Quase todo dia eu passo em frente a um cemitério.
O cemitério se chama São João Batista — toda cidade que conheço tem um cemitério chamado São João Batista, e até hoje eu não soube a razão. Talvez porque São João batizasse gente, desse um recomeço à vida em Cristo, como se morte fosse recomeço de alguma coisa. É cemitério da Prefeitura e a grande maioria de seus inquilinos é de ex-gente pobre cujas famílias não têm jazigos perpétuos no Cemitério Santa Isabel ou não podem comprar um pedacinho de chão no Colina da Saudade, cemitério particular nos moldes anglo-saxões que não enfeia a vista com os pequenos edifícios mortuários e suas imagens de santos, anjos e cruzes.
Parece ser voz corrente, entre gente que se preocupa com os tempos em que não existirá mais, uma preferência cada vez mais clara por covas em cemitérios desse tipo, com plaquinhas discretas no chão em vez de tumbas pretensamente imponentes e mausoléus; mais elegantes, dizem eles. Eu, que tenho dúvidas de que vou morrer algum dia mas que, se esse dia improvável vier, já adianto que podem fazer o que quiserem do que sobrar deste portento da raça humana, peço vênia para discordar.
Dos mortos em cemitérios tipo Colina da Saudade não ficam os testemunhos da sua importância em seu tempo, importância que algumas décadas ou mesmo uns poucos anos se encarregam de apagar. Ali não há mausoléus ou imagens de santos e da Virgem Maria; desses mortos mais ricos fica apenas uma plaquinha no chão, que custou tanto mais caro quanto mais alto foi o lugar do seu último descanso. Os cemitérios católicos, ao contrário, são monumentos duradouros à estupidez e à vaidade humanas, e é isso que faz a sua graça e o seu interesse.
Mães tresloucadas de dor que deixam testemunhos psicóticos nos túmulos de suas filhas; herdeiros orgulhosos e felizes com o dinheiro que lhes coube mantendo as aparências de amor e devoção ao finado; nulidades em vida que apenas ocupam o lugar reservado no mausoléu familiar; esse é o condomínio diverso oferecido pelos cemitérios católicos tradicionais, em que cada requietório pode acender o interesse por uma história já perdida.
E há ainda a sub-arte mortuária esquisita, estátuas de mármore e bronze de anjos e santas, detalhes arquitetônicos delirantes em granito, fotos de moças feias que morreram cedo demais impressas em louça e já se apagando.
Cemitério por cemitério eu prefiro os católicos, em seu mau gosto mórbido.
Mas o cemitério em frente ao qual passo quase todo dia não tem isso, ou melhor, tem muito pouco. O São João Batista é cemitério de pobre e ali as gavetas e carneiras se espalham por onde podem. Depois de alguns anos as gavetas serão limpas e os ossos que não forem reclamados irão para uma cova comum. Mas agora, enquanto o tempo não passa e o defunto ainda não começou a feder nem a se decompor fazendo a alegria de um Augusto dos Anjos, um enterro é o retrato da dor de uns poucos, da solidariedade de alguns e do respeito às convenções pela maioria.
Hoje em dia enterros são cerimônias para relativamente poucas pessoas. O mundo já descobriu que é mais simples, mais rápido e menos angustiante passar pelo velório, ver alguns conhecidos, dar um abraço no parente do morto que chora ao pé de seu caixão e então ir embora, cuidar da vida, que o finado agora não tem mais que se preocupar com isso e vai lhe perdoar se você não lhe dá mais atenção do que é necessário. Ao enterro acabam indo apenas as pessoas mais próximas, se não é defunto famoso ou de morte trágica demais.
A essa altura, tendo passado diante deles por tantas vezes, já dá para ter uma idéia aproximada dos defuntos trancados no caixão. Basta olhar para as pessoas que esperam enquanto ele é tirado do carro fúnebre.
Diante do São João Batista a maior parte das pessoas usa roupas simples e às vezes gastas. Uns poucos apenas trazem a elegância convencional dos óculos escuros, que deveriam servir para esconder as lágrimas mas normalmente apenas disfarçam o incômodo que é estar ali, àquela hora.
Hoje mesmo, agora há pouco, o carro funerário estava na porta. Manhã de sol, ponto final adequado para um velório que deve ter varado a noite, e eu imagino pessoas sentadas diante do caixão, outras conversando em grupos espalhados pela capela — já não se vela mortos em casa, não depois que a morte passou a ser um serviço a ser vendido como outro qualquer –, alguns rindo de uma piada contada por alguém, outros rindo de nervoso, a maioria contando as horas para poder retomar os cuidares de cada dia, o rapaz percebendo que a prima em segundo grau que não via há alguns anos cresceu e desabrochou e se tornou uma moça de peitos protuberantes que gritam meu Deus, meu Deus, é bom aproveitar a hora para retomar o contato. Pode ter sido assim o velório; mas agora, debaixo do sol quente, o caixão estava sozinho na mala aberta do carro da funerária, enquanto as pessoas por perto pareciam ocupadas com outros afazeres.
Uma vez, muito tempo atrás, alguém me disse que a morte é triste não para quem vai, mas para quem fica. A visão do caixão solitário sob o sol, enquanto as pessoas se escondiam embaixo da sombra dos oitizeiros, me deixa com a impressão de que não, de que ruim mesmo é para quem perde a brincadeira aqui, que as pessoas retomam suas vidas e seguem adiante.
Talvez um indício dessa opinião que vai se formando em mim seja a impressão de que o progresso e o aumento do recato fizeram com que não se veja mais tantos vexames em enterros. Não é mais tão comum mulheres se desmanchando em choro e se jogando no caixão do marido ou do pai, gritando que querem ir junto com ele, que agora suas vidas não têm mais sentido, mulheres salvas por amigos mais conscienciosos do grande vexame que seria ter que sair correndo da cova assim que o primeiro punhado de terra caísse sobre suas cabeças. E assim se torna menos dolorosa a sua passagem para o período posterior ao luto conveniente, aquele em que a dureza da vida a obriga a voltar a olhar em frente, até que outro senhor bem-apessoado surja diante dela e a faça lembrar que ela ainda continua viva, e bem viva, e a carne queima sob o preto do luto.
A maior parte dos espectadores vem nos ônibus fornecidos pelas funerárias; e o enterro se transforma em uma espécie de excursão da CVC. Mas pode ser mais curioso ainda, e dia desses o carro funerário era seguido por uma pequena multidão a pé, o falecido devia morar ali perto e a família achou que não valia a pena pagar pelo ônibus. Triste procissão aquela, quase beatos seguindo atrás de um Zenone dentro do caixão, tudo tão triste e melancólico, tudo também tão engraçado.
Mas há outras tristezas, também. Foi diante do São João Batista que vi o enterro mais pungente em toda a minha vida. Não havia multidão, grande ou pequena, porque o morto não tinha ainda muitos amigos. Havia apenas um pai e um amigo, talvez um irmão, descendo de um táxi carregando um pequeno caixão branco nos braços. Só eles, mais ninguém. E sozinhos entraram pelo portão do São João Batista.