Cena baiana III

Outubro de 1995.

Volto à agência esperando pegar o meu dinheiro e ir embora, depois de um freelance de um mês em que tudo deu absolutamente, completamente errado, e eu estava estafado e devendo a mim mesmo dezenas de horas de sono. Quem diz que baiano não trabalha não sabe o que é isso: chegar à agência às seis da manhã de domingo (vindo da farra, certo, mas ninguém tem nada com isso) e só sair de lá na sexta, às sete da noite, dormindo duas ou três horas por dia, como aconteceu em uma daquelas semanas.

Mas eles ainda têm uma provação para mim, que o meu lugar no céu só vai conseguido depois de muito sacrifício. Lomanto, prefeito de Jequié, quer que um redator vá até lá. Qualquer um. Não é nada grave, nada importante, mas ele quer, ué. E uma das funções de uma agência de propaganda é puxar o saco do cliente até ele gritar.

Eles têm urgência. Eu e o atendimento vamos para o Dois de Julho, pegar um táxi aéreo.

A gente entra em um Bandeirante. Eu nunca tinha andado em um avião tão pequeno, e acho estranho ter que andar abaixado, a proximidade do piloto, a caixa térmica fazendo as vezes de aeromoça.

O Bandeirante, que provavelmente tinha pertencido à FAB, liga os motores. Primeiro o da direita, e a hélice gira ao máximo. O avião treme como se tivesse visto alma penada, talvez o fantasma de Amelia Earhart. “Isso não vai dar certo”. Agora o da esquerda, a mesma tremedeira. “Esta porra vai cair”.

O avião levanta vôo, e no fim das contas é uma viagem até interessante. Ele voa baixo e eu aprendo o que é um avião de verdade. Nada daqueles Boeings cheio de traquitanas. Aquilo é leite pasteurizado.

Já estamos pousando em Jequié quando, sem aviso — sempre é sem aviso –, o avião embica para cima. Não lembrei de encomendar a alma a Deus naquele momento, não lembrei de nada além do proverbial puta que pariu. Mas entre os grandes orgulhos de minha vida está esse: eu não borrei as calças.

Fazemos a volta, repetimos os procedimentos de aterrissagem, e finalmente pousamos. É quando me explicam a razão do arremetimento repentino: havia crianças brincando na pista.

Quando saímos do avião o filho do prefeito está nos esperando. É ele quem explica melhor o que aconteceu.

Antigamente o zelador do “aeroporto” tinha uma bicicleta. Quando avistava um avião chegando, e via que crianças brincavam na pista, ele pegava a bicicleta, ia até lá e afugentava a criançada. Mas haviam roubado a bicicleta do zelador.

Só não me explicaram que o Bandeirante tem um problema de construção que faz o seu motor fundir fácil demais em casos de retomadas um pouco mais bruscas que aquela.

Em terra firme, ouvimos o prefeito, anotamos as modificações, fomos para o lançamento de um shopping e voltamos para Salvador à meia-noite.

De ônibus.

Originalmente publicado em 23 de fevereiro de 2005

E assim se passaram 60 anos

Daqui a pouco, em maio, vai-se comemorar o fim da II Guerra Mundial na Europa. Alguns meses depois, agosto, vai ser a vez do fim da guerra no Pacífico.

Mais uma vez vamos ouvir a história sendo contada de acordo com os americanos. Por exemplo, vão falar de como venceram a guerra na Europa. Só vão esquecer que, entre junho de 1941 e janeiro de 1945, a União Soviética enfrentou 78% das tropas alemãs. Depois disso, com os EUA e o que restou da Inglaterra avançando (e também o general De Gaulle gritando sozinho “nós vencemos, nós vencemos”), esse percentual diminuiu. Para 58%. Os Estados Unidos perderam 400 mil soldados naquela guerra. A URSS perdeu 13 milhões.

Mas o que importa é que quem conta a história é quem decide o que se passou, e para todos nós, 60 anos depois, a verdade absoluta é que sem os yankees comedores de putas alemãs os nazistas teriam vencido. Claro.

Vão falar também, pela enésima vez desde 1989, quando o assunto voltou à baila, do pacto Ribbentrop-Molotov de 1939. Vão aproveitar para descer a lenha no canalha do Stálin, vão chutar cachorro morto e dar um jeito de encaixar sua habitual imprecação contra o marxismo — esse monstro que todos eles, ignorantes mas militantes fáceis de uma causa que sabem vencedora, não conhecem mas espancam assim mesmo — vão dizer que a URSS se aliou a Hitler em sua sanha de divisão do mundo, etc.

Só vão esquecer, de novo, que em 1934 Stálin avisava que uma nova guerra estava se formando na Europa, e era contra ele. Que a ascensão do nazismo foi tolerada pelo resto da Europa, e indiretamente e com muito menos solidez pelos Estados Unidos, como medida profilática para evitar que o comunismo se espalhasse pelo mundo — como se Stálin tivesse, naquele momento, alguma vontade em relação a isso, como se não tivesse traído os comunistas alemães em 1927. Vão esquecer que o anti-semitismo nazista, pré-Holocausto, foi tolerado como um mal menor dentro de um jogo político muito mais importante. Vão esquecer que o pacto era imperativo para Stálin, que imediatamente começou a transferir as indústrias soviéticas da Ucrânia para além Urais, sabendo que o acordo não iria durar para sempre e que mais cedo ou mais tarde Hitler iria partir para cima dele.

