Quando a ignorância vence

Por acaso, achei um dos primeiros textos que baixei de um BBS, há mais de dez anos: uma lista de livros banidos ou protestados nas bibliotecas americanas. Dali para uma lista mais recente, de livros banidos ou protestados este ano.

A maior parte dos livros foram atacados pelo que se entende como o típico americano médio do meio-oeste, mesmo que as cidades em que os banimentos ocorram sejam as mais diversas; mas é a mesma mentalidade, o mesmo modo de ver a vida. Os censores, ao que parece, são normalmente pessoas que pretendem proteger suas crianças — da exposição a conteúdos sexuais ou meramente profanos. Acreditam que se seu filho não ler “O Apanhador no Campo de Centeio” não vai falar palavrões. Têm a fé dos mais pios em que, se o adolescente que tem em casa não ler Gays/justice: A Study of Ethics, Society, and Law, de Richard D. Mohr, não vai virar viado, uma crença tão válida quanto achar que se sua filha ler “O Diário de Anne Frank” vai se tornar prostituta numa esquina qualquer. É assim que essas pessoas analisam as coisas.

Mas a censura a livros não é prerrogativa exclusiva da direita americana. A esquerda politicamente correta também faz das suas, banindo textos que um ou outro idiota considera racistas (“As Aventuras de Huckleberry Finn” de Mark Twain para os pretos, “O Mercador de Veneza”, do bardo, para os judeus) ou preconceituosos em relação à sociedade de modo geral. Qualquer livro que não passe uma visão ideal da sociedade fundada em Massachussets é perigoso, sempre.

No fim das contas, não é exatamente o espectro político que importa na decisão de decidir o que as pessoas devem ler. O problema é de fundo religioso e histórico: tanto a direita como a esquerda americana têm raízes profundas no puritanismo protestante, e têm em seu destino manifesto a missão de guiar a humanidade em busca de conceitos abstratos como o bem comum e a virtude.

No que depender desses zelotes, o resultado será uma sociedade construída sobre a ignorância e a negação da realidade, porque é nisso que se baseia a histeria religiosa. Por desempenharem funções públicas, acham que têm o direito de decidir o que o povo pode ou não ler. Eles têm o direito de querer proteger suas crianças do que bem entenderem; o problema começa quando querem proteger também as dos outros.

Certo, é difícil justificar que o Estado gaste dinheiro disponibilizando em suas bibliotecas, por exemplo, How to Make Love Like a Porn Star: A Cautionary Tale, da atriz pornô Jenna Jameson. Não parece relevante. Ao mesmo tempo, é também difícil justificar que essa opção seja negada, a qualquer um, apenas porque um bando de egressos do culto dominical acha que as pessoas não devem ter o direito de escolher a informação que desejam receber. Se as dicas da Jenna não parecem relevantes para mim, podem parecer para alguém.

As listas de livros banidos impressionam pela diversidade temática e pela extrema suscetibilidade desses censores. No fim das contas, depois que se vê que baniram, tem-se a impressão de que o problema é mais que simples ignorância ou obtusidade. Ao banir livros, quaisquer livros, esses idiotas fazem uma apologia da ignorância e a tentam impor a um povo, negam o direito à informação a uma sociedade; não é à toa que What’s Happening to my Body? Book for Girls: A Growing-Up Guide for Parents & Daughters, de Lynda Madaras, foi banido recentemente.

Julgando-se pela reação causada, o livro disfarçado de educação sexual deve deixar a Adelaide Carraro se achando uma santa. Quase igual a essa gente que, graças aos seus preconceitos, tenta fazer com que se volte à Idade Média. Aqueles bons tempos em que o mundo era simples e a ressurreição no Senhor era o melhor a que se podia aspirar.

1979, o ano em que viramos gente

É curioso que já vá fazer 30 anos, mas 1979 foi o Ano Internacional da Criança.

