Israel

O Riponga deixou um comentário a um dos posts sobre a situação na Palestina. Eis um de seus argumentos:

Israel é um estado opressor por tentar combater o terrorismo de todos os jeitos que puder, passando dos limites considerados aceitáveis para poder impedir que inocentes do seu lado morram porque algum maluco decidiu encontrar Alá mais cedo de forma que mais alguns encontrem, e, sua familia seja paga para isso.

Riponga, esse argumento não leva em conta algo muito simples: as razões pelas quais palestinos se dedicam ao terrorismo. Não explica por que os palestinos estão dispostos a morrer em uma guerra que não parece ter um fim próximo. Fundamentalmente, esquece que Israel ocupa muitas áreas na Palestina, tendo realizado um movimento contínuo de ocupação e colonização ao longo das últimas décadas, tentando tornar o processo irreversível. A não ser que você me dê outro nome, isso se chama expansionismo.

Claro que se pode argumentar que esses territórios foram conquistados em guerras nas quais Israel apenas se defendeu. Mas, a esta altura do campeonato, utilizar um argumento histórico desse é loucura, porque aí as pessoas vão se lembrar que o Estado de Israel foi criado em 1948 ocupando grande parte daquela área, e que os palestinos foram os grandes perdedores naquela ocasião. É uma situação complexa, em que ambos os lados têm suas razões. Mas que invalidam esse tipo de argumento. É fácil esquecer, por exemplo, que após a Guerra do Líbano Israel deixou de ser o país lutando pela sua sobrevivência para se tornar um país imperialista, expansionista e mesmo assassino, como lembra bem quem estava vivo na época do massacre de refugiados palestinos em Sabra e Chatila.

A atual intifada tem suas origens imediatas em dois episódios. O primeiro é o fracasso das negociações em Camp David, julho de 2000. Ali Ehud Barak (apesar de ter se recusado a discutir com Arafat e deixado a tarefa a seus assessores) fez as maiores concessões israelenses até agora: ofereceu 97% dos territórios — ainda que entrecortados de colônias israelenses — e a autodeterminação das áreas palestinas em Jerusalém. Só esqueceu de uma coisa: já fazia tempo que Arafat tinha concordado em estabelecer o novo Estado palestino na Cisjordância e em Gaza. Aquele que o acusam de intolerância e de querer emperrar o processo de negociação de paz esquecem que esses territórios representam apenas 22% da Palestina original. Ele não podia aceitar menos que 100% do que pedia então. Sem falar em outros pontos de que os israelense sequer querem ouvir falar, como a volta dos refugiados palestinos.

O segundo foi a visita canalha de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, no mesmo ano, tão obviamente destinada a irritar os palestinos e garantir a vitória dos radicais do Likud nas eleições de fevereiro de 2001 que já virou ponto comum.

Até onde eu sei, genocídio significa “extermínio de grupos humanos”. É simplismente inaceitável voce comparar o que Israel está fazendo com que o fizeram com os judeus na europa antes e durante a Segunda Guerra Mundial. A partir do momento que voce fala “Claro que se pode dizer que não há comparação, que Israel não construiu campos de morte como Auschwitz e Dachau.” não existe genocídio, ok?

Isso quer dizer que no Sudão também não existe genocídio, é isso? Porque lá também não há máquinas de morte como as que estruturaram o Holocausto. É só neguinho matando neguinho.

Eu não compreendo, e não aceito, a utilização do Holocausto como justificativa para os atos recentes de Israel (Golda Meir: “Depois do que fizeram conosco, podemos tudo”). É simples assim, e não acho sensato, para ninguém, que um crime contra tudo aquilo que nos faz humanos seja apropriado por uns setores radicais de um povo e reduzido a um crime contra uma nação — talvez não seja pouco, mas isso o torna muito menor do que realmente foi.

No fim das contas, acho que poucos povos têm o valor dos judeus, por sua capacidade de se manterem como nação mesmo durante séculos de perseguição. Eles não precisam ficar eternamente conhecidos como os coitadinhos de Auschwitz (e se irritar quando alguém tenta lembrar que não foram apenas judeus os perseguidos pelo nazismo: no início dos anos 90 alguém quis fazer uma exposição em Nova York sobre o destino dos homossexuais nos campos de concentração; a gritaria de judeus ortodoxos foi tão grande que a exposição foi cancelada. Isso me faz lembrar que ser judeu na Alemanha era ruim, mas ser judeu, gay e polonês era muito pior). É necessário perceber que a dor do Holocausto não justifica sua postura imperialista e canalha no Oriente Médio.

Voce está generalizando ao falar que desde que a criança sai da barriga da mãe já é ensinada a odiar Palestinos ou o contrário (Palestinos nascendo já com ódio de Israelenses).

Quanto a isso, é claro que estou generalizando. Ninguém vai esquecer que existem grupos pacifistas em Israel e na Palestina, como o Gush Shalon citado pelo Idelber. Nem que a maioria desses dois povos quer desesperadamente a paz. Mas a história é uma grande generalização.

Agora, compre uma passagem e viaje para Israel e conheça um pouco o único país democrático no Oriente Médio.

Me desculpe, mas isso não significa absolutamente nada. Os Estados Unidos são um país altamente democrático, também. Na verdade, são o grande modelo da democracia em todo o mundo, desde sua fundação. Mas vá dizer isso aos iraquianos.

