Você morre no final.
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Os 100 maiores artistas e discos brasileiros
Empurra daqui, empurra dali, fui parar em duas listas que a Rolling Stone Brasil fez, e que eu não conhecia: os 100 maiores discos e os 100 maiores artistas brasileiros.
A Rolling Stone brasileira sempre foi uma revista ruim, desde o início, mas lista é lista e eu tenho um fraco por elas. Não há lista perfeita, muito menos alguma que agrade a todo mundo. Mas há umas que desafiam os critérios mínimos. Essas são as piores, e as mais interessantes porque lhe permitem descer o malho..
A lista dos maiores discos tem um problema grave que não é culpa da Rolling Stone. Ela se restringe à era dos LPs, e com isso faz com a música brasileira comece nos anos 50. Não vejo como podia ser diferente, porque seria impossível hierarquizar a importância de tantos e tantos 78 rotações lançados entre os anos 1920 e 1940. Por exemplo, poderiam colocar “Pelo Telefone” na lista, mas não tenho certeza de que dá para avaliar sua importância com tamanho grau de precisão. Olhando em retrospecto, os 78 servem principalmente para definir a importância de artistas, pelo seu conjunto, mas são insuficientes para fazer parte de uma lista como essa. É uma pena, mas não tem jeito.
Grande parte do meu horror se deve aos critérios utilizados, ou à falta deles. Por mim, a lista seria definida por ordem de impacto, pela capacidade de cada disco de fazer a música brasileira avançar, e se possível em ordem cronológica, porque influenciaram em grau suficiente os que vieram depois. Mas não é isso que temos.
Eis os dez primeiros da lista de melhores discos:
- “Acabou Chorare”, Novos Baianos
- “Tropicalia ou Panis et Circencis”, Uma Ruma de Tropicalistas
- “Construção”, Chico Buarque
- “Chega de Saudade”, João Gilberto
- “Secos & Molhados”, Secos & Molhados
- “A Tábua de Esmeralda”, Jorge Ben
- “Clube da Esquina”, Milton Nascimento & Lô Borges
- “Cartola”, Cartola
- “Os Mutantes”, Os Mutantes
- “Transa”, Caetano Veloso
“A Tábua de Esmeralda” em lugar de um dos primeiros discos de Jorge Ben Jor? “Secos e Molhados”? “Krig-ha, Bandolo!”, em 12º, não é sequer o melhor disco de Raul. O pessoal do rock é fã do disco de estreia dos Mutantes — mas eu seria capaz de apostar que o “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” influenciou mais gente.
“Acabou Chorare” é um grande disco, sem dúvida. Mas está longe de ser o mais importante da música brasileira. Claro que tem espaço nessa lista, mas não nessa posição.
Acontece que listas respondem, antes de mais nada, ao seu tempo. Há um nicho da música brasileira contemporânea — a mais chata, a mais redundante, a mais repetitiva e mais pretensiosa — que bebe dessa linha musical e se dedica a requentar essa música. Neo-setentistas, poderíamos chamá-los assim. Aquele pessoal que curte roupa vintage e disco de vinil, gente para qual a forma e a imagem são mais importantes que o conteúdo.
Mas eles são só um nicho, e nem de longe o mais significante atualmente. Donde a importância desse disco é, aqui, superestimada.
Não para por aí, no entanto.
Não faço ideia do critério para colocar “Construção” de Chico Buarque acima do seu álbum homônimo de 1978, que aliás é o meu preferido. O número de canções fundamentais é semelhante. Se utilizam o critério cronológico, então tá. Mas não é isso que se vê lista afora.
“Transa” foi durante muito tempo o meu disco preferido de Caetano; acho que o seu diálogo com o rock favorece sua apreciação por uma audiência formada nessa linguagem — mas deixa eu ser herege e dizer que uma obra-prima como “Cinema Transcendental” talvez tenha deixado uma influência maior e mais duradoura.
Mais abaixo, não custa lembrar que “Getz/Gilberto” não é um disco de música brasileira, é um álbum de jazz americano — um grande disco, por sinal.
