Da arte de idiotizar livros

A discussão sobre a reescrita de livros para crianças continua, e é espantoso que continue.

Ainda lembro da discussão sobre Monteiro Lobato. Essa, especificamente, me cansou desde que percebi que é essencialmente uma discussão acadêmica, isolada do mundo, que só interessa de verdade ao pessoal das universidades.

Porque crianças não leem mais Monteiro Lobato. Leem “Harry Potter”, “Crepúsculo”, “Diário de um Banana”, “Gossip Girl”. O mundo de fantasia ainda oitocentista e semirrural de Lobato já não fala ao universo infantil, muito menos ao adolescente. O pássaro roca ninguém mais sabe o que é, mocha é um tipo de café e não uma vaca sem chifres e o Curupira existe ainda menos que o Papai Noel. Coleções de Monteiro Lobato se acumulam nos sebos como testemunhos silenciosos e empoeirados da frustração de pais que acharam que seus filhos eram iguais a eles.

No fundo, o bafafá sobre Lobato serve apenas para justificar salários e teses de professores que vivem disso: de palavras, de símbolos, de significados e “ressignificados”, por estéreis que sejam. E, para validar esses “ressignificados”, que o Racista de Taubaté se torne uma versão contemporânea do Açougueiro de Lyon, porque ultimamente, no ranking dos preconceitos e ódios, o antissemitismo anda perdendo lugar para o racismo contra negros; a II Guerra Mundial foi há muito tempo, e a Palestina é logo ali.

Um tanto dessa inutilidade acomete a última discussão que acompanhei superficialmente, agora sobre Roald Dahl. Dahl, no Brasil, até onde sei é leitura recente, e se exerceu alguma influência eventual sobre bacuris patrícios foi pelo filme “A Fantástica Fábrica de Chocolates”, e não por seus livros. Quando eu era criança, nos anos 70, lia-se Verne, “Tesouros da Juventude”, “Mundo da Criança”, coleção Vagalume, o Racista de Taubaté. Eu, pelo menos, só fui ler Dahl na casa dos 30, e mesmo assim porque a editora Barracuda, brilhante e breve aventura editorial do Alfred Bilyk, me presenteou com um livro.

Mas há que se combater o mal causado pelas palavras cruéis de Dahl. Um dos personagens da Fantástica Fábrica de Chocolates, Augustus Bloop, deixou de ser “gordo” para ser “enorme”. A palavra “gordo”, aliás, foi retirada de todos os livros do finadoautor. Indiferente a tudo isso o pobre Augustus, recoberto por sua banha balouçante, continua pesando o mesmo, tanto faz se você o chama de gordo ou enorme.

Esse tipo de revisionismo é tão tacanho, e já fui terminantemente contra essas releituras. Mudei um pouco de ideia quando lembrei dos “Clássicos da Literatura Juvenil”, sobre a qual, eu eterno bêbado que não sabe que está se repetindo, escrevi várias e várias vezes aqui. A coleção, que provavelmente formou os meus gostos e pinimbas literários, era constituída majoritariamente, se não totalmente, de adaptações e simplificações. Logo, como eu sou a verdadeira medida do mundo, adaptações não são necessariamente ruins.

Mas há uma diferença entre o tipo de adaptação feita naqueles livros e essas mutilações pudibundas de agora, e ela é fundamental.

Aquelas eram tentativas de fazer livros às vezes seculares chegarem a pessoas mais jovens e menos afeitas aos meandros da escrita, através de um esforço consciente de empobrecimento e simplificação. Por exemplo, sua versão de “Os Três Mosqueteiros” simplificava a história, talvez tirasse uns detalhes importantes, mas mantinha a sua estrutura, com seus heróis imperfeitos, sem omitir o que era de fato importante. Aqui e ali os adaptadores faziam intervenções mais judiciosas, e demorou anos até eu saber que Steerforth tinha feito mal à menina Pegotty e levado a tadinha à prostituição; um dos mais bizarros, no entanto, foi a decisão incompreensível de Herberto Salles de omitir a morte de Beth em “Mulherzinhas”, embora na continuação, “A Rapaziada de Jô”, adaptada por M. Z. Camargo e publicada na mesma coleção algumas semanas depois, ela já estivesse mortinha da silva. Provavelmente Salles achou que a criançada não podia ser exposta à morte dessa forma, como hoje não podem ser expostas ao racismo; tudo o que conseguiu foi confundir os leitores.

