Do esquecimento

Durante muito tempo, em vez de deitar-me cedo, eu apenas não soube de verdade o que significava a palavra esquecer. Via nos filmes alguém se despedindo e dizendo “eu nunca vou esquecer você”, e então me pegava pensando que idiota, claro que não vai esquecer, depois de passar por tudo isso é impossível esquecer.

Foi só ao ver uma cena semelhante pela enésima vez que eu finalmente entendi. A TV passava “Dança com Lobos” e Kevin Costner se despedia de Graham Greene: “Eu nunca vou esquecer você”.

Eu já estava mais velho, já conhecia um pouco mais dessa humanidade impossível de conhecer de verdade. Foi só então, aí pelos vinte e poucos, que entendi o que se quer dizer com isso: não é esquecer a pessoa, que isso não se esquece, mas nunca deixar morrer o que se sentia por ela. É o tipo de coisa que só quando você passou por um bocado de gente na vida pode entender de verdade.

E é esse o problema das gentes, o fato de que no fim das contas todos seremos esquecidos. Eu tento conviver com isso; mas sei bem que a ilusão de que seremos lembrados ajuda a dar um sentido à vida. Imagino que para algumas pessoas a consciência real de que não há memória, só há esquecimento faria da vida algo um pouco mais triste, talvez até a fizesse não valer a pena.

A essas pessoas deve ser vedada a entrada em cemitérios. Porque um cemitério é isso, é esquecimento, e se disserem que é outra coisa estarão enganando você. Um cemitério é um lembrete constante de que você será esquecido, irrevogavelmente. E será esquecido apesar dos seus esforços, tão mais ridículos quanto maiores forem, de tentar ser lembrado.

As pessoas erigem monumentos, botam estátuas de anjos e de santos para guardar seus ossos inúteis, colocam na pedra ou no bronze seus nomes, colocam até panegíricos que ultrapassam o limite do ridículo, ostentam os títulos que lhe orgulhavam e lhe engrandeciam aos seus próprios olhos. Fazem o que está ao seu alcance para alcançar uma imortalidade, se não na alma, pelo menos na memória e nos tempos deste mundo.

E no entanto eles serão esquecidos, e se forem lembrados será para serem ridicularizados, olha que idiota, tanta pompa e tanto dinheiro gasto para nada, quem esse merda achava que era, fulano de tal, que diabo ele fez para achar que lembraríamos dele?

No começo do ano vi uma pequena multidão diante de um túmulo novo no Pére Lachaise. Flores, muitas flores, inclusive uma coroa do Olympia. Devia ser um artista.

Artista morre a três por quatro, normalmente velho, esquecido e fora da ribalta, mas aquele pelo visto era alguém, porque o tanto de flores e o tantinho de gente à sua volta eram um atestado, senão de glória, pelo menos de fama.

Um sujeito jovem, drogado e bêbado, trazendo na cara loura e de traços grosseiros marcas de uma ou mais brigas recentes, era um dos mais comovidos. Estava em pé diante do túmulo e pela bagagem que carregava tinha vindo de longe apenas para prestar ao falecido uma última homenagem, talvez para adorar seu novo santo em seu próprio altar.

Perguntei a uma moça velha também parada ali quem era o ilustre defunto, quase pedindo desculpas por não saber quem jazia ali, e a senhora não sabia. Então o sujeito veio falar comigo, e como eu só gosto dos malucos da minha terra larguei um jenecompranpá, um aidonspicfrentch, e para ter certeza de que ele compreendeu mandei também um balançar de cabeça e um dar de ombros e levantar de mãos súplices. E quando ele viu que eu não entendia, ele também deu de ombros, e voltou a sua atenção ao pequeno jardim à nossa frente.

Ele olhava o túmulo como a Rosinha de Caymmi olhava o mar, Rosinha que era bonita e agora parece que endoideceu, na beira da praia, olhando pras ondas, andando, rondando, dizendo baixinho “Morreu… Morreu…”, e eu que não endoideci nem nada olhava para ele, esperando a hora em que iria desmaiar ou morrer de overdose ali, um pequeno sacrifício romântico e estúpido diante do altar do seu ídolo.

Um velho gordo, baixinho, com aquela cara de provinciano do vale do Loire, passou pelo sujeito e viu o aglomerado e disse em voz alta que o morto não era ninguém, não era nada. E o rapaz se irritou, porque a gente não mexe impune com a fé dos outros, e começou a discutir com o velho, ele era um grande compositor, um gênio lírico, um grande cantor, um grande ídolo e modelo da juventude, e o velho gordote e baixinho sem tirar as mãos dos bolsos deu também de ombros e soltou aquele pequeno flato oral que franceses gostam de soltar e se afastou.

Eu me afastei também.

