Edvaldo Nogueira

Hoje, pouca gente sabe, é um dia histórico. Pela primeira vez na história um comunista assume o governo de uma capital brasileira, com a posse de Edvaldo Nogueira na prefeitura de Aracaju.

Diz Edvaldo que me via, quando eu tinha uns 13 anos, com o uniforme apropriado vermelho do Arqui, pegar o megafone em umas passeatas pelas Diretas Já e gritar palavras de ordem, e apostava que eu seria um bom militante no futuro. Meu ímpeto revolucionário, no entanto, não era exatamente grande: para mim, agitar passeatas era melhor que assistir a aulas de matemática. E foi Edvaldo quem me convidou, alguns anos depois, para entrar no PCdoB. Na hora achei desnecessário, porque eu já me considerava militante, mas ele estava certo em fazer o convite oficial. É por isso, provavelmente, que ainda lembro da salinha apertada num velho edifício do centro da cidade, e a sensação de orgulho pelo convite.

Acho que, pelo menos nesse caso, ele estava errado: gosto de imaginar que fui, sim, um bom militante, mas não fui por muito tempo. Eu não tinha, nem de longe, a vocação e a coragem de Edvaldo — e de tantos outros — para a militância política, que fizeram com o sujeito que tinha acabado de entrar na faculdade de medicina acabasse se tornando um dos reorganizadores do PCdoB em Sergipe.

Foi durante a primeira campanha de Edvaldo para vereador, em 1988, que conheci cada buraco de Aracaju, lugares que ainda hoje continuam ermos. Ainda tenho algumas peças da daquela campanha, e rio quando vejo a ingenuidade da plataforma defendida: questões nacionais abordadas por uma campanha municipal. Em 1988 parece que se queria o impossível.

Dos meus tempos de militância ficaram algumas certezas, como a da solidez intelectual de Edvaldo, a honestidade, a capacidade de articulação política invejável e um tirocínio que me faz, até hoje, aceitar sem reservas seus prognósticos (quase sempre: eu duvido que algum dia vá concordar com ele sobre a questão da mais-valia). E os seus cabelos, brancos desde muito cedo, me lembram uma das qualidades que mais respeito nele, talvez por me faltar: uma disciplina acima do comum, a mesma que fez com que a militância política em um partido semi-clandestino o fizesse abandonar um curso no qual já se destacava como assistente de um dos cardiologistas mais respeitados de Aracaju, o dr. José Teles.

Foi o Cauê quem me mostrou uma coisa: este é um momento singular na história de Sergipe, os poucos anos em que uma mudança profunda no panorama político está acontecendo, em que a geração que começou sua vida política nos estertores da ditadura militar finalmente passa a ocupar o espaço político. O Cauê se referiu à empolgação com esse processo como “a realização do projeto de nossa geração”. Mas ele foi generoso demais aí. Não era a nossa geração, porque todos eles (Cauê e Edvaldo foram presidentes do DCEda UFS na mesma época, assim como Marcelo Déda, e os três trazem origens e trajetórias políticas semelhantes), são 10 anos mais velhos que eu, e diante deles tendo a ouvir muito mais do que falo. Pior: tenho a impressão de que todos eles vão ser sempre 10 anos mais velhos que eu.

Edvaldo tem uma missão difícil pela frente: substituir um dos melhores prefeitos da história de Aracaju. Mas um episódio bobo, de ano e meio atrás, me dá a impressão de que ele vai conseguir. A equipe que fez a campanha de Marcelo Déda tinha passado a noite comemorando o fim do programa eleitoral (e antecipando a distância saudável de ilhas de edição por algum tempo) e o que tinha nos parecido uma vitória incontestável no último debate entre os candidatos. Começava a amanhecer, o bar tinha fechado, e um pequeno grupo estava numa loja de conveniência de um posto de gasolina. Uma das jornalistas havia feito uma tatuagem na perna. Edvaldo, mesmo àquela hora, olhou de relance a tatuagem e disse que ela estava inflamada, e o que a moça tinha que fazer. O tipo de coisa que só um bom médico, muito experiente e sob luz decente, pode fazer. E nada mal para um sujeito que abandonou a faculdade de medicina para militar em um partido ilegal há mais de 20 anos.