A ONU tem dessas coisas, de vez em quando escolhe um ano e o dedica a um tema. Só foram acertar naquele ano, quando finalmente conseguiram algo que mobilizasse as pessoas. Mas tentaram muito até lá. Começaram em 1957 e de lá para cá houve anos importantes como o Ano Internacional do Arroz, em 1966 e novamente em 2004, e o Ano Internacional das Montanhas, em 2002.

Em 1979 eu não sabia de nada disso. Não sabia sequer que aquele também era o Ano Internacional de Solidariedade com o Povo da Namíbia, e acho que não havia muita gente mais que soubesse — talvez nem o povo da Namíbia, a quem deveríamos prestar nossa solidariedade inexistente. Não sabia que o secretário geral da ONU era Kurt Waldheim, de passado obscuro sob o signo da suástica nazista. Nada disso importa, no fundo, não a mim. O que interessa, mesmo, é que ainda hoje, quase 30 anos depois, lembro de tanta coisa que às vezes é até difícil admitir que já faça tanto tempo.

Ao contrário dos outros anos — quem em sã consciência pensaria comemorar 2006 como o Ano Nacional dos Desertos e da Desertificação? —, parecia que todos estavam comemorando. Mesmo um país como o Brasil, que naquele ano celebrava algo mais importante, a Anistia, parecia ver o Ano Internacional da Criança como algo único. Ou pelo menos assim parecia a quem, como eu, via na TV e nas revistas uma enxurrada de menções ao Ano, e a Declaração dos Direitos da Criança parecia estar em todo lugar. Declaração que vasculhei para tentar descobrir alguma coisa com que descolar algum dinheiro de meus pais; mas não que consegui mais que alguns argumentos vagabundos para eventuais manhas ineficazes.

As revistas em quadrinhos que eu comprava traziam o selo do Ano, comerciais de TV pretendiam amolecer os corações embrutecidos de adultos, que então deveriam se tornar suscetíveis àquela conversa boba de trazer de volta a criança que há em cada um de nós. Do ponto de vista de quem era criança em 1979, era como se de repente todo o mundo tivesse prestado atenção à nossa condição. Ser criança então parecia ser algo bom, e o mundo voltava seus olhos para nós. Parecia que éramos promovidos repentinamente, e de bibelôs incapazes nos transformávamos, finalmente, em gente pequena.

Para um menino criado no Porto da Barra a mensagem era destinada a gente como eu, que tinha casa, carro e motorista, e que merecia ter seu papel na sociedade reconhecido e valorizado. Sobrevalorizado, na verdade. O que quer dizer apenas que eu não entendia nada, e não sabia do drama das criancinhas africanas ou vietnamitas, não sabia que era a elas que se destinava a iniciativa da ONU. Sinceramente, e que me perdôem o meu coração insensível e cruel, o destino delas pouco me interessava; naquela hora outras coisas me chamavam a atenção, como completar a minha coleção de Playmobil do faroeste. As casinhas — saloon, drugstore — eram caras e eu nunca tive uma delas.

Pode parecer saudosismo bobo, mas nunca mais houve um Ano Internacional como aquele. Dois anos depois foi a vez de se comemorar o Ano Internacional do Deficiente Físico, e houve algumas tentativas de dar a ele algo da importância de dois anos antes. Mas o mundo gosta mais de crianças que de aleijados, porque crianças parecem, para alguns, o símbolo máximo da renovação, uma promessa ainda não cumprida. Essas pessoas que idolatram os párvulos parecem esquecer que Hitler também foi criança, e que Klara Pölzl teria feito um grande favor ao mundo se, ao ver que tinha um pão no forno, se tivesse entregado aos cuidados de uma fazedora de anjos.

Talvez seja. Mas eu, teimoso como todas elas me dizem, continuo achando que nunca mais houve um ano como aquele. E quem quiser provar que eu estou errado tem uma boa chance ano que vem, e pode comemorar, alegremente, o Ano Internacional da Heliofísica.

