Ladeira da Montanha

A demolição de antigos casarões na Ladeira da Montanha, em Salvador, abalados pelas chuvas fortes que caíram recentemente, gerou revolta em muita gente. Aqui e ali pulularam — pululam ainda — protestos revoltados com o fato de o IPHAN ter autorizado, com rapidez que julgaram suspeita, a demolição dos prédios.

Basta uma olhada rápida para as casas demolidas para entender que não havia outra solução. Na foto ao lado é possível ver exatamente o que se perdeu: meras fachadas degradadas ao ponto da impossibilidade de recuperação, mantidas em pé apenas pela mão benevolente do Senhor do Bonfim. Mais grave, entretanto, é que não parecia haver nada ali que caracterizasse algum conjunto arquitetônico importante e necessário, nem que justificasse a repentina indignação de uma sociedade que evitava passar por aquela rua, principalmente à noite. Durante décadas, os prédios da Ladeira da Montanha cumpriram apenas o papel de oferecer sexo a preços módicos para trabalhadores de baixa renda; há anos, nem isso. O IPHAN agiu corretamente.

Digo isso com certa dor no coração. Muitos anos atrás, quando eu chegava a Salvador pela rodoviária, podia pegar dois ônibus para a casa de minha avó, em Nazaré. O R1 e o R2 faziam essencialmente o mesmo trajeto, mas em sentidos diferentes. O R1 era o mais rápido; mas eu preferia o R2, que primeiro passava pelo Comércio e pela Ladeira da Montanha. O caminho era mais longo, mas era mais bonito: eu, como qualquer baiano, sou cioso da parte que me cabe na herança cultural dos lupanares da cidade. Era melhor se fosse no cair da tarde: o pôr do sol visto da Ladeira da Montanha, entre as torres da Conceição da Praia, é um dos mais belos em uma cidade que os tem em demasia.

Em vez de carpir o enterro tardio dos cadáveres putrefatos de antigos bregas abandonados há eras, deveriam estar discutindo o destino que se vai dar àquela área. A Prefeitura ainda não se pronunciou sobre o futuro da Ladeira da Montanha, provavelmente porque foi pega de surpresa pela urgência de tomar uma atitude evitada por muitos anos. Acho que o lugar poderia se transformar num bom espaço de convivência, com apelo turístico e cultural. Daria um dos mais belos mirantes de Salvador, sem nenhuma dúvida. É um lugar adequado para uma grande praça com equipamentos de lazer, restaurantes e armadilhas para turistas. Podiam até fazer uns bares para que, com o passar do tempo, a Ladeira da Montanha voltasse a cumprir o papel social que cumpriu durante décadas: garantir um espaço razoavelmente seguro para o exercício da boa e mais antiga profissão do mundo. Turistas pagam em dólar.

Infelizmente o histórico da Prefeitura não é dos melhores e afeta as expectativas que possamos ter. Embora tenha realizado uma das mais importantes intervenções urbanas em Salvador dos últimos tempos, a transformação do trecho da avenida Sete de Setembro entre o Porto e o Farol da Barra em um grande calçadão de uso misto, o prefeito ACM Neto tem uma concepção de cidade ultrapassada e nociva: ele fala sem ruborizar em demolir casarões irrecuperáveis no Centro Histórico para transformá-los em estacionamentos, enquanto o mundo civilizado trabalha para banir automóveis dos centros das cidades. Não será ACM Neto o prefeito a transformar Salvador em uma cidade moderna, que tente harmonizar seu passado e seu futuro.

Isso é ainda mais triste porque Salvador tem uma cota alta demais de Alaricos urbanos. Mario Kertész, por exemplo, construiu no Paço Municipal aquela aberração estética que responde pelo nome de Palácio Tomé de Souza, ironicamente no local onde existiram a antiga Biblioteca e a Imprensa Oficial, demolidos por ACM (avô do atual prefeito) nos anos 70; os Magalhães gostam de derrubar coisas. Em defesa de Kertész apenas o fato de que aquele monstrengo deveria ser temporário; no entanto, aquela desgraça está lá há quase 30 anos.

Mas Salvador é uma cidade que pelas dimensões e variedade do seu patrimônio histórico ainda pode ter esperanças. E talvez a Paris do século XIX possa servir de exemplo para o que fazer.

Ao voltar do exílio em 1848, Napoleão III já trazia debaixo do braço o mapa dos futuros bulevares de Paris. Sua ideia era renovar completamente a cidade, construindo grandes avenidas que rasgassem a cidade de cima a baixo, recriando a estrutura urbana e adequando a capital aos novos tempos e tecnologias, eintegrando-a e expurgando os tantos e tantos cortiços que se espalhavam por uma cidade que tinha crescido assustadora e desordenadamente. Para isso ele nomeou o barão Haussmann chefe do departamento do Sena, uma espécie de super-prefeito de Paris.

A renovação de Paris no Segundo Império jamais seria igualada. A área da cidade subiu de 3500 para 8 mil hectares; mas acima de tudo, Haussmann transformou Paris numa cidade moderna, mais limpa, capaz de absorver o crescimento constante das décadas que se seguiriam.

É impossível saber o que se perdeu. Lugares históricos, lieus de mémoire, as provas materiais da Revolução de 1848; quase dois mil anos de camadas e camadas de evolução de uma cidade. A Paris que emergiu do Haussmanismo continha ainda muitos elementos da cidade antiga, mas era uma cidade diferente. É essa a Paris que conhecemos. Não parece ter se saído mal.

(A nota irônica em tudo isso é que os objetivos de Napoleão III não eram apenas modernizadores e sanitizadores. Com a nova ordenação urbana de Paris ele pretendia também facilitar a repressão às explosões sociais que aconteciam a três por quatro na cidade. Parisienses sempre tiveram uma queda por barricadas e paralelepípedos. Mas foram esses novos bulevares que cerca de 70 anos depois viram os panzers alemães deslizarem suavemente em sua tomada de Paris.)

Um dos problemas que o mimimi daqueles que protestam cegamente contra a demolição das ruínas da Ladeira Montanha acaba mostrando é que eles parecem não entender que a cidade é um organismo vivo, que precisa evoluir. Não deve fazer isso às custas cegas do seu passado e da sua história, e uma solução radical como a de Haussman não seria aplicável hoje. Mas não deve sobrevalorizar o que é só velho, e por isso um pouco desse espírito deveria ser levado em conta. A cidade às vezes tem que fazer escolhas. O grande problema é que simplesmente não é preciso fazer uma escolha difícil neste caso da Ladeira da Montanha.

Baianos têm orgulho do seu elevador Lacerda (enquanto, logo ali ao lado, deixam o belo Elevador do Taboão agonizar; só vão lembrar dele, pelo visto, quando finalmente desmoronar). Um anúncio antológico da Bahiatursa o descreve como parte da alma da cidade: “Cidade Baixa, Cidade Alta e um elevador no meio. Só podia ser coisa de baiano.” Vendo essa falsa polêmica sobre o “casario da Ladeira da Montanha”, fico pensando que, se esse pessoal que hoje se esvai em chororô ignorante e ludita estivesse vivo em 1930, Salvador não teria o elevador que conhecemos hoje; em vez disso teríamos o antigo, como projetado por Antonio de Lacerda no início dos anos 1870, porque a cidade não tem o direito de se erguer de suas próprias cinzas.