Mais tarde eu descobriria quem era o sujeito. Se chamava Alain Bashung, era conhecido como “le dandy du rock” apesar de já ter passado os 60 anos, tinha morrido uma semana antes. Em vez de viver rápido, morrer cedo e deixar um cadáver bonito, como sói fazer qualquer roqueiro que se respeite, morreu em idade quase provecta de um câncer prosaico, e morte por câncer na velhice é morte indigna de roqueiro, mas fazer o quê, os tempos mudaram muito desde a época em que Jim Morrison, enterrado ali perto, morria por excesso de vida. Diziam as capas das revistas que Bashung era um grande ídolo — e talvez fosse mesmo, e me disponho a admitir isso porque certamente não conheço todos os grandes ídolos universais que existem por aí.

Daqui a 50 anos o túmulo de Bashung provavelmente estará esquecido como outros tantos no mesmo Pére Lachaise. E o ardor do seu fã embriagado e entorpecido não terá significado nada. Diante do túmulo de Bashung, onde num dia de março do início do século um garoto fora de si quase brigou em defesa de sua memória, um bocado de gente vai passar e vai dar de ombros, se sequer se der a esse trabalho, como hoje diante do túmulo dos generais e políticos e escritores e gente que se supunha imortal e inesquecível — algo de que o tempo discordava.

Palavras como medo, vergonha e orgulho

E daí que eu estava escrevendo um texto hoje e me faltou uma palavra.

Isso acontece de vez em quando. A palavra mais simples, mais comum me falta, dela fica apenas uma sombra pálida. Durante alguns segundos eu fico angustiado porque esqueci palavra tão boba; ficaria alguns minutos assim se não fosse a minha preguiça, aquela que me faz procurar logo um sinônimo. Não precisa ser um sinônimo perfeito. Le mot juste que se foda, que Flaubert era um vagabundo que não tinha o que fazer e podia passar dias rolando no chão e espumando pela boca atrás de uma palavra. O que vier para mim está bom.

Então por alguns segundos ela ficou ali, flutuando em algum lugar do éter, mas quando eu olhava para ela a desgraçada desaparecia; parecia um tipo particularmente irritante de mulher, aquelas que jogam charme apenas para depois sair graciosamente de seu alcance. Era uma palavra simples, e sabia que começava com “con”. Con-alguma coisa-ar.

Belial apareceu nessa hora e soprou uma palavra no meu ouvido. O diabo da palavra que me apareceu foi “conjuminar”.

Eu teria vergonha de, algum dia, escrever conjuminar. Não sei nem onde aprendi uma palavra dessas — deve ter sido junto com outras palavras de baixíssimo calão que me ensinaram na rua e que reservo para momentos especiais na vida, como xingar a mãe de alguém de quem eu realmente não goste. Meu repertório de palavrões é particularmente invejável; mas “conjuminar” deve ter sido esquecido porque há limites que eu não ouso ultrapassar.

Não faço idéia do que se passa na cabeça de uma criatura que se sujeita a escrever, em sã consciência e em quaisquer situações, a palavra conjuminar. Preferia inclusive continuar sem saber, porque os grotões da mente humana são escuros e assustadores, são como pequenas caixinhas de Pandora que uma vez abertas espalham a dor, o medo e a vergonha entre os viventes.

Talvez por isso eu sempre tenha tido orgulho de nunca ter escrito essa palavra. Talvez porque eu não tenha lá muitos motivos de orgulho da vida. É olhar para trás e ver um bocado de bobagens, um bocado de coisas erradas que fiz e das quais, se eu tivesse um pouco de vergonha na cara, deveria me arrepender.

Mas até agora eu tinha orgulho de jamais ter escrito ou mesmo conjugado mentalmente a palavra conjuminar. Alguém pode dizer que grandes merdas ter esse orgulho, milhões de brasileiros tampouco escreveram conjuminar alguma vez em suas vidas, e nem por isso vêm se vangloriar disso; que conjuminar é palavra bestial utilizada apenas por advogados e escritores de academias de letras, que orgulho deve ter é quem jamais mandou alguém se foder, porque resistir a essa tentação é tão mais difícil quanto mais os anos passam. Mas cada um tem os orgulhos que pode ter, bobos ou não, e eu tinha orgulho de nunca ter escrito conjuminar.

Mais que orgulho, mais que vergonha, eu tinha medo. Porque lá no fundo sempre tive a certeza irracional de que, se escrevesse essa palavra maldita, se sequer pensasse nessa palavra hedionda e tenebrosa, a minha decadência se aceleraria e um dia, diante de uma neguinha organizadinha que passasse balançando as ancas por mim, eu arranjaria minha melhor cara de pau, meu melhor sorriso e diria a ela “Bora ali, fia, conjuminar nossos corpos”, e então não haveria mais volta possível.

