se apoiasse mais eficientemente as TVs públicas. Você melhor do que ninguém sabe disso. Ofereça motivos para que o povo em geral assista à TV pública, tirando-a do traço em audiência, que vai prestar um serviço muito melhor à sociedade.

E tem também as diretrizes da Ancine que você mandou para mim:

DIRETRIZ (1): Ampliar a oferta de serviços de exibição e facilitar o acesso da população ao cinema
DIRETRIZ (2): Desenvolver e qualificar os serviços de TV por assinatura e ampliar a participação das programadoras nacionais e do conteúdo brasileiro nesse segmento de mercado
DIRETRIZ (3): Fortalecer as empresas distribuidoras brasileiras e a distribuição de filmes brasileiros
DIRETRIZ (4): Dinamizar e diversificar a produção independente em todo o país, integrar os segmentos do mercado audiovisual e ampliar a circulação das obras brasileiras em todas as plataformas
DIRETRIZ (5): Capacitar os agentes do setor audiovisual para a qualificação de métodos, serviços, produtos e tecnologias
DIRETRIZ (6): Construir um ambiente regulatório caracterizado pela garantia da liberdade de expressão, a defesa da competição, a proteção às minorias e aos direitos individuais, o fortalecimento das empresas brasileiras, a promoção das obras brasileiras, em especial as independentes, a garantia de livre circulação das obras e a promoção da diversidade cultural
DIRETRIZ (7): Aprimorar os mecanismos de financiamento da atividade audiovisual e incentivar o investimento privado
DIRETRIZ(8):Aumentar a competitividade e a inserção brasileira no mercado internacional de obras e serviços audiovisuais
DIRETRIZ (9): Promover a preservação, difusão, reconhecimento e cultura crítica do audiovisual brasileiro
DIRETRIZ (10): Estimular a inovação da linguagem, dos formatos, da organização e dos modelos comerciais do audiovisual

O mais fantástico é que essas diretrizes falam em TV por assinatura quando deveriam estar falando em TVs públicas. Depois eu que sou elitista. Fora isso, nada disso contradiz o que eu venho dizendo aqui.

Eu não deixo de ter em mente que esse tipo de discussão diz muito mais respeito aos interesses de um segmento específico, como bancários brigando com caixas eletrônicos. Mas o pior, mesmo, é que para mim essa é uma posição burra. Essas diretrizes que você brandiu em nenhum momento falam em construir salas de cinema. Prestem atenção às diretrizes 3 e 4 e pensem fora da caixa. Ou fora da sala.

A propósito: é bom lembrar que das 600 salas projetadas, só foram construídas 6 até agora.

Beijo e beliscão na barriga,
Rafael

Misericórdia

Era uma senhora velha, daquele tipo de velha cuja idade é difícil de ser adivinhada pela configuração singular das marcas no rosto. Tanto podia ter 50 anos quanto 80. Ela tinha um cortiço na Misericórdia no comecinho dos anos 70. E tinha um pretinho que criava e no qual batia todo dia. Todo dia.

Ainda estavam longe os tempos da recuperação do Pelourinho. Aquilo tudo era feio, mas era de verdade: a Praça da Sé era fim de linha de ônibus, as lojas de discos, as livrarias e a Primavera ainda não tinham cedido lugar às armadilhas de turista atuais. Turistas, sim, mas muito menos que hoje; nas calçadas o que havia era a gente da Bahia indo e vindo do trabalho, vivendo os últimos dias de uma província malemolente, os dias antes de Aratu e de Camaçari que eu não vi — só entrevi de longe, olhando para o que tinha restado deles.

Pela Misericórdia e pelo Terreiro de Jesus se espalhavam cortiços que estavam ali havia décadas. E das janelas daquela casa de cômodos da Misericórdia, aquela que ficava bem em frente à Igreja, moças jovens viam com olhos deslumbrados os casamentos requintados na Igreja da Misericórdia. Ali casavam-se os ricos, a nobreza baiana de sotaque mole e arrastado. É uma coisa da Bahia, esses casamentos em igrejas antigas de bairros decrépitos, que realçam o contraste entre a riqueza e a miséria que em Salvador é mais forte que em outros lugares.

E as moças que das janelas olhavam os casamentos da filha do desembargador, da filha do empresário — ah, essas normalmente não tinham se casado, tinham se amigado com o rapaz de conversa macia e brilho nos olhos que lhes fez ferver as carnes; e dividiam o cortiço de quartos apertados, quartos separados por paredes que eram apenas pentimento, décadas e décadas de tinta barata rosa, azul, verde se sobrepondo umas às outras. Dividiam-no com as meninas de coquinhos infinitos na cabeça amarrados com cordão; com as lavadeiras que estendiam no telhado as roupas das freguesas; com as prostitutas que dormiam pela manhã e saiam à noite para trabalhar no Maciel logo ali perto; com os comerciários que chegavam arrastando os pés no meio da noite, espalhando o bafo de cachaça por todo o corredor que rangia à sua passagem.