Bussunda

Agora que se passaram sete dias, dá para falar melhor do Bussunda. O Ina fez um belo post, como sempre; o Hermenauta evocou lembranças pessoais. Eu não tenho tanta coisa boa para falar.

Não da pessoa ou do mesmo do humorista, cujo talento é óbvio. Mas os obituários que correram nos últimos dias fizeram parecer que havia morrido o maior humorista brasileiro de todos os tempos, e isso não é bem verdade.

A Casseta Popular nunca foi grande coisa. Genial, mesmo, foi o Planeta Diário, da mesma época, com um humor mais inteligente e sofisticado. A Casseta Popular fez sucesso porque era escrachada, assumidamente boba, sem nenhuma vergonha do mau gosto. Por si só, jamais teria a capacidade de mudar a cara do humor brasileiro. Mesmo assim, ao lado do pessoal do Planeta Diário, aquela equipe desempenhou um papel fundamental na renovação do humor na TV, com parte do TV Pirata. Isso ninguém tira deles.

Mas essa renovação não durou muito tempo. Já em 1992, a Casseta (não lembro se já era Casseta e Planeta) fez duas piadas em sua revista que, em vista do que viria depois, me impressionaram. A primeira foi uma paródia da campanha da Rider — “Dê um descanso aos seus pés” — ilustrada por Nelson Piquet (que tinha acabado de destroçar o pé em Indianápolis) e Roberto Carlos, que nunca gostou de alusões ao fato de ter perdido um pé em um acidente de trem. Alguns meses depois, trouxe uma capa com o esqueleto de Ulysses Guimarães, recém-desaparecido em um acidente de helicóptero. Piadas de mau gosto? Talvez. Mas o humor não deve, jamais, obedecer a padrões de gosto. Humor é humor. Ponto.

O problema é que logo depois morreu Daniela Perez, e o Casseta e Planeta simplesmente não tocou no assunto.

Aquele era um prato cheio. Artistas. Galeria Alaska. Leopardos. Tesoura. Tatuagens penianas. O caso Daniela Perez poderia alimentar uma publicação humorística por meses. Pelos padrões que vinha mostrando até então, seria de esperar que o pessoal do Casseta e Planeta fizesse um carnaval sobre isso.

Mas Daniela Perez e Guilherme de Pádua eram contratados da Globo, como era a turma do Casseta e Planeta. Tudo bem que não tocassem no assunto em seu programa de TV, mas na revista eles teriam, teoricamente, liberdade para soltar o verbo. Mesmo assim jamais tocaram no assunto. A Globo tinha domado aquele pessoal, e eles tinham assumido compromissos demais.

A partir daquele momento eles perderam todo o interesse para mim. É fácil bater em cachorro morto. A palavra “irreverência” já não se aplicava a eles.

O mais grave na retrospectiva que fazem do Bussunda, no entanto, é que o Casseta e Planeta, hoje, estão superados. O novo humor televisivo é feito no Pânico, com seus roberts e mulheres samambaia. O antigo lema do Casseta e Planeta, “Jornalismo mentira e humor verdade” foi posto de cabeça para baixo pelo Silvio e pelo Vesgo. O Casseta e Planeta, com toda a importância que tenham tido nos anos 80, principalmente ao colaborar com um programa fundamental como o TV Pirata, hoje está na mesma situação que Chico Anysio naquela época: vendo que o seu tempo passou, que o futuro é de gente mais ousada e mais debochada.

Pequena reflexão sobre a natureza das coisas

Há dois gaviões por aqui. Passam voando diante da janela e então pousam no alto do edifício ao lado, entre antenas de TV e parabólicas e uma enorme caixa d’água.

São pardos, com as pontas das asas em tom mais claro.

Não os vejo de perto mas sei que são animais magníficos. Sei como são seus bicos redundantemente aquilinos, seus olhos também redundantemente de águia. Posso imaginar suas garras fortes, segurando suas presas enquanto seus bicos as dilaceram.