Quanto à passagem, deixa o pau parar de comer que eu vou. Sempre quis conhecer Jerusalém.

John Lennon

John Lennon esteve em extrema sintonia com o seu tempo, e muitas vezes à sua frente. Ele se achava um gênio; provavelmente era. É muito para se dizer de um artista pop, mas a poucas pessoas no mundo do showbiz esse epíteto se aplica tão bem. Lennon foi parte do que se pode chamar de o primeiro grande fenômeno de massas produzido pelo marketing moderno, e o único que, ainda em termos de mídia, sobrepujou o rótulo que veio daí.

Mais do que produto de marketing ou gênio, entretanto, ele foi um produto de sua época. Uma época conturbada, rica em mudanças e em estremecimentos sociais, da qual o beatle foi, ao mesmo tempo, causa e efeito.

Para Lennon, tudo ocorreu no momento exato. Foi ingênuo quando a juventude, que surgiu como mercado consumidor e como grupo social com características próprias durante os late fifties, se consolidava como segmento social e como mercado consumidor; psicodélico quando essa mesma juventude começava a acreditar no que diziam que ela era e tentava moldar o mundo àsua imagem e semelhança; iconoclasta quando esse psicodelismo dava os sinais mais prementes de exaustão e o mesmo mundo que tomou um porre de juventude entrava em ressaca — e descobria que ressaca não mata; radical de esquerda quando os reflexos de 68 tomavam corpo e preparavam Watergate. Finalmente, saiu de cena para cuidar do seu filho, quando a geração à qual fornecera a trilha sonora crescia e começava a perceber que o mundo, afinal de contas, não havia mudado tanto assim, e que, ora bolas, ninguém era muito diferente dos seus pais — o que significava encarar o mundo e ter que ganhar a vida. Ou seja: entrar no establishment, daquele mesmo jeitinho tão criticado. Grand finale: morreu antes de entrar em decadência e ser ultrapassado pelos mais novos rebentos da juventude.

Os eternos fãs de Lennon se lembrarão para sempre de um homem à beira dos 30 anos, com cabelos castanhos compridos e óculos redondos com grau fortíssimo. A grande maioria nunca ouviu falar do quase delinqüente juvenil dos anos 50, em Liverpool, e faz questão de não levar a sério o ídolo pop que em tudo lembrava o Menudo. Os Beatles provavelmente ficarão para sempre na história mundial, mas cada dia menos se falará que eles, em suas turnês, eram obrigados a seguir todo o roteiro da bajulação: davam abraços a torto e a direito em prefeitos, crianças e socialites feias como o pecado, nos mais assombrosos grotões do mundo. Tampouco lembrarão que perto do fim dessas turnês, já não conseguiam lotar os teatros e estádios nos quais apresentavam a mesma fórmula batida. O aspecto comercial dos Beatles será relevado em favor do grande mito que alimenta a indústria, talvez com razão.

Na verdade, música pop não passa muito de indústria. Uma indústria que teve seus alicerces modernos plantados pelos Beatles. Mais que qualquer outro, Lennon tinha consciência disso. Tanta que, ao ser fisgado de verdade pelo sonho hippie, fez o possível para negar o seu passado, e mostrar ao mundo que o sonho havia acabado — o sonho dele, provavelmente porque já havia nascido maculado, a partir do momento que ele podia ver como a indústria alimentou e praticamente criou esse movimento. Nada era tão belo como pensavam. E isso só aconteceu porque, mais do que ninguém, Lennon acreditou no sonho enquanto paradoxalmente tentava destruí-lo.

***

Não fosse o rock and roll, Lennon estaria fadado a ser um operador de guindaste no porto de Liverpool. Era filho de uma mulher que, em qualquer tempo, seria conhecida como meio maluca — já pesou sobre ela a acusação de ter sido prostituta — e que não foi minimamente responsável pela sua criação. John Winston foi criado por uma tia em um bairro de classe média baixa. Aos quinze anos, já tendo a sua bandinha chinfrim de skiffle, conhece um garoto um pouco mais novo que entretanto toca melhor do que ele: Paul McCartney. George Harrison — que toca guitarra melhor do que os dois — entra logo depois. Juntos, conseguem tocar na zona do cais de Hamburgo, Alemanha Ocidental — lugar tradicionalmente reservado a ladrões, prostitutas, malandros e trabalhadores braçais. São oito horas de música por noite, regadas a cerveja e anfetaminas. O conjuntinho de Liverpool foi obrigado a se superar continuamente.

Os Beatles foram para Hamburgo com a nada recomendável fama de serem uma das piores bandas de Liverpool; voltam como a melhor. A barra pesada de Hamburgo, a necessidade de tocar muito alto, muito rápido, muito tempo os ensinou a fazer música. Em Liverpool, constroem aos poucos sua fama e conhecem um sujeito chamado Brian Epstein. A partir desse encontro os Beatles começam a se tornar o maior fenômeno da música mundial.