Esse orgulho que me sustentou durante tanto tempo começa a morrer hoje, porque eu pensei nessa palavra, ousei pensar em vocábulo tão chulo que envergonharia até o marinheiro mais baixo, e agora o inferno está aberto para mim.

Pequeno post melancólico e quase nostálgico

O Idelber vai voltar. Ele já parou antes e voltou, deixa só a barra folgar um pouco e ele volta, nem que seja para escrever sobre o melhor time que ele já viu em sua vida, o Flamengo de Zico e Leandro e Adílio e Júnior e Andrade.

Mas a sua despedida, neste momento, faz com que eu lembre que o tempo está passando, e passando rápido. Se o Idelber parasse sozinho eu não acharia nada, mas aí vou ao blog do Bia e não vejo nada, e o do Ina e não vejo nada, e o Bruno parece ocupado com outras coisas.

Os ciclos de vida parecem mais curtos aqui. E agora eu paro e me lembro daquele inverno de 2005 — o inverno de que Serge Gainsbourg fez a trilha sonora, o inverno das brigas na blogoseira, dos astrólogos de Maria e pseudo-feministas no meu pé, dos encontros histéricos no Rio onde o Alex lambia os pés de uma lourinha antes de ir para os estrangeiros fugir de furacões, e o Doni que tinha tempo para aparecer de surpresa no Rio, e o Hermê que mandava malucas para o hospital a beliscões, e a Tata que ainda era carioca de Copacabana com o sotaque de zona sul, e a Carol que chicoteava os moços e dizia “não vá colocar isso no seu blog!”, e o Bia que tentava comer todo mundo fazendo experimentos com pequenas pílulas azuis e se sentindo uma mistura de Aldous Huxley e Jack Kerouac.

É engraçado lembrar disso, porque hoje o Alex é um sujeito que agora sabe que o racismo existe, e a Carol também foi para lá longe porque a ninfeta do demônio cresceu e encontrou o homem de sua vida e resolveu ir para onde ele fosse, e o Doni é um psicólogo que chega para as meninas da faculdade e joga um “quer ver o tamanho da minha subjetividade?”, e o Bia é um homem sério que trabalha o tempo todo e empresta sua cara à TV e daqui a pouco vai estar fazendo churrascos para os amigos no quintal de casa, conversando sobre qual carro é melhor para uma família daquele tamanho, e eu continuo aqui na minha cidadezinha, olhando da varanda o rio que corre aqui em frente e tentando adivinhar se hoje vai ter vento.

E aí, enquanto a gente olha em volta e vê que todo mundo cresceu, fica a sensação de que é tudo tão chato, todo mundo falando as mesmas coisas com a mesma seriedade e a mesma sensação de importância, um bocado de gente se levando a sério demais e valorizando em excesso seus poucos caraminguás, que a blogoseira anda tão chata. Mas nunca é bom esquecer que quando alguém acha algo chato, pode ter certeza de que há 50% de chances de que o chato seja ele. Na verdade as chances são maiores, bem maiores do que eu gostaria que fossem, e a história parece ter superado todos nós.

Assim estamos todos morrendo, porque parece que nessa blogoseira tudo é rápido demais, que as pessoas vivem aqui em um ritmo diferente daquele lá fora, e nascem e crescem e morrem rapidinho como efêmeras, e a sua morte nunca é um câncer tomando conta do fígado, ou um corpo jogado numa esquina, é apenas cansaço e desistência, e ao perceberem isso elas lembram como a vida lá fora é tão melhor e mais pragmática. E se alguém perguntar ao Bia se existe vida após a morte ele vai dizer que sim, que depois de morrer virou um senhor burguês que junta a família para assistir à Bela Adormecida nos sábados à tarde.

É o spleen de fin de siècle, versão blogoseira. Mas como não tem Baudelaire para escrever um poema, ficam só os arquivos do Blogger e do WordPress e do Movable Type, e pairando sobre eles uma certa falta de vontade de escrever, uma sensação de que afinal de contas tudo o que tínhamos para dizer já foi dito e redito. Um cansaço que agora parece atávico, uma sensação de que não há nada a fazer diante do w.bloggar. E aí, vou escrever o quê? O Bia desistiu há meses, o Alex não se preocupa mais com suas prisões, agora o Idelber resolveu parar.

De repente me vêm à visão os 80 anos, os meus 80 anos, e me vejo pedindo a prostitutas feias e já em fim de carreira que fiquem mais um pouco, que conversem comigo. Sobre qualquer coisa. Que inventem uma história sobre como foram parar nessa vida, que dêm a um velho sozinho e solitário um pouco de companhia, algo pelo qual ele tem que pagar por causa de tudo o que fez em sua vida.

Aí eu começo a rir, porque essa do velhinho foi de matar, e se minha mulher ler isso vai me encher de porrada.