Quando eles passam voando pode-se sentir a sua força e a sua imponência na maneira como extendem suas asas e planam a despeito do vento. Gaviões personificam a única grande combinação de qualidades da Criação, aquela que nenhuma outra pode superar: liberdade e força. Aqui, neste pequeno canto do mundo perto do rio, eles são reis, voam acima de todos os outros, senhores de seus apetites enquanto os outros fazem apenas o pouco que podem: andam nas calçadas desviando das poças de chuva e dirigem seus carros se são humanos, esgueiram-se nos esgotos se são ratos ou baratas. Aos dois gaviões que voam por aqui sobra todo o resto, têm horizontes mais amplos que os de todos nós porque podem voar mais alto e ver mais longe, e mesmo que a maior parte das pessoas não saiba que eles estão aqui, esses dois gaviões são os senhores. Liberdade e força.

A senhora que mora ao lado tem um tucano de madeira em sua varanda. E quantas vezes um desses dois gaviões o atacou, num vôo rápido sobre a vítima putativa, tantas que a obrigaram a colocar uma rede na varanda, dessas que as pessoas, alegando proteger crianças, na verdade colocam para se proteger dos dissabores que um párvulo inconseqüente ou simplesmente bobo pode causar.

Mas ainda ficam os falcões de olho de olho na ave que julgavam apetitosa, porque é isso que eles são, predadores, e é essa a sua missão na vida e porque, como o escorpião da parábola, eles não podem evitá-la.

Ainda há pouco um dos gaviões estava no telhado de uma casa vizinha — a casa que tem uma mangueira no quintal. Segurava uma presa com as garras, presa que estraçalhava com seu bico redundantemente aquilino. Não vi a cena, cheguei tarde, mas posso imaginá-lo há alguns minutos planando calmamente até avistar a presa, mergulhar num átimo e capturar sua vítima, que não deve ter visto nada, não deve ter tido tempo para sentir medo, apenas sentiu as garras penetrando em sua carne.

Ali, no telhado da casa que tem um pé de manga no quintal, o gavião comia a lagartixa que tinha acabado de matar.

E daqui de cima, apoiado sobre as minhas duas pernas medíocres e braços no lugar de asas com pontas mais claras, sorri enquanto pensava que, com toda essa liberdade e com toda essa força, o magnífico predador comia uma lagartixa. Apaguei o cigarro e fui pegar um copo de coca-cola enquanto o gavião imponente se regalava com uma lagartixa, gavião de merda. Liberdade e força. Sei.

Os anos 90 vêm aí

Terça-feira e eu vou para o cinema com uma missão apenas aparentemente simples: escolher o filme mais bobo em cartaz, apenas para clarear a cabeça — acompanhado de uma senhora que tinha acabado de me mostrar que, com dois pauzinhos na mão e algum sushi diante dos olhos, se transforma na Madame Mãos-de-Tesoura e deixa o Johnny Depp se achando um mero alicate de unhas.

O filme escolhido, de acordo com esses critérios claros mas de difícil realização, foi “Apenas Amigos”, comédia romântica com uma moça que lembra muito a Michelle Pfeiffer quando ela ainda era novinha.

O filme é uma porcaria e, apesar das risadas eventuais, não merece um comentário. Portanto, foi ideal para aquilo a que eu me propunha: sair do cinema dizendo “oba, não pensei por hora e meia”.

Mas uma coisa me impressionou nele, e enquanto escrevo isto um calafrio percorre minha espinha, porque adivinho uma tragédia que já vi antes se desenrolar novamente diante dos meus olhos.

O filme tem início em 1995.

E então está começando. Eu, que ainda não consegui superar o revival dos anos 80 que me fazia ter pesadelos ao som do Menudo em que era perseguido por pares de calças jeans verdes e espancado por tênis quadriculados com cadarços rosa-choque enquanto o Ritchie gargalhava de maneira inequivocamente maníaca, agora me vejo às voltas com os princípios de um nova ressurreição. A dos anos 90, década que não parecia sequer ter acabado. Os anos 90 foram ontem. Mas eles morreram, foram enterrados por Osama bin Laden, e aqueles que cresceram nele se preparam para, como todas as outras gerações antes dela, contar as mentiras de sempre sobre aqueles anos tão dourados.