Naquela hora eu tive uma certeza, a mesma que tenho agora: Edvaldo Nogueira será um grande prefeito.

A dançarina, o caseiro e o 18 brumário de Francenildo Pereira

E a dancinha da Angela Guadagnin foi parar na capa da Veja.

A Veja é a revista que publicou uma das matérias jornalísticas mais absurdas da história do jornalismo político do país, a dos “dólares de Cuba”. Uma matéria inteira sem nenhuma prova, mas principalmente sem sequer uma testemunha. Ninguém havia visto dólar nenhum. Mas isso não importava para a revista. Vale qualquer coisa quando se está em campanha.

Não que a dança da deputada seja elogiável. Mas o que eu vi, no fundo, foi uma senhora comemorando a absolvição de um amigo. É curioso que o Congresso tenha declarado um deputado inocente e pretenda levar alguém à Corregedoria da Câmara por ter comemorado justamente isso. Mesmo isso até seria aceitável, se eles se mostrassem indignados assim cada vez que deputados se estapeassem no Congresso ou xingassem suas respectivas mães. Os critérios, no entanto, são diferentes. Talvez eles prefiram o Schadenfreude. Talvez apenas tenham aproveitado a chance de jogar mais lama no governo.

O problema é que se chegou a um ponto em que todos os que apóiam o governo são culpados, mesmo com prova em contrário.

Por exemplo, qualquer pessoa que conheça um mínimo de política e de eleições sabe que é bem provável que alguns dos deputados acusados de envolvimento com o valerioduto sejam inocentes: gente que pressionava o partido para receber algum dinheiro para pagar suas dívidas e não estava necessariamente envolvida com o esquema. Aposto, por exemplo, que a Heloísa Helena não se perguntou, enquanto tentava se eleger senadora, de onde vinha o dinheiro que Delúbio lhe dava.

O Guto lembrou que se fosse uma deputada do PSDB a dançar, o PT estaria fazendo um terremoto. Provavelmente. Mas é também o caso de perguntar o que é que estão fazendo agora. Porque se isso não é um terremoto artificial, eu não sei mais o que é a escala Richter. Então o problema fica reduzido ao seguinte: o PT deve ser esculachado por ter feito seus terremotos, mas a oposição não pode ser, por fazê-los.

Principalmente nesses últimos meses, tem impressionado a total inversão de valores. Chegou-se a um ponto em que tudo o que se disser do governo é necessariamente verdade. Um ACM Neto pode ameaçar bater no presidente da República, indignado com os rumores de grampo, esquecendo que é neto de um sujeito que grampeou a Bahia inteira por causa de sua amante. Agora toda a oposição é honesta, e todo o governo é ladrão.

Essa dubiedade é ainda mais interessante no caso da queda de Palocci, depois do que foi o cerco mais longo da história de todo o Ministério da Fazenda.

De todos os episódios da crise, nada me pareceu tão canalha quanto o depoimento do caseiro Francenildo Pereira. Podia-se sentir que Roberto Jefferson falava a verdade, ou parte dela. Mas tudo no caso do caseiro tem cheiro de mentira e de armação. No entanto, ainda assim as pessoas parecem acreditar que o dinheiro que apareceu em sua conta é realmente de um pai que nunca o viu, nunca assumiu a paternidade mas, num arroubo de generosidade e instinto paterno, lhe deu um bom dinheiro às vésperas de um depoimento importante. Isso nunca é questionado, porque não interessa a ninguém.

(E é impressionante a incompetência do governo no gerenciamento dessa crise. Em vez de divulgar o extrato bancário do caseiro, era melhor simplesmente pedir a sua quebra de sigilo, mostrar que ele recebeu dinheiro e depois se perguntar o que ele andou fazendo no gabinete de Antero Paes de Barros. Partia para o contra-ataque de uma forma muito mais competente.)