E isso só em maio. Em agosto vão comemorar — melhor dizendo, rememorar — Little Boy e Fat Man.

As explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foram um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade. Em muitos aspectos — talvez aspectos demais — foi algo tão monstruoso quanto o Holocausto. Não pelo número de mortos (cerca de 110 mil nas duas cidades, além de 130 mil feridos e, nos cinco anos seguintes, mais 230 mil mortos em decorrência da radiação), mas pela capacidade de matar tanta gente, em tão pouco tempo, de maneira tão torpe mas tão eficiente. E porque há, sim, um componente de racismo naquela decisão. Não um racismo óbvio como o nazista, mas algo muito mais sutil, talvez até secundário.

Por mais que se negue, é difícil imaginar que os americanos explodissem dessa forma a Alemanha, embora o bombardeio da Berlim já ajoelhada tenha mostrado uma fúria injustificável — as imagens que sobraram mostram uma cidade completamente destruída, muito mais que o “necessário”.

Há algum tempo, assisti a um filme americano dessa época, típico do esforço de guerra. Os termos utilizados — de “amarelo nojento” para baixo — indicavam algo mais grave que a simples raiva de um inimigo. Havia racismo naquelas palavras. Não era sequer novo: orientais sempre tiveram vida difícil nos Estados Unidos. Se os americanos não tinham nenhum motivo específico para odiar os alemães, contra os japoneses foi diferente. Foram eles que bombardearam Pearl Harbor inesperadamente, tentando destruir sua marinha e prejudicar sua entrada na guerra, àquela altura já inevitável. O ódio justificado pelo ataque traiçoeiro catalisava o racismo. E já que eles tinham que dar um recado importante à União Soviética, nada melhor que juntar o útil ao agradável. Uma coisa é explodir a mãe Europa; outra, muito diferente, é dar uma lição àqueles amarelos comedores de peixe cru.

Hiroshima e Nagasaki deveriam bastar para colocar Truman e os Estados Unidos no banco dos réus em Nuremberg. Mas há uma lição que todos aprenderam há alguns milênios: não existem criminosos de guerra entre os vencedores. Vencedores não cometem crimes, apenas modificam a jurisprudência.

Bem, talvez nada disso seja importante agora. Tudo isso aconteceu há muito tempo, há três gerações. Nesses 60 anos as coisas mudaram. O Holocausto não foi apenas uma das maiores representações do Mal na história da humanidade; foi a justificativa que faltava para tornar a II Guerra Mundial a única guerra santa dos americanos. E agora, mais uma vez, vamos ouvir a história contada por eles. Eu só não sei qual é exatamente a lição que se pode tirar daí.

Originalmente publicado em 11 de fevereiro de 2005

Receita de mulher

Um amigo diz que mulher tem que saber beber.

Outro diz que mulher tem que deixar um rastro de perfume quando passa. Mulher que não cheira, não presta.

O avô do Bia diz que mulher tem que saber contar piada.

E o Vinícius diz que mulher tem que ter saboneteiras.

Eu tenho outra teoria. A mulher tem que entender de algumas coisas: um pouco de cinema, um pouco de literatura, um pouco de música, um pouco de política, um pouco de arte. Não precisa ser muito, porque muito não se deve exigir: só o bastante para ter uma opinião, o suficiente para não passar vergonha, para não ficar calada numa mesa de bar, entediada e entediando.

Mas tem que haver um contraponto, e é aí que está o segredo.

A mulher tem que gostar de filmes bobos.

Porque é isso que faz a mulher, é esse toque feminino, da donzela à espera do cavaleiro que a salvará — mas não em um cavalo branco, porque aí é “Uma Linda Mulher” e clichê demais; e tampouco pode ser mais que um toque, porque do contrário ela se torna uma daquelas sinhazinhas de casa-grande, que nada sabem, nada falam, apenas vêem a vida passar bovinamente. Aquele mínimo de solidez tem que ser contrabalançado em uma leveza meio etérea, algo que se sabe que está ali, mas que não se pode pegar — e se se pudesse, se esvaneceria no ar.

O contrário é mulher que gosta de Godard, e ninguém que goste de Godard pode estar em seu juízo perfeito.

A mulher tem que gostar, por exemplo, de Notting Hill. Tem que saber quem é Kurosawa — não precisa gostar, só precisa saber quem é –, tem que conhecer um tiquinho de cinema francês, saber o que faz de “Acossado” o que ele é e ter visto pelo menos um Buñuel; mas tem que dar um sorriso bonito e franco quando vê o Hugh Grant pedindo para a Julia Roberts ficar.

Não precisa chorar, nem deve, porque mulher que chora nessas horas também chora em outras menos apropriadas; mas precisa sentir a beleza boba e fútil da coisa, e não ter vergonha disso, nem querer parecer o que não é — o que só não é pior do que realmente ser. Precisa apenas saber que algumas coisas não devem ser explicadas, jamais, porque então correm o risco de desaparecer. A mulher tem que ser alguém que, mesmo sem conhecer as notas musicais, fecha os olhos e sorri tranqüila para si mesma quando ouve um trechinho de Albinoni.

Porque se fosse para fazer outra analogia, eu poderia dizer que mulher não pode ser Wagner, nunca; e se for Vivaldi se torna vulgar e dispensável. Talvez seja isso. A mulher, a mulher mesmo, tem que ser um andante de Albinoni que gosta de Notting Hill.