A primeira providência tomada é mudar as roupas. Casacos e calças de couro são coisa de marginal, e mais que isso, fazem parte do imaginário dos anos 50, algo já ultrapassado. Os Beatles devem se apresentar bonitinhos, mansos. Depois vem a mais difícil: colocar para fora da banda Pete Best. Não era um grande baterista, não se adequava à identidade visual desejada por Brian Epstein, e não era agradável aos outros Beatles, embora fosse muito amigo de Lennon. Em seu lugar entra Ringo Starr, que de várias formas completa aentidade que seriam os Beatles.

Hoje se torna difícil imaginar o que os Beatles representavam em 1964. Eram mais que a combinação de boa música e bom marketing — uma combinação perfeita, embora às vezes o marketing parecesse encobrir o lado musical; mas basta ouvir uma canção como I Want to Hold Your Hand, que não se parece com nada feito antes, para ver que os Beatles tinham algo de realmente diferente. É fácil, hoje, desdenhar da sua música, que parece ingênua: mas aquilo era revolucionário, quase tanto quando os delírios psicodélicos de alguns anos depois.

O fenômeno chegou a tal ponto que nos shows os próprios Beatles não conseguiam ouvir o que estavam cantando ou tocando. Lennon, irritado, dava vazão à sua frustração por ir de aeroporto em aeroporto sem saber muitas vezes onde estava, por viver em função de algo diferente do que eles haviam sonhado como a vida de um superstar, xingando os fãs fora do microfone.

Isso levaria ao fim das excursões, e parecia ser o fim dos Beatles. Não foi, pelo menos não imediatamente: ao darem uma guinada artística, priorizando a música ao marketing, os Beatles se tornaram não só a maior, como também a melhor e mais influente banda de música popular do mundo.

Mas antes disso Lennon disse que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Uma frase que era um misto de verdade e de bravata, mas que causou uma série de reclamações, que os Beatles, intimamente, ridicularizavam. Não era para menos: os protestos, em sua maioria, consistiam em bandos de crianças ao lado de disc jockeys de meia idade, pisando em capas vazias dos discos deles. Em apenas um show a ameaça se tornou séria, com alguém dizendo que iria atirar em Lennon. Profissionais exemplares, eles fizeram o show, esperando um tiro que não veio.

O fim dos shows, que seria um dos ingredientes que levariam ao fim dos Beatles três anos mais tarde, deixou a banda livre para ingressar na vanguarda da música popular. Eles deram um novo rumo à sua música e à música pop de todo o mundo, ao se adaptarem a uma percepção de mundo que eles mesmos ajudaram a criar. A juventude atinge sua maturidade e o mundo dos caretas com mais de 30 anos passa a ver neles uma excelente fonte de renda. Os hippies e a contracultura viraram uma das melhores armas da indústria; e embora ninguém percebesse, o sonho na verdade era natimorto.

E então os Beatles acabam, dando os primeiros indícios de que uma era chegava ao fim; depois foram as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, três das mais importantes figuras da pop scene. Os anos 60, que haviam começado por volta de 63 — com o movimento encabeçado pelos Beatles, claro — chegavam ao início do fim em 1970.

Em tudo isso, Lennon era uma das figuras de frente. Era oficialmente o líder dos Beatles, por ser o responsável por algumas das mais cáusticas declarações dos Beatles e por ter sido ele quem, afinal de contas, havia começado tudo, embora nos bastidores a coisa não fosse bem assim. Paul McCartney, que nos anos 90 compôs duas peças (medíocres, é verdade) de música erudita, se afirmava como um dos maiores melodistas e baixistas do rock, além de ser o mais interessado nas técnicas de estúdio. Ele foi ainda responsável pelo projeto mais ambicioso dos Beatles, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, considerado ainda hoje, quase 40 anos depois, o mais importante disco de rock, e pela concepção do disco tecnicamente mais perfeito dos Beatles, o Abbey Road. Paul McCartney, ao que parece, era o líder musical dos Beatles — embora até hoje não se saiba, e provavelmente jamais se saberá, o que realmente acontecia dentro do conjunto. É mais sensato achar que os Beatles funcionavam como uma máquina bem lubrificada em que uma parte era indissociável da outra.

Mas era Lennon quem conseguia estar completamente antenado com o que o mundo queria. Sabia que o mundo não queria apenas música. Sabia intuitivamente o que falar e quando falar. E realmente se identificava com tudo o que interessava. Era o ícone de uma geração anestesiada e profundamente ingênua, que fazia de roupas espalhafatosas e de cigarros de maconha símbolos de rebeldia. Um dos principais artífices do que se convencionou chamar “anos 60”, Lennon, também ele, acreditou no faz-de-conta. E com o esgotamento do ideário hippie, Lennon ficou perdido.

Nisso ele não era diferente do restante de sua geração. A maioria ignorou o movimento hippie, como os jovens de dez anos depois ignorariam o movimento punk, como a maioria da juventude ignora a maioria dos movimentos, recebendo apenas os reflexos esmaecidos que são absorvidos pela sociedade. Uma boa parte atravessou essa era como quem atravessa uma crise de adolescência. E alguns entraram de cabeça e saíram por aí para ver se encontravam o tal mundo melhor. Desses, a maior parte desistiu quando viu que o caminho era longo e que nem mesmo sabiam direito qual era. Uma parte pequena afundou nas drogas, e não foram poucos os que não voltaram à tona. No fim das contas, a maioria aprendeu a se conhecer melhor e a se definir no mundo, por sua vez aparentemente modificado pela sua ação.