Foi um começo tímido e incompetente, como costumam ser os começos daquelas grandes ondas — quem levou a sério Ike Turner quando ele gravou Rocket 88? –, mas para alguém que ainda hoje pula assustado e tem convulsões aos primeiros acordes de Jump, do Van Halen, enquanto imagina Dave Lee Roth babando no microfone, os sinais são inequívocos. E aterrorizantes.

Os anos 90 vêm aí.

Vêm com festas ao som do Green Day, com “Almanaques dos Anos 90” contando que Kurt Cobain esbagaçou a própria cabeça e que no dia, sei lá, 12 de março de 1997 o mundo dançava ao som do Hanson e o Brasil batizava suas filhas com o nome da minhoca contorcionista, a Thalia. As pessoas vão lembrar como eram boas aquelas novelas mexicanas, Maria Mercedez, Maria do Bairro, Maria da Casa do Caralho. Os anos 90 vêm com adolescentes vestindo preto e tentando ser tristes no verão brasileiro. Como todas as retomadas, essa virá com o aproveitamento do que a década teve de pior.

Eu gostei tanto dos anos 90. Foram tão bons. A música melhorou, um mundo novo apareceu com o computador e as redes. O futuro era brilhante, e alguém mais otimista poderia dizer que depois do que havia começado ali nunca mais teríamos que voltar os olhos para trás, em busca de uma visão rósea do que teria sido o nosso passado. Recém-adultos mentirão para si próprios e tentarão se convencer de que a sua adolescência não foi tão ruim; pior, tentarão se convencer de que têm uma longa história para contar.

Os anos 80 voltaram ao cinema com Grosse Pointe Black. Era um filme melhor que “Apenas Amigos”. E se a qualidade de suas inaugurações significa alguma coisa, os próximos dez anos de revival dos fabulosos anos 90 serão absolutamente, completamente, desgraçadamente deprimentes.

Anti-semitismos

Senhor Rafael Galvão.
O senhor desconhece inteiramente a história do povo judaico e ousa ofender-lhe, com que direito o faz? Exijo que respeite a dor, o sofrimento deste povo que foi e continua sendo perseguido por pessoas como o senhor que tece comentários inverídicos, com que intenção? Quem é o senhor para falar do povo judaico, com que conhecimento de causa, não sabe nada. Que prove o que menciona em suas palavras maldosas para com o povo judaico!
Carlos Olguin Naschpitz

Eu não sei exatamente o que o sujeito, em seu comentário a este post, quer que eu prove. Se ele está falando das leis israelenses a que me referi, referências a elas podem ser encontradas nos jornais de agosto de 2003. Se se refere ao que chamo de crimes de Israel, os mesmos jornais trazem notícias sobre isso quase toda semana — mas Naschpitz pode achar que todos eles fazem parte de uma grande conspiração anti-sionista. Descontando-se a indignação tão dolorida de Naschpitz — com direito a ponto de exclamação no final –, seu comentário é vazio, choroso, sem substância.

(Naschpitz não está sozinho. No comentário anterior, Marília Julião Mendonça dá carteirada de “professora universitária de história” para dizer que não existem as tais leis israelenses a que me referi. Eu não queria ser seu aluno, porque ela é ignorante e não lê jornais. Também diz que um casamento entre judeu e alemão rebaixava o alemão de categoria em vez de proteger o judeu da barbárie hitlerista, o que mostra que ela tampouco sabe alguma coisa sobre a Alemanha nazista. Finalmente, tenta justificar quaisquer atitudes israelenses recorrendo ao cativeiro egípcio dos tempos de Moisés, e então vem uma vontade grande de dar um tapinha na sua cabeça, enfiar um pirulito em sua boca e mandá-la brincar na gangorra, tomando cuidado para não sujar o vestido.)