Originalmente publicado em 10 de fevereiro de 2005

John Lennon

John Lennon esteve em extrema sintonia com o seu tempo, e muitas vezes à sua frente. Ele se achava um gênio; provavelmente era. É muito para se dizer de um artista pop, mas a poucas pessoas no mundo do showbiz esse epíteto se aplica tão bem. Lennon foi parte do que se pode chamar de o primeiro grande fenômeno de massas produzido pelo marketing moderno, e o único que, ainda em termos de mídia, sobrepujou o rótulo que veio daí.

Mais do que produto de marketing ou gênio, entretanto, ele foi um produto de sua época. Uma época conturbada, rica em mudanças e em estremecimentos sociais, da qual o beatle foi, ao mesmo tempo, causa e efeito.

Para Lennon, tudo ocorreu no momento exato. Foi ingênuo quando a juventude, que surgiu como mercado consumidor e como grupo social com características próprias durante os anos 50, se consolidava como segmento social e como mercado consumidor; psicodélico quando essa mesma juventude começava a acreditar no que diziam que ela era e tentava moldar o mundo à sua imagem e semelhança; iconoclasta quando esse psicodelismo dava os sinais mais prementes de exaustão e o mesmo mundo que tomou um porre de juventude entrava em ressaca — e descobria que ressaca não mata; radical de esquerda quando os reflexos de 68 tomavam corpo e preparavam Watergate. Finalmente, saiu de cena para cuidar do seu filho, quando a geração à qual fornecera a trilha sonora crescia e começava a perceber que o mundo, afinal de contas, não havia mudado tanto assim, e que, ora bolas, ninguém era muito diferente dos seus pais — o que significava encarar o mundo e ter que ganhar a vida. Ou seja: entrar no establishment, daquele mesmo jeitinho tão criticado. Grand finale: morreu tragicamente antes de entrar em decadência e ser ultrapassado pelos mais novos rebentos da juventude.

Os eternos fãs de Lennon se lembrarão para sempre de um homem à beira dos 30 anos, com cabelos castanhos compridos e óculos redondos com grau fortíssimo. A grande maioria nunca ouviu falar do quase delinqüente juvenil dos anos 50, em Liverpool, e faz questão de não levar a sério o ídolo pop que, embora apenas aparentemente, lembrava o Menudo. Os Beatles provavelmente ficarão para sempre na história mundial, mas cada dia menos se falará que eles, em suas turnês, eram obrigados a seguir todo o roteiro da bajulação: davam abraços a torto e a direito em prefeitos, crianças e socialites feias como o pecado, nos mais assombrosos grotões do mundo. Tampouco lembrarão que perto do fim dessas turnês, já não conseguiam lotar os teatros e estádios nos quais apresentavam a mesma fórmula batida. O aspecto comercial dos Beatles será relevado em favor do grande mito que alimenta a indústria, talvez com razão.

Na verdade, música pop não passa muito de indústria. Uma indústria que teve seus alicerces modernos plantados pelos Beatles. Mais que qualquer outro, Lennon tinha consciência disso. Tanta que, ao ser fisgado de verdade pelo sonho hippie, fez o possível para negar o seu passado, e mostrar ao mundo que o sonho havia acabado — o sonho dele, provavelmente porque já havia nascido maculado, a partir do momento que ele podia ver como a indústria alimentou e praticamente criou esse movimento. Nada era tão belo como pensavam. E isso só aconteceu porque, mais do que ninguém, Lennon acreditou no sonho enquanto paradoxalmente tentava destruí-lo.

***

Não fosse o rock and roll, Lennon estaria fadado a ser um operador de guindaste no porto de Liverpool, ou funcionário público de Sua Majestade. Era filho de uma mulher que, em qualquer tempo, seria conhecida como meio maluca — já pesou sobre ela a acusação injusta de ter sido prostituta — e que não foi minimamente responsável pela sua criação. John Winston foi criado por uma tia em um bairro de classe média baixa. Aos quinze anos, já tendo a sua bandinha chinfrim de skiffle, conheceu um garoto um pouco mais novo que entretanto tocava melhor do que ele: Paul McCartney. George Harrison — que tocava guitarra melhor do que os dois — entrou logo depois. Juntos, conseguiram tocar na zona do cais de Hamburgo, Alemanha Ocidental — lugar tradicionalmente reservado a ladrões, prostitutas, malandros e marinheiros. Eram oito horas de música por noite, regadas a cerveja e anfetaminas. O conjuntinho de Liverpool foi obrigado a se superar continuamente.

Os Beatles foram para Hamburgo com a nada recomendável fama de serem uma das piores bandas de Liverpool; voltaram como a melhor. A barra pesada de Hamburgo, a necessidade de tocar muito alto, muito rápido, muito tempo os ensinou a fazer música. Em Liverpool, construíram rapidamente sua fama e conheceram um sujeito chamado Brian Epstein. A partir desse encontro os Beatles começaram a se tornar o maior fenômeno da música mundial.

A primeira providência tomada foi mudar as roupas. Casacos e calças de couro eram coisa de marginal, e mais que isso, faziam parte do imaginário dos anos 50, algo já ultrapassado. Os Beatles deviam se apresentar bonitinhos, mansos. Depois veio a mais difícil: colocar para fora da banda Pete Best. Não era um grande baterista, não se adequava à identidade visual desejada por Brian Epstein, e não era agradável aos outros Beatles, embora fosse muito amigo de Lennon. Em seu lugar entrou Ringo Starr, que de várias formas completou a entidade que seriam os Beatles.