Para conseguir acompanhar o ritmo de sua geração, Lennon tomou LSD e heroína, fez terapia, tentou de tudo. No fundo, a única coisa que ele sabia fazer era expressar o que havia de melhor e de pior em si através da música. Além disso, como beatle ele havia provado o gosto do sangue. Não adiantava querer negar: John Lennon era um pop star, talvez o mais anatemático deles. E o seu maior trunfo, uma marca absolutamente pessoal que o distinguiu do resto do cenário pop de todos os tempos, era a extrema capacidade de se mostrar ao seu público e de se tornar o modelo máximo de identificação de sua geração.

O seu primeiro disco solo, o LP Two Virgins, gravado e lançado ainda durante o tempo dos Beatles, leva essa característica ao extremo. A capa, única em toda a história da música pop, mostra Lennon e Yoko nus, o máximo de exposição a que alguém pode almejar. Era assim que eles eram, era assim que todos deviam ser. Não interessava se o conteúdo do disco era insuportável; na época dizia-se que era vanguarda. Como não vingou, pode-se dizer que era apenas delírio.

O segundo disco continua essa tendência: a capa mostra Lennon deitado ao lado de Yoko em um hospital, e o disco mostra as batidas do coração do filho (morto durante essa sessão no hospital) e um desabafo do beatle John sobre o seu cotidiano e sobre a falta de camas nos hospitais ingleses. A letra em si não tem nenhuma qualidade literária; é só John Lennon mostrando o que sente para o seu público. O resto é a barulheira habitual. O terceiro, o Wedding Album, é mais um episódio do “Diário Público de John Ono Lennon”.

Esses discos são bastante emblemáticos. Ninguém ouviu, hoje ninguém vê. Mas ajudaram a fazer Lennon erguer-se acima da música, criando sua própria aura mítica.

Depois do fim dos Beatles, o primeiro (e melhor) disco de Lennon continua nessa direção. Ele fala da dor nunca superada na relação com sua mãe, fala das dificuldades que enfrenta ao lado de Yoko, continua sendo o referencial maior de sua geração. E é nesse disco, também, que ele se refere ao fim do sonho hippie.

Deixar de acreditar em um mito não é fácil, e para Lennon, que havia sido o próprio mito, era mais difícil ainda. Mas novamente a Providência foi generosa com ele, e a política conturbada dos Estados Unidos do começo da década de 70 (um reflexo do movimento hippie que só foi devidamente assimilado com quase dez anos de atraso) forneceu a ele um meio de defender aquilo em que acreditava, talvez o único meio que um pop star tem de ficar remotamente ligado ao seu passado comum.

Ao sair de cena, logo depois de gravar um álbum em que voltava às origens, cantando músicas que ouvia quando era adolescente, Lennon seguia o que o mundo lhe ditava, e mais uma vez estava na linha de frente de sua geração. Durante anos, de certa forma ele tentaria manter vivo o sonho que ele mesmo havia declarado morto, invertendo os papéis com sua mulher e ficando em casa criando o seu filho, enquanto Yoko Ono ia para a rua e trazer dinheiro para casa (ou melhor, gerir o dinheiro que ele conseguira). Finalmente, quando percebeu que não podia viver afastado da cena pop e voltou ao trabalho, um homem chamado Mark David Chapman deu-lhe cinco tiros, transformando-o em mais que um ídolo.

A partir daí, todos os atos de auto-exibição, os discos que ninguém ouviu, as palavras que Lennon disse fizeram sua parte. A partir do dia 8 de dezembro de 1980, John Lennon se tornava o primeiro santo da era da comunicação. Centenas de milhares de pessoas choraram sua morte.

A aura que existe hoje em torno do beatle é paradoxal. Seu espírito é baseado no Lennon contestador, o que ia para as ruas protestar e participar de passeatas, um ativista político de esquerda; mas o objeto de adoração em si é o Lennon romântico, sonhador, que se contentava em imaginar um mundo melhor. E essa imagem nem sempre corresponde à realidade. Ele sentou praça no imaginário popular como o gênio e o roqueiro; sua carreira solo, entretanto, nem sempre corresponde a isso.

Os álbuns solo que se seguiram a John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine (Some Time in New York City, Mind Games e Walls and Bridges) não são somente melosos; são fracos também. Além de haver pouquíssimo rock and roll, no sentido clássico da palavra, a essa altura Lennon havia ido longe demais na idéia de expôr-se ao seu público; e Some Time… vale principalmente como uma crônica aguada do movimento de esquerda nos Estados Unidos em 1972.

Os casos de Mind Games e Walls and Bridges são mais graves. Esses dois álbuns não apenas constituem pouco mais que um apelo dirigido a Yoko, mas têm músicas e letras muito fracas. Era como se Lennon tivesse perdido o talento demonstrado nos seus dois primeiros álbuns.

Fazendo uma comparação: quando Mick Jagger cantava ao mundo que não conseguia satisfação, ele não somente era sincero (um pré-requisito básico da cena rock) como o seu problema era o mesmo de milhões de jovens em todo o mundo. Ao pedir desculpas para Yoko em Aisumasen, Lennon podia estar sendo sincero — mas o que é que o resto do mundo tinha a ver com isso?