O Nordeste sofre com esse viés sudestino da música, claro. Cadê “Das Barrancas do Rio Gavião”, de Elomar, um disco singular e irrepetível? E Deus me perdoe pelo que vou dizer, aceito qualquer penitência a mim imposta por sequer ousar escrever um impropério desses — mas discos do Chiclete com Banana, que definiu caminhos pelos quais seguiram as músicas que milhões de brasileiros ouviriam nos anos que se seguiram, não estão aí. Pior, não está sequer o disco de Luiz Caldas que traz “Fricote”, que criou essa desgraça.
Obviamente, é impossível fazer uma lista que agrade todo mundo. E nenhum dos discos incluídos aí é ruim. Eu reclamo de “Construção”, mas lembro que poderiam ter incluído “Cambaio” e então agradeço aos céus. Essa é uma lista em que a estatística demográfica parece representar o verdadeiro critério. E quem diz que a voz do povo é a voz de Deus merece pagar o dízimo todo mês ao pastor.
Independente de gosto, há três discos fundamentais que deveriam encabeçar qualquer lista: “Canções Praieiras”, de Caymmi, “Chega de Saudade”, de João Gilberto, e “Tropicalia”, da baianada. São os três LPs mais importantes da música brasileira, ponto. E mesmo assim, eles só se garantem com folga nos primeiros lugares porque é inevitável ignorar as centenas, milhares de singles que vieram antes. Aliás, a lista da Rolling Stone é tão esquisita que “Caymmi e seu Violão” está em melhor posição que “Canções Praieiras”, um disco absolutamente revolucionário (se quer entender minha revolta, veja a lista de faixas dos dois).
A lista de maiores artistas é ainda mais complicada:
- Tom Jobim
- João Gilberto
- Chico Buarque
- Caetano Veloso
- Jorge Ben Jor
- Roberto Carlos
- Noel Rosa
- Cartola
- Tim Maia
- Gilberto Gil
É uma lista mais difícil de questionar, a não ser por dois nomes: só alguém que tem a cabeça abaixo do cóccix consegue colocar Tim Maia e Jorge Ben Jor entre os dez primeiros. Não que sejam ruins (embora eu ache Jorge interessante nos anos 60 e um chato há muito tempo). Mas ocupam um lugar que deveria ser ocupado por gente mais taludinha. Faltam aqui alguns nomes fundamentais para a música brasileira. Os óbvios Pixinguinha e Caymmi, claro, fazem de sua ausência uma afronta à música e à inteligência. Mas a lista segue com colocações questionáveis e ausências inadmissíveis.
É uma injustiça tremenda Carmen Miranda estar lá embaixo. Infelizmente, as pessoas desconhecem a grande cantora e, principalmente, a sambista brilhante que ela era. Devem conhecer os balangandãs e os cachos de banana e as caretas nos filmes de Hollywood, mas não conhecem sua música. Pois Carmen é uma gigante, muito maior que sua fama e a imagem que Hollywood nos deixou dela.
É possível questionar as posições de Baden Powell e de Vínicius, por exemplo — sendo que Vinícius responde a uma acepção muito mais vasta de artista, sendo fundamental na música, na literatura e no teatro. Como Jorge Mautner, ausente.
Luiz Gonzaga parece estar num bom lugar — talvez Chico Science também. Science teve uma importância estrondosa na moderna música nordestina. Posso citar uma infinidade de bandas surgidas nos últimos 20 anos que não existiriam sem o mangue bit, porque ele definiu o que seria a moderna música nordestina. Mas tenho a impressão de que sua influência é principalmente regional.
Dolores Duran lá embaixo — cacete, não tem como ter a paz de criança dormindo desse jeito. Só imbecis acham Cássia Eller melhor que ela. Só idiotas colocam Marisa Monte lá em cima.