Mas isso é o que elas veriam se olhassem para dentro, e por isso olhavam para fora, para as noivas radiantes e a gente chique embonecada, as câmeras fotográficas espoucando à sua passagem. Não interessa que para quase todas elas o futuro não fosse tão brilhante, e que os momentos felizes talvez fossem ainda mais efêmeros que o brilho dos flashes dos fotógrafos d’A Tarde. Acho que talvez soubessem, no fundo, que aquele destino não podia ser para elas. Mas também acho que tinham uma certeza: a de que o seu futuro, seguramente, não seria como o destino da velha dona do cortiço.

Era uma velha muito branca, de uma brancura difícil de achar na Bahia, pelo menos difícil de achar num cortiço na Misericórdia. Usava o cabelo também totalmente branco bem esticado em um coque no alto da cabeça. Morava ali mesmo, no seu cortiço, e era velha de maus bofes e alma ruim.

Não devem ter sido um ou dois os que tentaram adivinhar a sua história. Eu tentei também, mesmo muitas décadas depois. Talvez tenha sido a sua ruindade que a fez ir ficando para trás, ir perdendo as chances de ser feliz de verdade, e a ela só restasse o cortiço que herdou do pai enquanto seus irmãos, se irmãos ela teve, foram em busca de uma vida melhor. Talvez, como a Mulher de Roxo que já vagava um pouco mais abaixo, nas lojas da rua Chile, ela tivesse sofrido uma desilusão amorosa e o seu coração tivesse se encarquilhado em fel.

O que importa é que os anos 70 começavam e ela ainda estava ali. Mas não estava sozinha. Ela tinha o pretinho dela.

Era um rapaz franzino de uns 18 anos. Devia ter sido criado por ela desde a infância. Era tão comum, isso, e seria até muito mais tarde. Mas aquele caso era especial, porque não dá para deixar de pensar na ingenuidade de sua mãe, coitada, mulher tola que um dia achou que o seu filho teria uma vida melhor se fosse criado pela filha de sinhô.

O pretinho dormia no quarto com a velha, provavelmente no chão enquanto ela ocupava a cama. Quando me contaram essa história eu perguntei mas então a velha pegava o menino? E me disseram que não, que não era isso, ele era só o menino que ela criava, e por ser preto isso lhe dava o direito de bater nele, bater como se bate em jumento teimoso.

“Ah, Rafael, você não perguntaria isso se visse o olhar que ele dirigia a ela. Era um olho diferente, era ódio. Ódio e impotência.”

No final dos anos 60, em Salvador, a escravidão ainda não tinha acabado de todo. A velha ruim dona do cortiço na Misericórdia e tantas outras mulheres, bem ou mal intencionadas, criavam pretinhos como hoje criam poodles. Uns eram bem tratados e a esses era dada a sorte grande, a esses a vida abria mesmo a chance de uma vida melhor. Mas outros tinham o azar desse pretinho da Misericórdia.

Isso foi há mais de 40 anos. É tempo demais. A velha ruim já morreu, não pode estar viva. Sua casa de cômodos deve ter ficado para um sobrinho, um sobrinho-neto, e sobreviveu sobre as lojas do térreo — como a “5 Irmãos”, loja de tecidos que ainda estava lá no final dos anos 80. Mas então as coisas mudaram, e a nova Salvador para turistas saneou o lugar dos pobres que deveriam se conformar em morar para lá de Pernambués, para lá da Calçada. O cortiço hoje é um pequeno conjunto comercial. Ali fica a loja da Fundação Pierre Verger, por exemplo. A Misericórdia é hoje mais bonita do que talvez jamais tenha sido, e atrai vendedores ambulantes ansiosos por tirar algum dinheiro dos turistas que se amontoam por ali.

Se alguém se der ao trabalho de perguntar, o mais provável é que ninguém mais se lembre da velha senhoria do cortiço, velha ruim que tinha um pequeno escravo que a odiava no início dos anos 70. E deve ser difícil recuperar a história do velho cortiço, essas coisas a cidade esquece, engole como uma lembrança ruim que deve ser obliterada porque cidades são sempre tão maiores que suas pequenas histórias. Mas o menino que ela criava deve estar por aí, prestes a se aposentar, e só ele sabe as cicatrizes que sua alma carrega dos anos que passou no cortiço da Misericórdia.

9 de dezembro de 1980

O dia seguinte ao assassinato de Lennon foi diferente dos tantos outros domingos do verão de 1980/1981. 32 anos depois e ainda lembro dele como um dia escuro, o que quer dizer que deve ter chovido em Salvador; ao menos nublado. A TV exibiu o Let it Be — acho que a única vez em que esse filme chatíssimo foi exibido na TV brasileira. Alguém foi lá para casa, e lembro de entreouvir sem nenhum interesse conversas estupefatas e tristes sobre Lennon. É essa a sensação que ficou desse dia: não era a morte de um parente, de um amigo próximo, mas era a morte de alguém que de alguma forma tinha sido importante e querido. Era tudo tão inesperado, todo mundo estava realmente chocado com aquilo.

Menos eu. Eu estava de saco cheio. Eu queria era ver desenho.