A sua volta em 1980 o redimiu de todos esses pecadilhos. Conseguia transformar seu amor por Yoko em algo universal, com o qual milhões de pessoas podiam se identificar e assumir como suas, e novamente com letras de qualidade.

***

Não haveria mais lugar para o ícone John Lennon no mundo de hoje. Não numa época em que, por mais que se alardeiem mudanças, tudo continua do jeito como sempre esteve. Os tempos são mais propícios aos Paul McCartney — pessoas talentosas cujas posições políticas mais corajosas jamais ultrapassam a barreira do plenamente aceitável.

A julgar pelo seu último trabalho, talvez o próprio Lennon, se estivesse vivo, fosse mais parecido com o retrato que se faz dele, hoje. Em Double Fantasy, que ele mesmo definia como crônica de sua vida na época e conseqüentemente de uma geração Lennon falava de amor, de seu filho e da gratidão e paixão incomensuráveis que sentia por Yoko Ono. O conteúdo de suas letras não era nem sombra das explosivas canções do álbum Some Time in New York City, por exemplo. Lennon não havia atravessado a década do eu impune, e estava antecipando a era Reagan. Em um mundo apático e desiludido, que assiste a guerras de verdade como se fossem partidas de video-game, cansado de tudo e com uma eterna sensação de dejà-vu, não se pode imaginar aquele sujeito de cabelos compridos e óculos redondos que acreditava que podia convencer o mundo a dar uma chance à paz, sendo o espelho fiel de seu tempo, algo muito necessário quando nada parecia estar no lugar.

O que parece mais engraçado, ao se prestar atenção à história de Lennon, é que apesar de tudo o que disse, e de tudo em que acreditava, ele não conseguiu mudar muita coisa. George W. Bush pertence à geração que cresceu ouvindo Lennon. A grande mudança que se pode apontar, na realidade, é que o protesto não vende mais tantos discos. Está tudo banalizado e minimizado, foram todos absorvidos pelo temível establishment. Sintonizado com o seu tempo como era, é provável que hoje Lennon estivesse vindo se apresentar no Brasil, trazendo na bagagem a mulher e o filho, para encantar um público que viveu os anos 60 à distância cantando Imagine pela milésima vez, ou revivendo os Beatles para cantar I Want to Hold Your Hand no mesmo microfone que Paul McCartney.

Minhas namoradas

A tinha um jeito despojado, de quem veste uma calça jeans e esquece de tudo o mais para se concentrar no essencial.

B tinha um jeito adolescente resoluto, de quem vai fazer tudo o que deve assim que completar 18 anos.

C tinha um ar pé no chão e diligente, de quem trabalharia duro a vida inteira e não deixaria nada faltar em casa.

D tinha um ar infantil e ingênuo, que foi perdendo com o tempo.

E E… Bem, pelo menos E tinha uma bunda muito bem feitinha.

Apple

Eu nunca vi vantagem no Macintosh, pelo menos não para mim.

Já usei Macintosh (pré-iMac, um Performa). Naqueles tempos, o Windows era infinitamente superior. Mais rápido, mais estável, e fazendo absolutamente tudo que o Macintosh fazia (um PC com 32 MB de RAM era mais rápido que o Performa com 80 MB). Foi quando me certifiquei de que a lenda em torno do Macintosh vinha de tempos idos. Grande parte dessa fama vem dos idos tempos em que o IBM-PC rodava sistemas operacionais bisonhos como o CP/M e o MS-DOS. A diferença era realmente descomunal. Mas depois do Windows 95 ela acabou, pelo menos para quem usa computador para aplicativos de escritório ou editoração eletrônica. Internet, então, nem se fala. E em jogos o Macintosh simplesmente não existe. No final a diferença passou a ser só o preço, com um Macintosh custando quase o dobro de uma PC similar.

Depois do MacOS X, as coisas mudaram. O Mac, sobre uma estrutura Unix, melhorou sensivelmente; não tem muita gente que discorde da afirmação de que o MacOS é melhor que o Windows, em que pesem algumas facilidades que temos cá. Mas a questão do preço continua.

Hoje só há duas situações em que um Macintosh é superior a um PC. Em edição de vídeo — a superioridade do Mac é impressionante, tanto em hardware quanto em software — e no quesito beleza. Porque se tem uma coisa que aquele pessoal faz bem é um computador bonito. Eu ainda não vi computador mais bonito que o segundo iMac; e olha que eu achava que depois do Cube eles não conseguiriam fazer nada tão belo.

Cada vez mais fico com a impressão de que as coisas podem mudar. Recentemente a Apple lançou dois novos produtos. Um, o iPod Shuffle, me parece redundante e dispensável. É só mais um flash player, que só existe em função da força da marca Apple.

O outro produto, o Mac Mini, é outra história. Ele está longe de ser o que andam dizendo dele, como computador. É belíssimo, mas por 500 dólares você compra um PC muito mais potente e muito mais completo, com monitor, teclado, mouse, leitor de cartões, etc., e um bocado de espaço para expansão. Só tem duas portas USB — que você ocupa imediatamente com o teclado (e com o mouse, se você usar hardware da Apple) e com a impressora — e uma firewire. É, basicamente, um notebook sem display. Seu preço real (com mais 256 MB de RAM, gravador de DVD e teclado e aquele mouse aleijado da própria Apple) é 732 dólares. Adicione mais 150 de um monitor, e você fica próximo dos 900 dólares.