Hoje se torna difícil imaginar o que os Beatles representavam em 1964. Eram mais que a combinação de boa música e bom marketing — uma combinação perfeita, embora às vezes o marketing parecesse encobrir o lado musical; mas basta ouvir uma canção como I Want to Hold Your Hand, que não se parece com nada feito antes, para ver que os Beatles tinham algo de realmente diferente. É fácil, hoje, desdenhar da sua música, que parece ingênua: mas aquilo era revolucionário, quase tanto quando os delírios psicodélicos de alguns anos depois. Mais que qualquer outro, foram os Beatles que inventaram os anos 60.

O fenômeno chegou a tal ponto que nos shows os próprios Beatles não conseguiam ouvir o que estavam cantando ou tocando. Lennon, irritado, dava vazão à sua frustração por ir de aeroporto em aeroporto sem saber muitas vezes onde estava, por viver em função de algo diferente do que eles haviam sonhado como a vida de um superstar, xingando os fãs fora do microfone.

Isso levaria ao fim das excursões, e parecia ser o fim dos Beatles. Não foi, pelo menos não imediatamente: ao darem uma guinada artística, priorizando a música ao marketing, os Beatles se tornaram não só a maior, como também a melhor e mais influente banda de música popular do mundo.

Mas antes disso Lennon disse que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Uma frase que era um misto de verdade e de bravata, mas que causou uma série de reclamações, que a banda, intimamente, ridicularizava. Não era para menos: os protestos, em sua maioria, consistiam em bandos de crianças ao lado de disc jockeys de meia idade, pisando em capas vazias dos discos deles. Em apenas um show a ameaça se tornou séria, com alguém dizendo que iria atirar em Lennon. Profissionais exemplares, eles fizeram o show, esperando um tiro que não veio.

O fim dos shows, que seria um dos ingredientes que levariam ao fim dos Beatles três anos mais tarde, deixou a banda livre para ingressar na vanguarda da música popular. Eles deram um novo rumo à sua música e à música pop de todo o mundo, ao se adaptarem a uma percepção de realidade que eles mesmos ajudaram a criar. A juventude atingiu sua maturidade coimo mercado e o mundo dos “caretas” com mais de 30 anos passou a ver nela uma excelente fonte de renda. Os hippies e a contracultura viraram uma das melhores armas da indústria; e embora ninguém percebesse, o sonho na verdade era natimorto.

E então os Beatles acabam, dando os primeiros indícios de que uma era chegava ao fim; depois foram as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, três das mais importantes figuras da cena pop. Os anos 60, que haviam começado por volta de 63, chegavam ao início do fim em 1970.

Em tudo isso, Lennon era uma das figuras de frente. Era oficialmente o líder dos Beatles, por ser o responsável por algumas das mais cáusticas declarações dos Beatles e por ter sido ele quem, afinal de contas, havia começado tudo, embora nos bastidores a coisa não fosse bem assim. Paul McCartney, que nos anos 90 compôs duas peças (medíocres, é verdade) de música erudita, se afirmava como um dos maiores melodistas e baixistas do rock, além de ser o mais interessado nas técnicas de estúdio. Ele foi ainda o principal responsável pelo projeto mais ambicioso dos Beatles, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, considerado ainda hoje, quase 40 anos depois, o mais importante disco de rock, e pela concepção do disco tecnicamente mais perfeito dos Beatles, o Abbey Road. Paul McCartney, ao que parece, era o líder musical dos Beatles — embora até hoje não se saiba, e provavelmente jamais se saberá, o que realmente acontecia dentro do conjunto. É mais sensato achar que os Beatles funcionavam como uma máquina bem lubrificada em que uma parte era indissociável da outra.

Mas era Lennon quem conseguia estar completamente antenado com o que o mundo queria. Sabia que o mundo não queria apenas música. Sabia intuitivamente o que falar e quando falar. E realmente se identificava com tudo o que interessava. Era o ícone de uma geração anestesiada e profundamente ingênua, que fazia de roupas espalhafatosas e de cigarros de maconha símbolos de rebeldia. Um dos principais artífices do que se convencionou chamar “anos 60”, Lennon, também ele, acreditou no faz-de-conta. E com o esgotamento do ideário hippie, Lennon ficou perdido.

Nisso ele não era diferente do restante de sua geração. A maioria ignorou o movimento hippie, como os jovens de dez anos depois ignorariam o movimento punk, como a maioria da juventude ignora a maioria dos movimentos, recebendo apenas os reflexos esmaecidos que são absorvidos pela sociedade. Uma boa parte atravessou essa era como quem atravessa uma crise de adolescência. E alguns entraram de cabeça e saíram por aí para ver se encontravam o tal mundo melhor. Desses, a maior parte desistiu quando viu que o caminho era longo e que nem mesmo sabiam direito qual era. Uma parte pequena afundou nas drogas, e não foram poucos os que não voltaram à tona. No fim das contas, a maioria aprendeu a se conhecer melhor e a se definir no mundo, por sua vez aparentemente modificado pela sua ação.