De qualquer forma isso era raro, e só lembro desse exemplo. O que se vê agora parece com essa omissão cometida por Herberto Salles: são esforços puritanos em estabelecer uma proteção definitiva de pobres crianças idiotizadas e superprotegidas da maldade do mundo.

Um exemplo paralelo está na reedição do “Manual do Escoteiro Mirim” (outra daquelas obras fundamentais da minha infância, o que mostra quão pobre foi a minha formação. Mó inveja desse pessoal que lia “Ulysses” aos dez anos). Ele trazia umas receitas que incluíam, imagino, licores entre seus ingredientes. Agora os licores foram retirados delas, com uma notinha jogando a culpa no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Eu realmente não sei como sobrevivemos àqueles tempos duros. Devia ser graças à cachaça que bebíamos aos três anos de idade e às orgias intermináveis que fazíamos a partir dos cinco, porque não havia uma nota explicativa proibindo nada isso.

Os defensores das reescritas dizem que elas não importam tanto assim, porque as obras originais continuam aí. É a justificativa mais canalha e cínica que conheço, até porque ela é apenas parcialmente verdadeira. Esses originais vão continuar existindo para adultos que os escolherem como motivos de teses acadêmicas que serão lidas apenas por seus orientadores, mas o que estará nas livrarias ou, mais importante, nas compras governamentais serão as versões sanitizadas. Como dizia Lampião, “eu só faço o furo, quem mata é Deus”.

A questão é outra. Censurar um livro é simplesmente errado, seja qual for a forma de censura. Essa postura lembra cada vez a prática comum nos EUA de banir livros de bibliotecas e escolas — porque uma vez aberto o precedente, nada impede que todo mundo que se sinta incomodado ou ofendido por um livro tente proibir a sua leitura pelos outros, movidos pelo proselitismo de bons cristãos. E é aí que a certeza e presunção morais e éticas dos ativistas se tornam perigosas e um enorme tiro pela culatra. Em 2022, o livro mais banido nas escolas americanas foi Gender Queer, de Maia Kobabe, porque traz temática gay e é, alegadamente, sexualmente explícito. O segundo livro mais banido dos EUA na década passada foi essa série subversiva chamada “Capitão Cueca”.

Uma vez aberto, o portão da estupidez não pode mais ser fechado.

O mais grave é que toda a essa atividade protetora, policialesca, é essencialmente um exercício obtuso de subestimação da inteligência das pessoas. Defensores dessas proibições gostam de usar o argumento de que cada “interpretação tem seu tempo” para justificar seus cortes, mas o esquecem na hora de admitir a inteligência das pessoas.

Não custa tomar o racismo de Lobato, que na confusão que umas gentes fazem entre autor e obra dizem estar materializado em expressões racistas ditas pela Emília, como exemplo: se livros são o retrato do seu tempo, crianças também são. E certamente são mais inteligentes que a maior parte dos seus autonomeados protetores. Tenho sérias, seriíssimas dúvidas de que precisem ser protegidas do beiço da Tia Nastácia: o que era normal em 1930 hoje soa automaticamente incômodo para elas, criadas em um ambiente onde essas manifestações são cotidianamente malvistas, policiadas e condenadas. Até mesmo adultos e velhos como eu passam por fenômeno semelhante: o que era cotidiano e normal trinta, quarenta anos atrás, hoje soa incômodo e simplesmente errado.

Mas para os zelotes do vernáculo, se as crianças brancas lerem um livro em que a Emília, dada a falar os mais variados tipos de disparates, ofenda a Tia Nastácia, se transformarão automaticamente em racistas; se negras, ficarão deprimidas e terão sua autoestima destroçada ao verem as ofensas da boneca de macela, incapazes de identificar isso como racismo — assim como, para os fiscais do rabo alheio, ler Gender Queer vai transformar seus filhos em travestis enlouquecidas de fio dental na caçamba de uma caminhonete purpurinada cantando enlouquecidas Loco Mia.

Pensando bem, talvez o mundo fosse melhor se isso fosse verdade.