Eu, pelo menos, gostaria de saber quem foi o sujeito que, provavelmente numa sala esfumaçada e diante de uma garrafa semi-vazia de Logan, teve um estalo e lembrou que foi alguém igualmente humilde — e assume-se que pobre não mente –, o motorista Eriberto França, que ajudou a derrubar Collor. Poprque esse sujeito merece algum respeito, pela lembrança, pela falta de escrúpulos e por ter sido um leitor aplicado do primeiro parágrafo de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, aquele em que, citando Hegel, Marx diz que os grandes eventos da história se repetem como farsa.

Esse, talvez, seja o papel da oposição.

Mas talvez fosse o caso de perguntar pelo destino desconhecido do “republicanismo” e da “oposição responsável” desse pessoal, tão alardeados quando não ainda tinham o que dizer do governo. A investida contra Palocci teve um objetivo único e claro: desestabilizar um governo que mesmo com toda a crise tinha conseguido crescer em aprovação pública porque, apesar das negativas da oposição, vem fazendo, sim, um governo admistrativamente e socialmente competente. Não se trata aqui da culpa ou não do PT, até porque a essa altura isso são favas contadas, mas de algo que este blog diz há muito tempo: que a oposição do PSDB/PFL nunca teve nada de “republicana”, que tudo é jogo político, interesses em um jogo pouco liso de poder.

Cybill

De vez em quando aparece alguém e destrói todos os seus sonhos.

Como Cybill Shepherd, por exemplo. Quando ela apareceu em “A Gata e o Rato”, aí pelo comecinho de 1986, era fácil se apaixonar por ela, e é provável que mais um bocado de garotos de 15 anos tenha se apaixonado por ela — e querido ser Bruce Willis, o sujeito bonito, esperto e cheio de wisecracks.

O rosto aristocrático de senhora sulista, a expressão de cinismo divertido e insolente, a bunda grande e rara em uma loura americana, tudo na Cybill Shepherd era fantástico, grandioso. Ou pelo menos assim parecia, aí pelos idos de 1986.

Aquela era uma mulher, uma mulher de verdade. E se você tem 15 anos, olha para ela como o alpinista olha para o pico do Everest, e olha para o jeito como ela anda e pensa coisas que só se pensam aos 15 anos.

Mas 20 anos se passaram.

E então o tempo, que a tudo destrói, e que é dono de uma crueldade impassível e insensível a qualquer apelo, lembrou que precisava dispensar um pouco de sua atenção sádica a Cybill Shepherd, como se para lembrar que ninguém mais tem 15 anos.

Uma tragédia americana

Esses americanos são uns loucos. Cultivam a imagem de adoradores incondicionais do sucesso, bons protestantes que são. Mas gostam mesmo é do fracasso, da morte espetacular. São uns argentinos que falam inglês naturalmente.

Marlon Brando e James Dean, por exemplo. O primeiro é um ator infinitamente superior, mas foi Dean quem se tornou ícone absoluto e imediato, com apenas três filmes. Só porque seu Porsche Spyder foi arrebentado numa curva.

Kennedy, então, nem se fala. Não fosse Lee Osvald e ele dificilmente seria lembrado como o semi-deus em que se tornou. A mitologia que se cirou em torno dele, a idéia de uma Camelot à beira do Potomac, se tem lá suas razões, parece uma grande brincadeira quando se lembra que o sujeito gostava mesmo era de Ian Fleming. É o fato de morrer no auge que o torna inesquecível. Tivesse sobrevivido e sido reeleito, provavelmente seria lembrado como Lyndon Johnson hoje.

Em 1980 os Beatles caminhavam placidamente para um relativo ostracismo. Então Mark David Chapman deu cinco tiros em Lennon e a tragédia menor de uma banda passou a ostentar dimensões épicas. E criou, também, o mito de Lennon. Enquanto os dois eram vivos, McCartney fazia mais sucesso do que ele, e os críticos davam opiniões igualmente variadas a ambos. Morto, Lennon passou a ser um santo.