Para conseguir acompanhar o ritmo de sua geração, Lennon tomou LSD e heroína, fez terapia, tentou de tudo. No fundo, a única coisa que ele sabia fazer era expressar o que havia de melhor e de pior em si através da música. Além disso, como beatle ele havia provado o gosto do sangue. Não adiantava querer negar: John Lennon era um pop star, talvez o mais anatemático deles. E o seu maior trunfo, uma marca absolutamente pessoal que o distinguiu do resto do cenário pop de todos os tempos, era a extrema capacidade de se mostrar ao seu público e de se tornar o modelo máximo de identificação de sua geração.

O seu primeiro disco solo, o LP Two Virgins, gravado e lançado ainda durante o tempo dos Beatles, leva essa característica ao extremo. A capa, única em toda a história da música pop, mostra Lennon e Yoko nus, o máximo de exposição a que alguém pode almejar. Era assim que eles eram, era assim que todos deviam ser. Não interessava se o conteúdo do disco era insuportável; na época dizia-se que era vanguarda. Como não vingou, pode-se dizer que era apenas delírio.

O segundo disco continua essa tendência: a capa mostra Lennon deitado ao lado de Yoko em um hospital, e o disco mostra as batidas do coração do filho (morto durante essa sessão no hospital) e um desabafo do beatle John sobre o seu cotidiano e sobre a falta de camas nos hospitais ingleses. A letra em si não tem nenhuma qualidade literária; é só John Lennon mostrando o que sente para o seu público. O resto é a barulheira habitual. O terceiro, o Wedding Album, é mais um episódio do “Diário Público de John Ono Lennon”.

Esses discos são bastante emblemáticos. Ninguém ouviu, hoje ninguém vê. Mas ajudaram a fazer Lennon erguer-se acima da música, criando sua própria aura mítica.

Depois do fim dos Beatles, o primeiro (e melhor) disco de Lennon continua nessa direção. Ele fala da dor nunca superada na relação com sua mãe, fala das dificuldades que enfrenta ao lado de Yoko, continua sendo o referencial maior de sua geração. E é nesse disco, também, que ele se refere ao fim do sonho hippie.

Deixar de acreditar em um mito não é fácil, e para Lennon, que havia sido o próprio mito, era mais difícil ainda. Mas novamente a Providência foi generosa com ele, e a política conturbada dos Estados Unidos do começo da década de 70 (um reflexo do movimento hippie que só foi devidamente assimilado com quase dez anos de atraso) forneceu a ele um meio de defender aquilo em que acreditava, talvez o único meio que um pop star tem de ficar remotamente ligado ao seu passado comum.

Ao sair de cena, logo depois de gravar um álbum em que voltava às origens, cantando músicas que ouvia quando era adolescente, Lennon seguia o que o mundo lhe ditava, e mais uma vez estava na linha de frente de sua geração. Durante anos, de certa forma ele tentaria manter vivo o sonho que ele mesmo havia declarado morto, invertendo os papéis com sua mulher e ficando em casa criando o seu filho, enquanto Yoko Ono ia para a rua e trazer dinheiro para casa (ou melhor, gerir o dinheiro que ele conseguira). Finalmente, quando percebeu que não podia viver afastado da cena pop e voltou ao trabalho, um homem chamado Mark David Chapman deu-lhe cinco tiros, transformando-o em mais que um ídolo.

A partir daí, todos os atos de auto-exibição, os discos que ninguém ouviu, as palavras que Lennon disse fizeram sua parte. A partir do dia 8 de dezembro de 1980, John Lennon se tornava o primeiro santo da era da comunicação. Centenas de milhares de pessoas choraram sua morte.

A aura que existe hoje em torno do beatle é paradoxal. Seu espírito é baseado no Lennon contestador, o que ia para as ruas protestar e participar de passeatas, um ativista político de esquerda; mas o objeto de adoração em si é o Lennon romântico, sonhador, que se contentava em imaginar um mundo melhor. E essa imagem nem sempre corresponde à realidade. Ele sentou praça no imaginário popular como o gênio e o roqueiro; sua carreira solo, entretanto, nem sempre corresponde a isso.

Os álbuns solo que se seguiram a John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine (Some Time in New York City, Mind Games e Walls and Bridges) não são somente melosos; são fracos também. Além de haver pouquíssimo rock and roll, no sentido clássico da palavra, a essa altura Lennon havia ido longe demais na idéia de expôr-se ao seu público; e Some Time… vale principalmente como uma crônica aguada do movimento de esquerda nos Estados Unidos em 1972.

Os casos de Mind Games e Walls and Bridges são mais graves. Esses dois álbuns não apenas constituem pouco mais que um apelo dirigido a Yoko, mas têm músicas e letras muito fracas. Era como se Lennon tivesse perdido o talento demonstrado nos seus dois primeiros álbuns.

Fazendo uma comparação: quando Mick Jagger cantava ao mundo que não conseguia satisfação, ele não somente era sincero (um pré-requisito básico da cena rock) como o seu problema era o mesmo de milhões de jovens em todo o mundo. Ao pedir desculpas para Yoko em Aisumasen, Lennon podia estar sendo sincero — mas o que é que o resto do mundo tinha a ver com isso?

A sua volta em 1980 o redimiu de todos esses pecadilhos. Conseguia transformar seu amor por Yoko em algo universal, com o qual milhões de pessoas podiam se identificar e assumir como suas, e novamente com letras de qualidade.

***

Não haveria mais lugar para o ícone John Lennon no mundo de hoje. Não numa época em que, por mais que se alardeiem mudanças, tudo continua do jeito como sempre esteve. Os tempos são mais propícios aos Paul McCartney — pessoas talentosas cujas posições políticas mais corajosas jamais ultrapassam a barreira do plenamente aceitável.