É inexplicável a presença de artistas que simplesmente não fazem sentido e a ausência gritante de outros. Lanny Gordin está lá. Era um guitarrista razoável para o seu tempo, mas não lembro do seu nome fora dos discos de Raul Seixas — que, musicalmente, era derivado e excessivamente afeito ao plágio descarado. Gostaria de saber quem é Fred Zero Quatro, confesso minha ignorância a respeito de Otília Jardim (mas sei quem é Bidu Sayão, que não está na lista), rio ao ver Rodrigo Amarante marcando presença e realmente não entendo o que Liminha está fazendo aí.
Enquanto isso, cadê Chiquinha Gonzaga? Mesmo descontando as brigas identitárias por uma revalorização da moça dentro de escopos limitados e exteriores à música, por ser mulher, por ser negra, por ser o diabo, ela é decisiva para a definição da música brasileira. Cadê Elomar? Não existe. Enquanto isso, uma infelicidade como o DJ Marlboro está lá, representando a idiotice generalizada deste mundo.
Mas o problema mais grave dessa lista é que o maior artista brasileiro aparece apenas em 29º lugar.
Ary Barroso dominou a música popular brasileira durante quase quatro décadas. Ninguém teve maior importância que ele na definição dos rumos que a música brasileira tomou durante os seus anos de formação. Inventou a Bahia antes de Caymmi. Tudo o que se fez, durante ou depois de seu reinado, teve a sua música como referência. Basta isso.
Nos Tempos da Brilhantina
Eu sempre detestei o filme “Grease – Nos Tempos da Brilhantina”.
Quem estava vivo em 1978 ainda lembra do sucesso que o filme fez. Eu não tinha idade para assisti-lo no cinema, mas lembro das pessoas comentando. Mais tarde, em 80 ou 81, um especial de Olivia Newton-John na Globo mostrou a cena em que cantam Summer Nights, e eu fiquei fascinado.
Passa o tempo.
Em 83 ou 84, minha mãe apareceu lá em casa com alguns livros. E um deles era justamente a transposição do filme por Ron de Christoforo.
Li o livro e fiquei apaixonado. A história leve de uma turma de adolescentes e seus problemas também adolescentes, o rock and roll que permeava toda história, a rebeldia contra professores, tudo isso fazia com que o livro fosse perfeito para um pré-adolescente. E a morte de Buddy Holly era uma cena muito boa do livro, mas ainda hoje lembro de várias outras. E em algum momento percebi que a história, com todos os seus sobrenomes italianos, se passava no Brooklyn ou no Bronx.
Em 85 o filme voltou aos cinemas. Era comum que filmes prestes a irem para a TV fizessem uma última rodada pelo circuito de cinemas, na esperança de descolar uns últimos trocados, jogadinha esperta que foi finalmente destruída pelo videocassete nessa mesma época.
E o que eu vi me deixou chocado.
O filme não era nada do que eu esperava. Tinha tão pouco em comum com o livro. Comédia boba, com cara de televisão. A história era a mesma, sim, e dava para perceber que algumas músicas correspondiam a trechos do livro, mas uma infinidade de cenas importantes simplesmente havia desaparecido. E o mais importante, dois personagens importantíssimos faltavam ali: Sonny, o narrador do livro, tinha virado um idiota, e Marsha, sua namorada, sequer deu as caras. Todo o prelúdio da história, com Danny Zuko e Sonny LaTierri indo para o que imagino ser Atlantic City e conhecendo Sandy e Marsha, desparecera.
Saí revoltado do cinema. Mas não demorou muito para formular minha teoria sobre o que tinha acontecido. Primeiro cheguei à conclusão de que Christoforo tinha escrito a partir da peça. Depois, entendi que ele tinha partido do filme para escrever o seu próprio livro, muito mais pessoal, acrescentando suas próprias ideias.