O comentário do Naschpitz apenas reforça a idéia por trás do post: a de que a acusação de anti-semitismo é sempre uma pecha quase sempre irresistivelmente fácil de jogar sobre quem não concorda incondicionalmente com uma imagem fácil e tendenciosa da problemática israelense-palestina.

O mais interessante — e aqui se saindo um pouco do tema do post original — é que não existe apenas “um” anti-semitismo. Posso contar pelo menos dois. Um deles, o ocidental, tem raízes em uma necessidade teológica do cristianismo. Se o judaísmo se negou a ver em Jesus Cristo o seu Messias, como havia sido profetizado, então ele precisava estar completamente errado para que a alegação de divindade de Jesus, no cristianismo primitivo, se legitimasse. Jesus tinha que ser Deus, e convenhamos que é preciso ser muito malvado para matar o Dito (Nietzsche tentou e acabou discutindo filosofia com os cavalos de Weimar). O cristianismo forçou uma identificação dos judeus com o Mal para garantir sua sobrevivência, e esse parricídio teológico é essa a origem de dois mil anos de perseguições e preconceito. Foi esse tipo de anti-semitismo que desembocou no Holocausto nazista e que se mostra latente ainda hoje. É talvez o tipo mais pernicioso, e certamente o que deu resultados mais tenebrosos.

Mas há outro tipo de anti-semitismo, com origens diferentes e muito mais complexas. O anti-semitismo que se fortalece no Oriente Médio, ao contrário do ocidental, tem bases bastante sólidas em uma longa história de guerras e agressões mútuas. E hoje é um processo que se desenrola tendo como elemento central um país que, sob a justificativa de seu povo ter sofrido o pão que o diabo amassou no Holocausto e ter sido atacado por vários países muçulmanos após sua fundação, oprime a Palestina de uma forma que, em muitos momentos, lembra a Alemanha nazista dos anos 30.

São situações diferentes, e que não estão necessariamente ligadas. No entanto, de acordo com raciocínios como o de Naschpitz, é tudo a mesma coisa: trata-se um mundo inteiro odiando os judeus a partir do momento em que levanta algum senão. Por sorte, esse não é o raciocínio — ou falta de — da maior parte dos judeus do mundo.

Por mais que os judeus tenham sofrido, por mais que tenham sido perseguidos, nada justifica a afirmação de Golda Meir: “Depois do que fizeram conosco, podemos tudo”. Não, não podem. Quem podia tudo eram os nazistas, e não se pode esquecer isso. Além disso, não se pode esquecer que há um momento-chave na geopolítica daquela região, a Guerra do Líbano: a partir dali, Israel passou a ser um país agressor. Isso faz toda a diferença.

É um equívoco muito grave esse tipo de esforço de santificação judaica, como se fosse um povo moralmente acima de todos outros. Primeiro porque não encontra bases na história — o Naschpitz deveria se informar sobre a participação importantíssima de judeus e cristãos-novos no tráfico negreiro para o Brasil, por exemplo, e depois discutir o que parece ser seu conceito de “ética por direito divino”. Há bons e maus judeus como há bons e maus cristãos, muçulmanos e macumbeiros, e ao longo da história a perseguição execrável ao judaísmo não impediu o progresso material de muitos indivíduos, mesmo quando de maneira eticamente discutível. Naschpitz poderia tentar descobrir o que eram os comboeiros nas Minas Gerais do século XVII, por exemplo.

Mas o pior aspecto em tudo isso é o incentivo a uma idéia de diferença irreconciliável entre “raças” que, em momentos históricos específicos, pode gerar resultados inversos e resultar, se não no Holocausto, na repetição das condições objetivas que o geraram. E é isso que esse pessoal, cegos guiados apenas pela promessa de Deus a Moisés, não consegue enxergar.