A julgar pelo seu último trabalho, talvez o próprio Lennon, se estivesse vivo, fosse mais parecido com o retrato que se faz dele, hoje. Em Double Fantasy, que ele mesmo definia como crônica de sua vida na época e conseqüentemente de uma geração Lennon falava de amor, de seu filho e da gratidão e paixão incomensuráveis que sentia por Yoko Ono. O conteúdo de suas letras não era nem sombra das canções panfletárias do álbum Some Time in New York City, por exemplo. Lennon não havia atravessado a “década do eu” impune, e estava antecipando a era Reagan. Em um mundo apático e desiludido, que assiste a guerras de verdade como se fossem partidas de video-game, cansado de tudo e com uma eterna sensação de dejà vu, não se pode imaginar aquele sujeito de cabelos compridos e óculos redondos que acreditava que podia convencer o mundo a dar uma chance à paz, sendo o espelho fiel de seu tempo, algo muito necessário quando nada parecia estar no lugar.

O que parece mais engraçado, ao se prestar atenção à história de Lennon, é que apesar de tudo o que disse, e de tudo em que acreditava, ele não conseguiu mudar muita coisa. George W. Bush pertence à geração que cresceu ouvindo Lennon. A grande mudança que se pode apontar, na realidade, é que o protesto não vende mais tantos discos. Está tudo banalizado e minimizado, foram todos absorvidos pelo temível establishment. Sintonizado com o seu tempo como era, é provável que hoje Lennon estivesse vindo se apresentar no Brasil, trazendo na bagagem a mulher e o filho, para encantar um público que viveu os anos 60 à distância cantando Imagine pela milésima vez, ou revivendo os Beatles para cantar I Want to Hold Your Hand no mesmo microfone que Paul McCartney.

Originalmente publicado em 30 de janeiro de 2005

Cena baiana II

Salvador, 1989.

Em Aracaju eu tinha encontrado um amigo de escola, ele disse que também estava morando em Salvador. Ficamos de nos encontrar qualquer dia daqueles.

Dia daqueles saio da agência e vou até um bar na Pituba, onde nos encontramos, ele com um amigo meio bobo mas gente boa. A noite avança entre cerveja e tira-gosto. Xangai aparece por ali e dá uma canja, “marido se alevanta pra nóis fazer um calamengau”. Uma mulher de seus trinta e poucos anos dá mole e eu me levanto para ver no que vai dar. A coisa promete, ela faz pose de quem faz pose de mulher recatada, e então Paulo me chama e avisa: “A gente tá saindo e não vai pagar”.

Eu devia ter lembrado quem era Paulo antes de aceitar o convite. Ele era expulso da sala com uma freqüência ainda maior que a minha. Foi ele quem subiu em seu buggy na porta do Arqui, depois de conseguir uma transferência para o Unificado, e xingou Marlene Chagas de todos os palavrões imagináveis — e para a nossa felicidade também dos inimagináveis. Era ele que tinha uma cara de marginal, cabelos louros escorridos encimando uma cara comprida e um olho meio torto.

Agora só me resta ir atrás do sujeito, eu que nunca gostei de sair sem pagar de lugar nenhum.

Daqui a pouco chega o garçom, correndo esbaforido, dizendo que a gente vai ter que pagar. Paulo manda o sujeito à merda, e o garçom sai correndo dizendo que vai chamar a polícia.

A gente também sai correndo pela Pituba na direção contrária, e em poucos metros eu, que nunca corri senão de cachorro grande e de mulher feia, já estou botando os bofes pela boca, puta que pariu. Viramos uma esquina onde dois homens tocam violão; adivinhando que não vou mais agüentar muito tempo, pulo o muro e me escondo, encostadinho entre o muro e as plantas. Ouço o garçom passar correndo, mas espero. A cara enterrada no canteiro, terra preta de vez em quando tem um gosto muito bom.

Alguns minutos depois uma mão me levanta pela gola. É um dos homens que estavam na esquina. O sujeito diz que é policial, me revista, pergunta o que aconteceu.

“Moço, eu tô morando aqui há um mês. Não conheço ninguém na cidade. Moro em Sergipe, sabe? Vim estudar pro vestibular.” Mostro a minha carteira de identidade, que é de Aracaju, para comprovar que tudo o que eu digo é a mais pura verdade. “Aí hoje eu tava no Porto da Barra, conheci aqueles dois sujeitos, a gente começou a conversar, e me chamaram pra cá, e a gente começou a beber, eu levantei pra ir no banheiro e quando voltei eles tavam saindo dizendo que não iam pagar. Eu não tinha dinheiro pra pagar a conta toda, aí tive que vir com eles.”

“Qual o nome deles?”

“Um é Márcio, o outro é Roberto. O senhor já viu eles por aqui?”

“Eles te ofereceram drogas?”

“Não, não, só cerveja, mesmo.” Mas me arrependo, devia ter inventado que o filho da puta do Paulo é traficante para ver se a polícia lhe dá umas porradas, que ele merece.