Lembrei de tudo isso há pouco porque mais cedo apareceu no Amazon Prime um tal de Grease Live, e fui assistir. É uma adaptação feita para a TV em 2016, e traz como qualidades uma atualização do texto, a correção de duas ou três mudanças feitas no filme em relação à peça original e, principalmente, a energia e vitalidade que só o teatro pode passar. Mas não é uma adaptação do musical, e sim do filme — ao qual é bem superior. Entre os aspectos negativos está a decisão de tornar a atriz que faz o papel de Sandy quase um clone de Olivia Newton-John, e a adaptaçãodo elenco para estes tempos politicamente corretos, ainda que a fórceps. O que era uma turma ítalo-americana agora é racialmente diversa. Nada contra, não fosse o fato de a história continuar se passando em 1959; imaginar aquela turma, em um tempo anterior ao movimento pelos direitos civis, vivendo num mundo tão integrado transforma as boas intenções em mero desrespeito à história.
Mas o melhor é que isso me fez finalmente procurar o script da peça, para finalmente entender o que tinha acontecido. Não sei por que não fiz isso antes. Ele está disponível, bem como como um bom resumo do seu argumento original aqui.
Agora dá para ter uma ideia clara do que aconteceu.
Mesmo sendo uma comédia musical, a peça conseguia ser mais densa e séria que o filme. A adaptação adoçou a peça, retirou grande parte da sua ironia e quase todo o seu sarcasmo, reforçou a comédia ao ponto de idiotizá-la. Criou algumas cenas para dar mais amplitude ao enredo, algumas das quais realmente boas, mas também retirou várias outras, mais significativas. A peça tem em Rizzo talvez seu melhor personagem, o mais denso. Talvez ela não faça mais sentido hoje — a menina mal falada, a vagabunda da vizinhança: mas ao questionar o julgamento do comportamento de Rizzo (sintetizado na canção There Are Worse Things I Could Do, uma das melhores do musical), fala muito sobre costumes e sua evolução a partir da revolução sexual dos anos 60. O filme também tirou muito do antagonismo entre ela e Sandy.
O livro de Christoforo conseguiu dar, à peça e ao filme, uma qualidade que eles não tinham: verdade e alguma complexidade. Transformou um personagem quase terciário no narrador da história, e inventou uma namorada para ele, acrescentando um contraponto a Danny/Sandy e Kenickie/Rizzo. Várias das cenas que o autor inseriu têm todo o jeito de que são inspiradas em fatos reais, retirados de suas próprias lembranças. Aliás, ele começa de modo bem parecido com “O Apanhador no Campo de Centeio”. Cópia inferior, claro. Seu livro não é grande literatura, por mais que eu goste dele. E ainda assim, o resultado é melhor que o material com o qual trabalhou.
Mas o melhor, mesmo, é que uma dúvida que me acompanhou durante décadas foi finalmente resolvida. Posso continuar a detestar o filme e a gostar do livro. Estou em paz.
Retalhos da Bahia
Antes de mais nada, um aviso: o que se segue é um punhado de notas desconjuntadas e meio desconexas, escritas a partir de um comentário do Leonardo Bernardes.
***
Eu sempre disse que baiano é quem nasce em Salvador ou, no máximo, no Recôncavo. Pode ser na Graça ou na Calçada; só não pode ser em Vilas, que esses são tão baianos quanto o pessoal da Barra ou do Recreio é carioca — ou seja, herdam apenas os piores traços do caráter da terra.
Nessa tal baianidade eu também incluía Ilhéus e Itabuna, porque parte dessa sensação de pertencimento nasceu dos livros de Jorge Amado, até que percebi que a imensa imigração gerada pelo cacau — quantos sergipanos foram tentar a fortuna ali? — tirava um pouco dessa identidade. Desculpe, Ferradas e Tabocas.
Sempre achei, por exemplo, que era descaramento demais o sujeito nascer em Jeremoabo e dizer que é baiano. Nasceu em Jeremoabo, Ribeira do Pombal, Paripiranga? Você é sergipano, contente-se. Veio à luz em Barreiras? Hoje você é goiano, meu filho, e que Deus tenha piedade de ti afogado num mar de soja.
Mas nessa cidade onde todo mundo é d’Oxum, dizia um de seus poetas, há um regaço macio onde as massas cansadas, pobres, amontoadas, desejando respirar livremente, podem curar esse defeito de origem, e para eles o único jeito é ir para Salvador e se tornar baiano.