Vamos lá: como computador, o MacMini é bobagem.

Mas o que se tem aqui é uma possibilidade que a Apple, talvez inadvertidamente, está abrindo para si própria, e com condições de ir bem além do que a Microsoft já conseguiu ir: colocar o seu Mac Mini como um hob digital, agora que a convergência entre TV, música e internet parece cada vez mais próxima. Já estão pipocando iniciativas nesse sentido, partindo daquela legião de fãs incondicionais da Apple.

Levar o computador para a sala de estar é uma mudança revolucionária. Se Steve Jobs conseguir isso, entra em um mercado totalmente novo, e tem chances de voltar a ser líder de mercado.

Pelo menos até que a Microsoft entre e domine o novo mercado, com um produto mais vagabundo, mas aberto e mais barato.

Cena baiana II

Salvador, 1989.

Em Aracaju eu tinha encontrado um amigo de escola, ele disse que também estava morando em Salvador. Ficamos de nos encontrar qualquer dia daqueles.

Dia daqueles saio da agência e vou até um bar na Pituba, onde nos encontramos, ele com um amigo meio bobo mas gente boa. A noite avança entre cerveja e tira-gosto. Xangai aparece por ali e dá uma canja, marido se alevanta pra nóis fazer um calamengau. Uma mulher de seus trinta e poucos anos dá mole e eu me levanto para ver no que vai dar. A coisa promete, ela faz pose de quem faz pose de mulher recatada, e então Paulo me chama e avisa: “A gente tá saindo e não vai pagar”.

Eu devia ter lembrado de quem era Paulo antes de aceitar o convite. Ele era expulso da sala com uma freqüência ainda maior que a minha. Foi ele quem subiu em seu buggy na porta do Arqui, depois de conseguir uma transferência para o Unificado, e xingou Marlene Chagas de todos os palavrões imagináveis — e para a nossa felicidade também dos inimagináveis. Era ele que tinha uma cara de marginal, cabelos louros escorridos encimando uma cara comprida e um olho meio torto.

Agora só me resta ir atrás do sujeito, eu que nunca gostei de sair sem pagar de lugar nenhum.

Daqui a pouco chega o garçom, correndo esbaforido, dizendo que a gente vai ter que pagar. E Paulo manda o sujeito à merda, e o garçom sai correndo dizendo que vai chamar a polícia.

A gente também sai correndo pela Pituba na direção contrária, e em poucos metros eu, que nunca corri senão de cachorro grande e de mulher feia, já estou botando os bofes pela boca, puta merda, puta merda. Viramos uma esquina onde dois homens tocam violão; adivinhando que não vou mais agüentar muito tempo, pulo o muro e me escondo, encostadinho entre o muro e as plantas. Ouço o garçom passar correndo, mas espero. A cara enterrada no canteiro, terra preta de vez em quando tem um gosto muito bom.

Alguns minutos depois uma mão me levanta pela gola. É um dos homens que estavam na esquina. O sujeito diz que é policial, me revista, pergunta o que aconteceu.

“Moço, eu tô morando aqui há um mês. Não conheço ninguém na cidade. Moro em Sergipe, sabe? Vim estudar pro vestibular.” Mostro a minha carteira de identidade, que é de Aracaju, para comprovar que tudo o que eu digo é a mais pura verdade. “Aí hoje eu tava no Porto da Barra, conheci aqueles dois sujeitos, a gente começou a conversar, e me chamaram pra cá, e a gente começou a beber, eu levantei pra ir no banheiro e quando voltei eles tavam saindo dizendo que não iam pagar. Eu não tinha dinheiro pra pagar a conta toda, aí tive que vir com eles.”

“Qual o nome deles?”

“Um é Márcio, o outro é Roberto. O senhor já viu eles por aqui?”

“Eles te ofereceram drogas?”

“Não, não, só cerveja, mesmo.” Mas me arrependo, devia ter inventado que o filho da puta do Paulo é traficante para ver se a polícia lhe dá umas porradas, que ele merece.

Me mandam esperar para ver o que farão comigo. Enquanto o tal policial conversa com o outro, que deduzo ser um vigia noturno, resolvo que minha cara de menino não é o bastante. Peço o violão, toco um pouco, faço a maior cara de puta arrependida que consigo fazer, e então o sujeito diz para eu ir embora, mas que a partir de agora devo ter cuidado que aqueles baianos não valem nada, que é um povo muito descarado, tá cheio de marginal pela rua, você deu muita sorte, e percebo que ele não tinha lido minha carteira de identidade direito e não viu que eu também era um daqueles baianos. Só não era descarado.

E enquanto eu saio atrás de um táxi, pensando em ligar para esculachar aquele filho da puta do Paulo, o sujeito passa e pergunta para onde eu estou indo, e eu digo e ele me dá uma carona, enquanto continua a falar desses baianos que não valem nada, quando é justamente um policial baiano que me dá a carona.

Mas isso não é nada. Nunca mais vi a balzaca. Não deu tempo de pegar o telefone dela. Ela era uma lourona bonita, bem interessante. Tinha uns peitões sugestivos, ah, muito sugestivos, e o seu jeito de olhar me fazia algumas das mais belas promessas que eu já tinha visto naqueles meus dezoito anos.