De Elvis, então, nem se fala. Longe da música durante a maior parte dos anos 60, em 1977 ele era uma sombra cafona que fazia a delícia de mulheres de meia-idade nos salões de Las Vegas. Bastou morrer, esmagado pela própria decadência física, moral e artística, e o resultado é que até hoje esses americanos loucos o vêem em cada buraco dos Estados Unidos. O Elvis que admiram não é o jovem louro de 1956 que escandalizava as beatas puritanas e trazia um sopro novo à música do país; é a caricatura brega, insignificante em meio a golpes ridículos de caratê. Elvis é, talvez, o maior símbolo dessa mania americana de admirar o fracasso dos outros.

Eles deviam aprender com a gente. Brasileiros não gostam de fracassados; esses são normalmente relegados ao mais profundo esquecimento. A gente gosta de quem realmente faz sucesso, nem que seja para falar mal deles. Por isso, a reclamação de Tom Jobim de que brasileiro tem inveja de quem faz sucesso é só o outro lado dessa fascinação. Brasileiro — e isso inclui até homens brilhantes como Jobim — gosta tanto de sucesso que o considera algo sagrado, o prêmio máximo, e quem o alcança deve ser erigido à categoria de vaca sagrada do qual deve ser pribido, sob pena dos piores suplícios, falar mal.

Nós é que somos os verdadeiros americanos.

Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha?

O velório era numa capela mortuária do centro de Aracaju, dessas casas funerárias que oferecem o serviço completo para quem já não se importa com isso.

O caixão estava entre quatro círios opacos, velhos amigos de outros tantos velórios, e sentadas em bancos encostados às paredes as pessoas conversavam em tom baixo, como sempre se conversa quando há um caixão à frente; não por respeito ao defunto esverdeado adiante, mas em respeito à própria reputação, porque dali não deve sair ninguém cochichando “Você viu a Abigail falando alto? Meu Deus, aquela zinha não respeita sequer os mortos.”

A moça chegou deixando claro que havia chegado. Tem gente que chega assim, de uma maneira que não se faz notar por si própria, delicadamente e por méritos seus, mas agarra os outros pela gola e os obriga a perceber que agora há mais alguém na sala. Ela parece ser uma delas.

Vestia cabelos louros e bijuterias vistosas, envergava um vestido estampado com um decote largo e profundo nas costas, calçava saltos altíssimos.

Ela entrou na sala sem prestar atenção a ninguém, e se jogou sobre o caixão em meio ao cheiro enjoativo dos cravos.

— Meu paaaaaaaaaaaaaai!

Entre o pranto escandaloso e a dor repentina, ela parece ter olhado de soslaio para a audiência, que a observava calada, e mais calada que todos a mulher do finado, que a olhava com olhos grandes, grandes demais. A presença de um bocado de gente desconhecida deve tê-la feito olhar para o caixão sobre o qual se debruçava.

E ali estava um negão gordo que ela nunca tinha visto antes.

Ela não falou nada enquanto saía, calada, seus saltos altíssimos ecoando pelo corredor. Mas, como contaria mais tarde, nem mesmo ela conseguiu deixar de rir enquanto saía pela capela procurando a sala onde estava o seu morto.

Sonhos de consumo

Uma edição crítica definitiva de Machado de Assis, com texto fixado e notas de rodapé contextualizando as referências históricas e geográficas, introduções com boa apreciação crítica de cada peça e um apêndice com fotos de Machado e do Rio de Janeiro daquela época, em edição bem acabada, com capa dura e sobrecapa elegante.

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Um DVD triplo de L’Armata Brancaleone e Brancaleone Alle Crociate, restaurado, em widescreen, com um disco extra explicando a produção e suas particularidades e um bom documentário sobre a Itália medieval.

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O relançamento, atualizado e corrigido, de The Beatles Recording Sessions, de Mark Lewisohn.

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O relançamento de uma coleção com as obras completas de Jorge Amado, como as tantas que a Record já lançou e que hoje infestam os sebos, com o texto definitivo, introdução a cada obra, notas de rodapé necessárias, as ilustrações de Carybé e Mário Cravo, e paginação, diagramação e tipologia decentes, o que nunca aconteceu.