É a maravilha da Bahia. Nenhum outro lugar consegue receber e abraçar aqueles que recorrem a ela e transformá-los tão completamente em baianos legítimos. Começa pelo sotaque, vai-se tornando mais mole, o mundo vai sendo visto de maneira mais condescendente, vão tolerando cada vez mais o que antes era inadmissível. E aí não tem mais jeito.
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Fui criança na Salvador dos anos 70. Era uma cidade bastante diferente da de hoje, em tantos aspectos. Era um tempo em que o jornal mais tradicional da cidade dizia quais terreiros de candomblé bateriam naquele mês. Tinha-se a sensação de que quase todo baiano transitava entre a igreja e o terreiro de candomblé. Era uma realidade mais complexa do que o discurso identitário de hoje faz parecer.
É preciso entender o que qualquer baiano sabe: Salvador está longe de ser a Roma negra pretendida em prosa e verso. Kátia Mattoso escreveu que depois da Lei Áurea a elite branca, sem a salvaguarda jurídica que a instituição da escravidão lhe proporcionava, descobriu novas maneiras, mais sutis, de manter a distância entre ela e a patuleia negra — e ao mesmo tempo a tal patuleia descobriu novos mecanismos de se aproximar e beneficiar de uma maior proximidade (por razões análogas, leis segregacionistas nos EUA surgiram antes nos estados do Norte). Essa complexidade nas relações, além de ser a razão pela qual vejo boa parte dos tópicos abordados nas lutas identitárias atuais como burras, fez de Salvador provavelmente uma cidade que oscila entre o racismo descarado e a valorização da herança negra, mas ao mesmo tempo também uma cidade onde as relações de raça e de cor são mais complexas do que boa parte da atual militância parece poder compreender. Stuart Schwartz resumiu isso no título de um livro: negociação e conflito.
Nas últimas décadas, no entanto, esse processo se tornou quase caótico, com novos elementos sendo adicionados. Durval Lélis, surpresa, foi o primeiro a marcar a ascensão da Bahia evangélica, cantando que “era um bêbado e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus: na casa do Senhor não existe Satanás, xô, Satanás”. E isso implica uma mudança no próprio conceito de cultura negra, que boa parte dos movimentos identitários ainda estão lutando para entender — ou ignorar. Uma coisa é o negro de classe média e boa educação que busca recuperar e recriar sua identidade a partir de uma reinterpretação e recriação de elementos históricos e símbolos afro-brasileiros. Outra é a crescente massa de negros pobres evangélicos, cada vez mais reacionários, cada vez mais proselitistas, mas que não podem evitar carregar consigo uma tradição baiana inconfundível e inamovível. Os identitários parecem apostar que a cor supera tudo isso. Estão errados, porque partem do princípio errado. A visão idílica que essa classe média tem do candomblé não é a mesma que o evangélico recém-convertido tem, porque ela não sabe o que é ter um ebó em sua porta, nem precisa se perguntar que religião é essa que permite que seus sacerdotes façam essas maldades, sem sentir que precisa se defender dela. Vai ser cada vez mais difícil renegar a baiana que vende bolinhos de Jesus em vez de acarajé e que aplaude a vandalização de terreiros de candomblé. Que síntese vai sair desse angu, só Oxalá sabe.
Mas naqueles tempos o movimento negro ainda não tinha conquistado tanto. Isso quer dizer que a Cidade do Salvador não se via totalmente negra como parece se ver, ou se apresentar, hoje.