Me mandam esperar para ver o que farão comigo. Enquanto o tal policial conversa com o outro, que deduzo ser um vigia noturno, resolvo que minha cara de menino não é o bastante. Peço o violão, toco um pouco, faço a maior cara de puta arrependida que consigo fazer, e então o sujeito diz para eu ir embora, mas que a partir de agora devo ter cuidado que aqueles baianos não valem nada, que é um povo muito descarado, tá cheio de marginal pela rua, você deu muita sorte, e percebo que ele não tinha lido minha carteira de identidade direito e não viu que eu também era um daqueles baianos. Só não era descarado.

E enquanto eu saio atrás de um táxi, pensando em ligar para esculachar aquele filho da puta do Paulo, o sujeito passa e pergunta para onde eu estou indo, e eu digo e ele me dá uma carona, enquanto continua a falar desses baianos que não valem nada, quando é justamente um policial baiano que me dá a carona.

Mas isso não é nada. Nunca mais vi a balzaca. Não deu tempo de pegar o telefone dela. Ela era uma lourona bonita, bem interessante. Tinha uns peitões sugestivos, ah, muito sugestivos, e o seu jeito de olhar me fazia algumas das mais torpes e belas promessas que eu já tinha visto naqueles meus dezoito anos.

Originalmente publicado em 27 de janeiro de 2005

Manifesto da Associação de Proteção aos Tios Sukita

Rafael Galvão e Luiz Biajoni, membros-fundadores e Veneráveis Laranjas da Associação de Proteção aos Tios Sukita, vêm a público denunciar como sua inimiga número 1 a senhorita Anna Carolina, do blog Appothekaryum.

Essa senhorita declarou guerra à existência destes pobres solteirões à beira da decrepitude que acompanha a meia-idade, com provocações baixas e torpes personificadas na exibição de uma latinha de Sukita em seu blog, insulto claro ao sofrido e humilde co-fundador, o Venerável Biajoni.

A provocação chegou ao máximo quando, exibindo todo o seu desprezo, a senhorita Anna Carolina fez um comentário curto e grosso neste blog, em meio a sorrisinhos perversos. Falou o que falou porque sabe que nós, tios Sukita, já estamos fora da tal categoria. A gente simplesmente tem que encontrar alternativas. E a mencionada pela malvada não é uma delas.

A senhorita Anna Carolina tentou nos humilhar e espezinhar. Em fotos no seu blog, exibe suas formas magras, numa provocação fria que muito se assemelha ao canalha que come uma banana diante da jaula dos macacos. Sabe que nós, tios Sukita, estamos mais acostumados a pelancas, peitos que beiram o umbigo, manchas senis nos braços e, no caso deste neo-fetichista, cotovelos ásperos e enrugados; no caso do velho fetichista que é o Venerável Bia, bundas moles.

Essa mulher vil chega ao limite da provocação ao anunciar que vai jogar suas calcinhas para o Wando, a quem obviamente considera ridículo, sabendo muito bem que o tal cantor é um dos símbolos de nossa faixa etária com sua boca de chupa-ovo e seus cabelos pintados. Fica dizendo que não podemos passar por adolescentes, o que é uma grande injustiça porque nos respeitamos: nossos suéteres pendurados no ombro não combinam com bermudões mostrando o rego da bunda. Nós somos coroas quase enxutos e nos orgulhamos dessa condição.

O que essa senhorita de maus bofes faz é chutar cachorro morto, é tirar dinheiro de pobre, é roubar dentadura de velho. Essa mulher sem coração debocha dos tios Sukita mesmo sabendo que, recentemente, o Venerável Biajoni levou um pé na bunda clássico de uma dessas Ninfetas do Demônio, transformado em post neste blog há alguns meses. Ela não tem coração.

Nada que nos surpreenda, no entanto. Essa mulher de má índole, capaz de atos vis como tomar um Batman das mãos inocentes de uma pobre criança, resolveu voltar suas baterias contra os tios Sukita, categoria que já tem seus próprios problemas de adequação ao mundo para se preocupar. Não satisfeita em infernizar pobres crianças, em destruir todos os seus sonhos, resolveu também bater nos pobres velhinhos supra-assinados, retirando deles todas as esperanças de parecerem descolados.

Perversa e má, a senhorita Anna Carolina — que bem poderia ser parecida com a sua xará cantora, dizer que gosta de mulher e nos poupar tamanha humilhação — debocha de nossas existências e assume um tom provocador que, embora sejamos homens de paz e amor (principalmente paz, porque amorzinho meia-bomba só 3 vezes por mês e olhe lá), nos obriga a tomar uma posição firme e com os punhos em pé — inclusive porque, a esta altura da vida, punhos são a única coisa que ficam em pé.

É chegada a hora de darmos um basta a isso. Essas meninas que se recusam a ser seduzidas por nós, tios Sukita com toda a carga de experiência que uma vida de cantadas infrutíferas em bares traz, devem ser denunciadas como inimigas de toda a humanidade. Essas meninas que vagam por aí apregoando as vantagens óbvias da juventude e que se tornam o pesadelo dos homens que suaram toda a vida para ser coroas legais precisam ser detidas, a qualquer custo.

A guerra está declarada.

Em nosso primeiro contra-ataque, anunciamos aqui que vamos colar a cabecinha ruiva da senhorita Anna Carolina na nossa Mulher Frankenstein Para Onanistas Fetichentos, maravilhosa colagem concretista desconstrutivista com o melhor de cada mulher deslumbrante. Essa será a nossa vingança, a primeira em uma guerra que prometemos encarniçada e sem tréguas. A senhorita Anna Carolina, aquele ser perverso que se compraz em debochar dos velhinhos, verá o que acontece quando ela cai na mão — literalmente — de jovens bobinhos e cheios de hormônios.