Reconciliação

Eu detesto comprar roupa. Detesto ficar rodando de loja em loja atrás de alguma coisa, detesto experimentar roupa para ver se veste bem, detesto comparar preços. Detesto, acima de tudo, vendedoras me rodeando com ar solícito, precisa de alguma coisa, senhor?, e eu com aquela cara de pobre que não sabe como foi parar em festa no Jockey, prestes a pedir socorro.

Minha sorte é ter tantas mulheres em volta de mim que fazem a caridade de comprar essas roupas. Minha vida fica mais simples assim. Elas já sabem do que eu não gosto. Elas compram, eu visto, se ficou bom eu fico.

Uma namorada, há alguns anos, dizia que eu tinha vocação para paxá. Vai ver ela tinha razão, ainda mais quando penso nas circunstâncias em que disse isso. Mas paxá não sou, e a vida tem suas exigências, quase intoleráveis para quem poderia prescindir desse cotidiano inapreensível. Eventualmente vejo uma coisa de que gosto muito, entro na loja, peço o meu tamanho, pago e levo embora, e tento ser rápido o suficiente para evitar ser soterrado por aquele desvelo profissional e sufocante. Minha experiência de compras se resume a isso, e de mais não sinto falta.

É um caso grave de incompatibilidade que não pode ser solucionada, e não tenho nenhuma esperança de vir a sentir algum dia essa paixão por roupas, não importa quantos anos eu viva, ou em quantas lojas entre.

Mas quando paro em frente a um sebo eu finalmente entendo o que elas sentem diante de uma loja de roupas com suas etiquetas anunciando promoções tão sedutoras, e nossos espíritos, por um instante, se reconciliam.

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Só Deus sabe quantos livros a respeito dos Beatles existem por aí.

Essa é uma listinha sucinta dos mais importantes deles.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewisohn
Foi lançado em 1988, comissionado pela EMI como parte das comemorações pelo seu centenário. Acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são até hoje. É um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou a bíblia dos beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas, e mesmo alguns erros. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia a dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos. Nunca foi lançado no Brasil.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewisohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda. Se eu tivesse que comprar apenas um livro sobre a banda, seria esse. Nunca foi lançado no Brasil e passou um bom tempo fora de catálogo, mas vale a pena comprar via Amazon.

The Beatles
Hunter Davies
É a biografia oficial dos Beatles, e durante muito tempo foi o livro mais importante sobre a banda. O tempo passou e ele se tornou meio redundante, e com várias informações falsas, mas ainda assim é um documento importante. Foi a Hunter Davies que McCartney ligou, de saco cheio do que considerava ataques de Yoko Ono, para dizer que ninguém lembrava das vezes que Lennon o magoou e que ele sabia ser “um porco manipulador”. É o tipo de livro que se compra porque se fala dele há quase 40 anos, e basicamente só por isso.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil, lançados apenas na Inglaterra e que fazem parte dos meus xodós), é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É bem aceitável, apesar de eles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar. Independente disso, é um livro fantástico como objeto. (Alguns anos depois os Stones lançaram a sua versão de autobiografia, como não podia deixar de ser. Mas nela a diagramação deslumbrante do Anthology foi substituída por um layout burocrático e sem graça. Típico.)

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko). Portanto este é um relato de insider — cheio de todas as fofocas imagináveis. Foi o primeiro livro a revelar, de forma razoavelmente confiável, o lado negro da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. É ideal para quem gosta de baixaria. E quando se trata de Beatles, eu gosto.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles. Mas isso não ilude ninguém. O livro é, na verdade, a autobiografia de Paul McCartney; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca se sentisse mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. De qualquer forma, é um daqueles livros fundamentais para a compreensão da história dos Beatles. A versão brasileira é melhor que a minha, porque tem alguns acréscimos feitos depois da morte de Linda McCartney.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
É o livro mais recente sobre a banda, e pelo que dizem um dos mais completos. A crítica se divide sobre ele, e como ainda não li, não posso falar muita coisa além de repetir o que dizem: é abrangente mas contém erros. Se alguém quiser me dar de presente, sinta-se à vontade.