Diário de bordo V

Quase 24 horas socado em um hotel, esperando entregarem minha roupa e descobrindo que é possível, sim, pentear o cabelo com um garfo — o que transforma Didi Mocó em um gênio visionário –, enquanto tenta assistir a alguma coisa na TV, dá nisso.

Crítica cinematográfica a 2 Fast 2 Furious:

Tem uns carros na parada. Os sujeitos fazem pega. Aí eles apertam um botão e sai um fogo do escapamento e o carro dispara e eles ganham a corrida. Vrum vrum. Irado, velho.

***

Assisti a um compacto de “Anos Rebeldes”, também. Vi na época, 1992, e não me impressionou nem um pouco. Achei fraco, na verdade, com uma ou outra exceção. Agora, revendo, alémde tudo isso ainda aparecem as falhas técnicas: bebê com fralda descartável, uma bolsa que aparece na mão da morta, e por aí vai.

Em compensação, Armação Ilimitada era realmente brilhante.

E vi Purple Rain, do artista que voltou a ser chamado de Prince. Que coisa bisonha é aquela eu não sei. E não falo só do filme, chato. São aquelas roupas. Aqueles penteados que faz todo mundo parecer o Duran Duran. Aquelas roupas que os hippies mais alucinados dos anos 60 teriam vergonha de usar. Aquela bateria. Principalmente aquela bateria.

***

Na van que me leva para o aeroporto vai um piloto da Varig. É provavelmente o carioca mais chato que eu já vi. Vai reclamando de um atraso do motorista até chegarmos. Fico calado que o problema não é meu; mas no final eu estou torcendo para que ele ganhe um esporro da direção da Varig, porque ele está isposto a criar um problema para o motorista, que não teve culpa. Tem gente que nasceu para encher o saco dos outros, e o tal piloto é uma delas.

***

Quando passo a mochila pelo raio X, o sujeito me pergunta, provavelmente incomodado por só ver livros dentro dela:

“É papel que o senhor está levando aí?”

“Livros.”

“Abra, por favor”.

Eu abro. Ele olha, meio ressabiado, e diz que tudo bem. Fecho a mochila e não resisto:

“O senhor esqueceu a bomba no fundo da mochila”.

“Como é?”

“Nada, brincadeira.”

“Essa brincadeira pode fazer a Polícia Federal lhe revistar.”

“É, eu sei que nos Estados Unidos essa brincadeira dá problema.”

Ele, ofendido em sua honra de funcionário público:

“Não só lá. A fiscalização que tem lá, tem aqui também, tão rigorosa quanto eles.”

Eu, quase dobrando em direção à sala de embarque, preciso dar a última frase:

“É, mas lá eles são malucos, aqui não”.

E, cá comigo: “Só idiotas.”

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Na sala de embarque, portão I — separado dos outros por ser no térreo — a funcionária da OceanAir representa seu papel numa comédia com quatro espectadores. Recita o texto comum a todas as funcionárias que guardam o portão, com a gravidade que lhe é necessária. Nao interessa que os quatro passageiros olhem para ela com uma expressão de “por que o sistema e som? Só tem a gente aqui”. Não interessa que ela pudesse simplesmente dispensar tudo e comunicar o essencial aos passageiros. Ela tem o seu roteiro a seguir, e o faz com a dignidade de uma funcionária responsável, com a dignidade dos músicos do Titanic tocando enquanto o barco afunda.

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Enquanto outra van — não ando tanto de van desde que morava no Rio — me leva até o avião, eu tenho uma surpresa. O avião não é o tal Fokker 50, é um Brasília. Tudo bem. Aviões da Embraer me trazem lembranças curiosas, especificamente o Bandeirante; mas eu nunca andei em um Brasília, vai ser interessante.

As pessoas que gostam de aviões grandes, como o 737-300, não sabem o que é avião. Para que você possa falar com orgulho, é preciso ver a hélice rodando, ouvir o ronco alto dos motores.

Aviões pequenos têm ainda outra vantagem. É tudo tão perto, a hélice a menos de um metro de você, e então você faz parte do avião. É diferente varar uma nuvem em um jato e em um avião pequeno. Você realmente está lá, você sente o corpo do aviãobrigando com a resistência das gotículas de água. E as manobras feitas por um avião pequeno são outra coisa.

Eu tinha me arrependido de ter comprado essa passagem. Paguei mais caro em troca de uma hora a mais em Fortaleza, que acabou se tornando 24. Mas na primeira nuvem o arrependimento passou.

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Eu nunca tinha visto uma aeromoça só em um avião. Elas sempre vêm em duplas, como notícias ruins. Mas o avião é pequeno, e ela está ali, sozinha. Meu bisavô dizia que aeromoça é uma copeira de luxo; e nunca, nunca essa sensação foi tão forte quanto ao ver a moça ali, preparando o gelo para as bebidas que iria servir dali a pouquinho. Solitária, sem companhia. É o grupo que as torna mais fortes; é a interação entre elas que lhes dá aquela aura de desbravadoras do ar da Pan Air. Sozinhas, são como andorinhas que não fazem verão. Sao só moças que servem as bebidas e reclamam se você está lendo com a bandeja abaixada enquanto o avião se prepara para pousar.