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O lançamento prometido há anos de Let it Be em DVD, com pelo menos mais quatro horas de cenas cortadas, tudo devidamente restaurado e transposto para o formato 4×3, como deveria ser originalmente. De brinde, a última versão do Get Back de Glyn Johns, promessa quebrada quando a Apple lançou o Let it Be… Naked.

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Que me vendam aquela edição da Comédia Humana, pela qual babo há anos. Eu dobro a oferta inicial, amiga ingrata.

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A Ana Hickman. De qualquer jeito.

Por que Batman Begins é ruim e "Ano I" não é lá essas coisas

Todos os elogios do mundo jamais vão me convencer de que Batman Begins é um bom filme. Do mesmo jeito que toda a babação (alô, Gabi) não conseguirá mudar a minha idéia de que “Ano I” é apenas mais uma história do Batman, daquelas que poderiam aparecer em qualquer revista regular.

“Ano I”, para começar. Escrito por Frank Miller, uma das lendas do mundo dos quadrinhos. A obra fundamental de Miller com o Batman é “O Cavaleiro das Trevas”, que ele emporcalharia uns 15 anos depois ao escrever uma continuação abaixo de qualquer nível de ridículo. Aquela minissérie ajudou a reconstruir o Batman, e representou um passo à frente na indústria dos quadrinhos. A partir dali, seria impossível deixar de ver o Batman como um maluco sob controle.

A reconstrução do personagem, no entanto, não é obra exclusiva de Miller, como às vezes parece ao pessoal mais novo. Começou mais de 15 anos antes, com Denny O’Neill e Neal Adams. Foram eles quem retomaram o espírito sombrio do “cruzado de capa” no início dos anos 70, ressaltando o aspecto detetivesco do personagem. Se a alguém cabem os méritos de uma reconstrução do Batman, é a esses dois sujeitos.

Mas a versão de vez em quando se sobrepõe aos fatos. Dizem que foi o seriado dos ano 60, com Adam West e Burt Ward, que destruiu o Batman. Bobagem. O Batman já vinha sendo triturado desde os anos 50. Pode-se, na verdade, datar o início de sua decadência no momento em que decidiram lhe dar um sidekick vestido como uma drag queen pré-adolescente enlouquecida; mas foi nos anos 50 que ele chegou ao seu ponto mais baixo, representado como uma celebridade em Gotham City com direito a fã clube no centro da cidade, aonde ia em plena luz do dia, como estrela de cinema. O seriado dos anos 60, na verdade, salvou um personagem que estava praticamente morto.

Por tudo isso, o verdadeiro mérito de “O Cavaleiro das Trevas” não foi o resgate, e sim levar o Batman além, pintando-o como um psicopata obsessivo sempre caminhando em uma corda bamba entre a normalidade e a loucura pura.

“O Cavaleiro das Trevas” estabeleceu a história do Batman a partir dali. Forneceu aos leitores a justificativa para matar o segundo Robin, Jason Todd, e consolidou o Batman borderline que ninguém tinha tido coragem mostrar até então. Virtualmente todas as histórias do Batman, a partir dali, devem a alma a essa minissérie. Foi ela que disse o indizível, que demonostrou, de maneira clara, a loucura esquizóide de Bruce Wayne.

O mérito de “Ano I” é, unicamente, estar inserido nesse contexto admirável. Aquela foi uma época fenomenal para super-heróis de quadrinhos, mas principalmente para o Batman. “O Cavaleiro das Trevas” gerou filhos interessantes: “A Piada Mortal” é muito boa ao contar a origem do Coringa e o fim da Batgirl, mas é genial quando, em sua última página, define para sempre a natureza do relacionamento entre o Batman e o Coringa. “Asilo Arkham” é um delírio artístico deslumbrante, provavelmente o mais próximo que as histórias do Batman já estiveram perto da arte; e histórias que se seguiram, como “Messias” e várias outras, mantiveram alta a qualidade das histórias.