À vingança!

À vitória!

Originalmente publicado em 07 de janeiro de 2005

Moema

Julieta é a menina-moça que personifica a urgência da juventude — pressa em amar, pressa em morrer — com aquela conversa fiada de “O happy dagger!, this is thy sheath“. Até na hora de morrer ela insistia em fazer drama, mulherzinha chata que não teve coragem de fugir com seu homem — na verdade, homem em termos, porque aquele menino nervosinho era outro songa-monga.

Nada disso a impediu de se tornar a heroína romântica por excelência.

Enquanto isso, do lado de cá do Equador, um mulher fez um sacrifício ainda maior, e mais significativo. Mas poucos reconhecem a dimensão do ato de Moema, sua disposição de morrer sem nenhuma condição, sem pedir nada em troca, menos ainda uma outra morte.

Não é, não pode ser Julieta o símbolo do amor. Mais amou Moema, que nadou sem esperanças atrás do navio que levava sua irmã e seu amado para a Europa, para as terras de onde veio Caramuru.

Julieta e outras da mesma laia são heroínas porque os poetas que as imortalizaram tinham uma visão deturpada e masoquista do amor. Julieta fez seu homem morrer; o destino do desgraçado que amou Heloísa foi ainda pior. Para esses europeus, que não sentiram o gosto do dendê, que não sentiram o cheiro da brisa que sopra do mar de Itapuã, o amor é um jogo de trocas.

Julieta não teria morrido se tivesse levado um pé na bunda. Teria amaldiçoado o sujeito que a levou para a cama, a enrolou com aquela conversa de rouxinol ou cotovia e deu no pé atrás de outra besta. Teria amaldiçoado os Capuletto, teria dito que seu pai — aquele sim, um homem de verdade — é quem tinha razão, que aquela raça tinha sangue ruim.

Mas foi justamente isso o que Moema fez: abandonar-se quando percebeu que seu amor jamais seria. E mesmo nesse momento ela não desistiu, simplesmente: até o fim ela foi em busca do homem que amava e àquela altura não mais por ele, mas por ela mesma. Sabia que a caravela não iria parar só porque ela nadava atrás de Diogo, sabia que os homens em terra, incapazes de compreender o amor tão grande que ela sentia e encantados com suas miçangas e espelhos, pouco ligavam para seu destino. Mesmo assim, Moema nadou.

E um cínico, coitado, diria que ambas, Moema e Julieta, não passaram de otárias.

Originalmente publicado em 06 de janeiro de 2005

Um dia de verão

Janeiro de 1994.

Andando pela rua, debaixo de um sol lancinante. Uma mulher pára na minha frente.

— Você é bonito.

Olho espantado para a mulher, agradeço sem jeito.

— Você é bonito.

É louca, louca. Agradeço mais uma vez e saio andando.

Mas ela vem andando ao meu lado.

— Você até parece aquele cantor, Leandro e Leonardo (não, não pareço). Alto, cabelo bom. Sabe, eu tenho uma irmã de treze anos que é quase do seu tamanho. Mas ela quer me bater quando eu tô em casa.

— Ah, não. Não deixe. Ela tem que respeitar os mais velhos.

E, conversando um monólogo só dela, a moça foi andando comigo por dois quarteirões.

Originalmente publicado em 18 de dezembro de 2004

Arrufos

O casal de namorados chega à piscina, ela na frente, ele atrás. Calados, cabeças baixas, olhos duros. Ela se senta na borda, ele mergulha e vai para o outro lado, para a parte funda, e fica de costas para ela, queixo e braços apoiados na borda, dez metros de água azul entre eles.

Sentada, balançando os pés na água, ela olha para o namorado que lhe dá as costas ostensivamente. Ela funga algumas vezes, controlando o choro.

Imóvel, ele continua do outro lado da piscina, de costas para ela.

Fecho o livro e tiro o olho da minha filha e da minha sobrinha que brincam perto dela. Olho para os dois, ele imóvel, ela de cabeça baixa olhando para ele.

O que está em jogo agora é quem vai ceder primeiro, quem dará o passo para a reconciliação. Ele está apenas negociando sua rendição, vendendo mais caro a reconciliação em troca da mágoa que ela talvez lhe tenha causado. Mas continua imóvel, fingindo uma dor maior que a que sente.

Ela não agüenta muito tempo. Entra na piscina e vai até ele. Fica do seu lado, faz um carinho em sua cabeça, fala alguma coisa, beija seu ombro. Passa a mão em suas costas, sorri entre triste e acanhada, beija novamente seu ombro.

E então ele se rende, sabendo-se vencedor da pequena guerra sem importância, agora homem e feliz por seu blefe ter funcionado. Beija a namorada com carinho, com um olhar apaixonado e grato. Talvez, durante aqueles poucos minutos em que uma piscina representou a maior distância que pode separar um casal de namorados adolescentes, eles tenham julgado que tudo tinha acabado, e cada um desempenhou o seu papel com a maestria instintiva dos apaixonados.

Minha câmera está na minha mão, mas não tenho coragem de fotografar o casal. A beleza em tudo isso é justamente o fato de que, sem uma foto, essa pequena briga nunca existiu, e por isso se repete, dia após dia, casal após casal, e sempre tão igual.

Originalmente publicado em 10 de dezembro de 2004