Comecei a me entender por gente numa época em que a miséria mais degradante e desumana se espalhava pelas ladeiras do Maciel, mas também uma época em que ainda havia uma série de remanescentes da presença inglesa na Bahia. Não apenas as que restam, como o Clube dos Ingleses onde meu pai quase saiu no tapa com Glauber Rocha porque Glauber começou a elogiar Geisel e meu pai, ainda lembrando da prisão em 64, disse que ele era um filho da puta, ou o Cemitério dos Ingleses que ainda hoje é um desaforo à Ladeira da Barra; mas por exemplo a Nubar no Campo Grande, onde senhoras elegantes que queriam ser inglesas ainda iam tomar o chá das cinco e eu ia encher o rabo de doces. Não lembro se foi em “Casa Grande e Senzala” ou em “Sobrados e Mucambos”, mas Gilberto Freyre fala uma coisa interessante: que o pessoal do sul tem orgulho da colonização europeia, mas enquanto recebiam basicamente lavradores e gente iletrada, o Nordeste era onde estava o dinheiro do açúcar e o destino da elite d’além mar, principalmente ingleses.
Era nesse convívio que a cidade se moldava, e se tornava uma cidade cuja elite se queria branca, que com alguma relutância aceitava e valorizava os elementos que chegavam da cultura negra mas que ao mesmo tempo ignorava e discriminava a população negra. De muitas maneiras ainda é.
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A Bahia moderna começou a ser reinventada nos anos 30. O mesmo Estado Novo que consolidou o samba como a música nacional criou no país uma percepção da Bahia que se tornaria permanente. Pessoas como Ary Barroso, Dorival Caymmi e Carmen Miranda construíram uma Bahia que não me sai do pensamento, que tem acarajé e abará no tabuleiro da baiana e a morena mais frajola na Baixa dos Sapateiros. A Bahia que eles criaram tinha origem no povo pobre e negro, até então ignorado, mas que apontava para uma ordem nova das coisas, liderada por uma elite intelectual mais multirracial que em outros lugares e com raízes profundas na cultura popular. Para desgosto dos atuais militantes, era a Bahia da mistura, da miscigenação, da troca cultural indiscriminada e profundamente rica.
Negar tudo isso é uma estupidez. Mais que isso, é deletério.
Ilustrando essa mudança de pensamento, hoje, essa militância tenta de todas as formas resgatar a negritude de Machado de Assis, um dos escritores mais brancos da história deste país, sujeito cuja literatura é absolutamente, completamente, visceralmente branca. Ser negro era um detalhe que Machado preferia esquecer, e é preciso um esforço prometeico para vincular sua cor à sua literatura. É deprimente, mas esses movimentos vivem de símbolos e ressignificações (ressignificação está para os anos 20 como paradigma estava para os anos 1990). Enquanto isso, essa literatura baiana que floresceu com os modernistas fazia o contrário. Jorge Amado colocou, pela primeira vez de maneira consistente, o negro e sua cultura como protagonistas não apenas da literatura, mas da sociedade. A miscigenação era um fato desejável, e mais que isso, era um ideal.
Os baianos gostaram da imagem e tentaram se adaptar a ela, cada vez mais à medida em que isso lhes proporcionava um ganha-pão, e enquanto isso não significava o fim das distâncias que separavam pretos pobres de brancos ricos.
Mas como qualquer outra, ou talvez um pouco mais, a história atual da Bahia é a história de uma crescente reescritura do seu passado.
O recente louvor aos malês, lembrado pelo Leo, é um exemplo acabado disso. Tenho a impressão de que tudo isso deriva do livro do João José Reis, “Rebelião Escrava no Brasil”, de 1985, que devolveu à ribalta um pedaço importante, mas esquecido, da história da Bahia. A redescoberta da Revolta dos Malês oferecia um referencial de grandeza e dignidade à luta negra na Bahia. Assim como negros americanos, sem o referencial cultural que no Brasil os portugueses não conseguiram apagar, a partir de certo momento buscaram no islamismo um novo referencial de identidade, a Revolta dos Malês levava a resistência negra um degrau acima dos degolamentos de senhores e incêndio de engenhos. O Leo Bernardes tem parte de razão no que comentou aqui uns posts atrás: ela foi menos importante do que hoje tentam fazer parecer, no aspecto de definição da identidade ao longo do século XX. Ao mesmo tempo, não é possível esquecer que a repressão à revolta redefiniu a estrutura demográfica dos escravos na Bahia, e com isso padrões de comportamento e de relação com o mundo, e acabou desempenhando um papel significativo na definição das relações entre brancos e pretos ao longo do século XIX. Mas a sua retomada como símbolo é um processo posterior, e de certa forma descolado da realidade.