Entre elas, “Ano I” é apenas a sedimentação de um processo antigo. Fora recontar a história do Batman com aquela atmosfera mais densa, e que é pouco mais que a atualização de uma história velha ao pathos de um novo tempo, algo que aliás já vinha do início dos anos 70, “Ano I” não traz nenhuma novidade real. Com exceção de alguns elementos que seriam desconsiderados logo depois, como a Mulher Gato posando de dominatrix lésbica e um filho do comissário Gordon que, por piedade, os roteiristas seguintes preferiram ignorar. É o tipo de história que cabe perfeitamente nas revistas regulares. A única razão para que “Ano I” seja idolatrada da forma que é só pode ser a assinatura de Frank Miller — assim como apenas a mística de Steve Jobs justifica o fato de as pessoas acharem bonita aquela aberração laranja que foi o primeiro iBook.

Batman Begins está mais ou menos na mesma situação. Sejamos francos: se fosse o primeiro filme do Batman a recepção dificilmente seria tão calorosa. É possível adivinhar as reclamações dos fãs: as alterações de personagens como Henri Ducard, a inclusão de nulidades como o personagem de Katie Holmes (heresia: todos sabemos que o Batman está se guardando para quando o Robin completar 18 anos). Se os filmes dirigidos por Tim Burton e Joel Schumacher não fossem tão ruins, Batman Begins seria tomado exatamente pelo que é: um filme medíocre, um blockbuster qualquer, que perde feio em qualquer comparação com os Homens-Aranha da vida e que não poderia sequer ser citado na mesma frase que Sin City.

Batman Begins teve uma falta de sorte absurda. Foi lançado no mesmo ano que o filme que demonstrou, para sempre, que cinema pode ser uma cópia fiel e ao mesmo tempo muito melhor que originais em quadrinhos. Depois de Sin City — provavelmente o melhor filme do ano passado, a atualização mais perfeita que o film noir podia ter e também a mais perfeita adaptação de quadrinhos –, não há mais desculpas para quaisquer filmes baseados em histórias em quadrinhos.

Não vi muitos comentários sobre esse aspecto, mas é curioso que Batman Begins tenha por base uma grande história do Batman, Blind Justice, publicada aqui na “Batman Anual I”, no início dos anos 90. Essa história, escrita por Sam Hamm, roteirista do primeiro “Batman” de Tim Burton, explorava a formação de Bruce Wayne e introduzia novos personagens, como Henri Ducard. É uma excelente história, daquelas fundamentais para a construção da mitologia de um personagem. Mas Batman Begins não aproveita isso. Ao contrário, pega uma base muito boa e a dilui nos clichês típicos dos filmes de ação.

O filme toma quase tantas liberdades em relação ao Batman quanto o primeiro filme. Repete a aura sombria que caracteriza o personagem, mas esse é um mérito que pertence antes a Tim Burton; cabia a Christopher Nolan apenas não ser burro o bastante para esculhambar isso. Além disso, o Batman dos quadrinhos é um detetive e um atleta. Dick Giordano cantou a pedra: o que o fascinava no Batman era o fato de que teoricamente ele, com esforço e dinheiro, poderia se tornar um Batman, ao passo que para ser o Super-Homem ele precisaria nascer em Krypton. Mas o Batman dos filmes renega essa dimensão humana e continua sendo um Robocop metido a mau, em um batmóvel que seria adequado apenas a “O Cavaleiro das Trevas”. “Homem-Aranha” mostrou que um uniforme de super-herói não precisa ser uma aberração de espuma; mas Nolan preferiu repetir o mesmo erro de Tim Burton.

Sem falar nos aspecto puramente cinematográficos. Toda a construção do filme é um amontoado de clichês. A seqüência de “aprendizado” do Batman levando porrada no gelo não deixa nada a dever a Karate Kid; a cena do trem é demente, clichê bobo usado, provavelmente, para não fazer tão feio diante de “Homem Aranha 2”.

A diferença entre os dois filmes está toda nessa cena. A do Aranha funciona. A do Batman, não.