Diário de bordo IV (ou desventuras de um baiano na Terra do Sol)

Ou de como acordar às 4:02 e conseguir pegar um avião que sai às 5.

Eu estou ficando bom nisso.

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Não adianta: mesmo olhando de cima, Salvador é única. Há algo de diferente nela. É algo que não dá para explicar e, também inexplicavelmente, consegue ser maior que a chegada ao Rio, por mais bonito que o Rio seja. Há alguns anos, indo para Salvador, fomos obrigados a sobrevoar a cidade por meia hora, enquanto esperávamos sei lá o quê. E eu adorei cada minuto. Há algo de especial quando se vê, lá de cima, o Forte de São Marcelo protegendo a cidade de piratas franceses que morreram há muito, muito tempo.

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Minha filha olha a chaminé de Camaçari que lança um rolo forte de fumaça. Entre nós e a chaminé está uma nuvem, pequena, e do nosso ponto de vista, uma e outra são a mesma coisa. Olha, papai, uma fábrica de nuvem!”

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Um alemão passa por mim, e Deus, como ele fede. Lá fora, enquanto fumo um cigarro, ele cruza o meu caminho de novo. Saca um maço de Derby, vermelho, e começa a fumar. O fedorento tem um pulmão de aço.

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Quando saio para fumar, espero o chamado de sempre: “Quer táxi?” É sempre assim, já estou acostumado. Mas parece que os taxistas baianos já estão aprendendo. Eu saio, o taxista olha para mim e algo lhe diz que eu só saí para fumar. Nem se incomodam.

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Eu respeito Luís Eduardo Magalhães e respeito que seu pai queira manter sua memória. Não tenho nada contra todas as homenagens que se façam a ele. Podem dar nomes de avenidas, de ruas, de praças, do que quiserem. Mas eu nunca, nunca vou chamar o Aeroporto Dois de Julho de Aeroporto Internacional Luís Eduardo Magalhães. Não só é implicância; é que o Dois de Julho é uma data fundamental na história brasileira e merece ser respeitada. Fim de papo.

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As duas comissárias de bordo da Gol são diferentes. Certo, as duas são do interior de São Paulo, mas são diferentes. A lourinha bonita tem o perfil da italiana loura clássica, seus vinte e poucos anos, olhos azuis, um corte de cabelo que ressalta a sua beleza — e é a primeira aeromoça educada que vejo em muito tempo.

Mas é a morena que me parece mais interessante. Mais velha, fala rápido demais, mais feia, tem gestos bruscos, mais vulgar. Mas é muito, muito mais interessante. Eu aposto.

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Quando eu era pequeno, a Transbrasil oferecia umas maletinhas para os viajantes, com uma comida quase decente, vinho, talheres. A Varig, por sua vez, era ainda melhor. Hoje não há comida de avião, nem mesmo na Varig, a última que resiste aos novos tempos de eficiência absoluta.

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Depois de chegar a Fortaleza, vou direto para a Livro Técnico, fazer a feira. Neste momento não consigo de tudo lembrar de tudo o que comprei. Mas foram cerca de 30 livros, alguns repetidos. É a minha feira quadrimestral.

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Em toda a minha vida, só tive um problema com aviões, mesmo considerando que passei uma época viajando bastante. Foi em julho de 1978. Estava voltando de Aracaju com meu pai e algo aconteceu e não pudemos viajar. Lembro de sentar na calçada do aeroporto, com o “Manual da Maga Patalójika”, enquanto ouvia os gritos e os murros no balcão de meu pai. Que não adiantaram muito: não conseguimos viajar.

(Aliás, tive outro, em 1993. O avião em que eu ia do Rio para São Paulo se recusou a levantar vôo. Mas nunca considerei aquilo um problema, porque bebi tanto que cheguei em São Paulo sem saber onde ficava o Largo de S. Francisco, para onde eu ia. Compensou.)

Comprei uma passagem na OceanAir porque ele sairia uma hora depois do da Gol. Empresa nova, uns Fokker 50 simpáticos — turbo-hélices são charmosos, não são? —, e mais tempo para procurar livros; eu ficaria 3 horas em Fortaleza.

Mas quando volto ao aeroporto, me informam que o vôo foi cancelado.

Meu pai gritaria e reclamaria; como não adianta, eu decido que simplesmente vou rir um pouco. Debocho das atendentes que, coitadas, se viram para arranjar lugares em outros vôos em um dia cuja norma é o overbooking. Digo que foi a primeira vez que viajo pela OceanAir, e será a última. Que começaram mal.

Quero ver alguém voltar a dizer que eu sou uma pessoa difícil: de sábado para domingo dormi apenas uma hora e meia, cinco de domingo a segunda. E mesmo assim não grito nem xingo as pobres moças. Eu sou um doce. Eu sou a pessoa mais facinha que eu conheço.

Não tem jeito de conseguirem um vôo para mim e me despacham para um hotel. Comigo irão quatro italianos. É primeira vez que eu reclamo. “Ih, eles vão encher o hotel de puta”. E elas, coitadas, riem também. Sabem que é verdade.

Agora eu vou voltar para o hotel. Vou tirar a roupa, dar para lavarem e assistir a qualquer besteira na TV, enquanto xingo a OceanAir.

Tomara que amanhã eu consiga voltar.