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Uma coisa me vem chamando a atenção nos últimos anos. Sempre que se conversa com um baiano de classe média ele começa, mais cedo ou mais tarde, a reclamar de Salvador. É inviável morar lá, sei lá o quê. Como ex-baiano e turista frequente, eu não vejo isso — ao contrário, vejo uma cidade que nos últimos dez anos melhorou sensivelmente. Depois de me raciocinar todo, como diz o seu melhor cronista atual, o Franciel, cheguei à conclusão de que isso é pouco mais que o mesmo desconforto dos ricos nos aviões cheios de pobres. Com todos os problemas e defeitos, a cidade que se está formando no século XXI é mais democrática, mais plural, não é aquela em que eles cresceram. A miséria que se espalhava no Maciel não é mais admissível. E é aí que essa baianidade nagô encontra o seu limite entre a população branca.
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Houve um momento em que a axé music esteve prestes a se tornar uma música universal, muito maior do que fora e do que viria a ser. Em algum momento do início dos anos 90, o Araketu e o Olodum de Pierre Onassis e Germano Meneghel pareciam ter acumulado as condições necessárias para elevar a axé music a algo superior, como os Beatles elevaram o rock. Partiam dos batuques nos terreiros, das rodas de samba no recôncavo, da música de Dorival Caymmi, Riachão, Novos Baianos, Caetano e A Cor do Som e levando-a adiante.
Mas justamente a sua força fez a sua desgraça. Ela nunca conseguiu se erguer acima de suas raízes populares. A partir dali, se resumiu ao que nunca deixou de ser: música para fazer as pessoas pularem e beberem cerveja.
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A Salvador branca, rica, essa já há muito tempo vem tentando se tornar uma cópia bastarda de São Paulo. Os bairros ricos de Salvador, especialmente os novos que se espalham em direção ao norte, na tentativa de alcançar Aracaju e realizar o sonho manifesto da Bahia de ser Sergipe, parecem Moema, com a mesma falta de identidade, e provavelmente os mesmos valores.
A Salvador negra, cada vez mais longe das raízes que se perderam na Saúde, que despencaram Taboão abaixo, se desenvolve sob um signo novo, de uma baianidade reinventada a cada dia. Mas essa Bahia ainda está lá. Se mudou da Saúde há muito tempo e hoje mora no Cabula, no Doron, no Bairro da Paz.
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Uns anos atrás, em Montmartre, um daqueles negões com cara de Senegal tentou me vender uma fita dessas iguais às do Senhor do Bonfim e que eles importaram. Eu disse que não, ele tentou jogar um “Tradition, Tradition!” (em inglês, não francês). Tive pena, pena genuína. Ele ainda precisava aprender muito com os malandros baianos, com o olhar único que eles fazem quando você se recusa a comprar, ou com a malandragem de já ir amarrando uma no braço da moça enquanto dizem que é presente pra depois tentar intimidar a coitada.
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Talvez algum dia eu consiga fazer alguma coisa dessa mixórdia.
O Espírito-Que-Anda
Faz quase dez anos que deixei de comprar gibis regularmente. E hoje sei exatamente o momento em que os quadrinhos de super-herói sofreram o golpe fatal que os faria morrer para mim. Foi muito, muito antes.
O ano era 1992. A história era a morte do Super-Homem.
No mundo a que eu estava acostumado vilões desapareciam corriqueiramente no fim das histórias. Supunha-se que morriam, mas nunca havia corpo de delito e mais cedo ou mais tarde eles voltavam para atazanar a vida do herói. Tudo bem. Dava para aceitar isso tranquilamente.
A morte do Superman foi diferente. Ele morreu mesmo. Mas voltou dos mortos como Jesus Cristo, e cá entre nós, o estrago que ele fez no seu mundinho foi quase tão grande quanto o do seu predecessor.
Personagens importantes dos quadrinhos sempre morreram. Morriam de muitas causas, mas a principal delas era uma doença incurável chamada queda global nas vendas. A morte de Gwen Stacy, por exemplo, ainda é uma das melhores histórias de super-herói de todos os tempos. Nos anos 80 a Marvel matou o Warlock, a DC matou o Flash, matou até mesmo o Robin.
Mas até aquele momento eles tinham um mínimo de pudor, e os mortos continuavam mortos, como deve ser. A morte do Superman subverteu tudo isso.
A partir dali, virtualmente todos os super-heróis com alguma importância morreram pelo menos uma vez, real ou simbolicamente. Primeiro o Batman foi quebrado pelo Bane e cedeu o uniforme, logo refeito como uma fantasia do Clóvis Bornay, a um maluco religioso — mas da última vez que folheei suas revistas ele morria de verdade de vez em quando, morrer virou algo semelhante a quebrar uma unha do pé.
Deixei de comprar quadrinhos pela penúltima vez quando o Homem-Aranha foi substituído por um clone que tinha morrido e sido incinerado por ele, e que jamais poderia ser confundido com Peter Parker (ha história original, dos anos 70, Parker percebeu que era o “verdadeiro” porque estava apaixonado pela Mary Jane, algo que o clone não tinha vivido). Aquilo foi demais para a minha cabeça mais acostumada a narrativas simplórias como The Dark Knight Returns.
Porque matar super-herói é recurso de última. É banalizar demais algo que deveria ser minimamente sério, que deveria respeitar alguns limites para a tal suspensão da crença. Junte a isso a crescente “x-menização” do gênero, com o mundo sendo destruído a cada três dias — iam longe os tempos em que gente normal ou quase enfrentava ameaças normais ou quase e as vencia no último segundo —, e o resultado foi um ex-leitor velho demais para tanta bobagem, que olhava para trás e via que aquilo que nos anos 80 chamávamos de maturidade, com histórias mais complexas, apenas pareciam ser mais adultas — pior, agora eram levadas a sério por uma mídia cada vez mais infantilizada, e por isso muita gente encontrou nelas uma justificativa existencial: já não precisavam castigar um Musil ou Mann para serem highbrow; bastava ler Watchmen (a história em quadrinhos mais superestimada de todos os tempos, a propósito).
Eu ainda voltaria a comprar essas revistinhas, mas já estava cansado delas. Até que finalmente desisti, de uma vez por todas. Mas pensando nelas, dia desses, lembrei que há um personagem que podia fazer tudo isso com tranquilidade.
O Fantasma, o Espírito-Que-Anda, foi desde sempre dos meus personagens preferidos. Eu lia suas revistinhas muito antes de virar “marvete”, como a Abril chamava os leitores da Capitão América e da Heróis da TV nos primeiros tempos. Era a época em que seu uniforme no Brasil era vermelho reticulado, ainda hoje bem melhor do que o roxo original (dizem que por incapacidade técnica das gráficas pátrias; mas sempre desconfiei que eles acharam o original muito gay). Eu compreendia o seu mundo — que era o meu, apenas separado por um oceano.
O Fantasma surgiu dois anos antes do Super-Homem, e indicou caminhos para a definição do arquétipo que se seguiria: o uniforme colado e improvável, os olhos sem pupilas. Mas mesmo com suas Colt 1911 no lugar dos Peacemakers dos cowboys, no fundo ele era um personagem antigo. Não era revolucionário em sua abordagem do sobre-humano como o Super-Homem, não apresentava uma ideia realmente nova. Pensando bem, o Fantasma era profundamente vitoriano: combatia piratas indianos, inimigos caros ao Império Britânico, na selvagem, misteriosa, mística África Negra onde lordes iam caçar elefantes e minombuanas, jornalistas corriam atrás de Livingstone e Cecil Rhodes corria atrás de dinheiro. Se eu não soubesse que Lee Falk, seu criador, era um judeu do Missouri, podia jurar que passava suas tardes no East India Club.
Mas isso não estava claro para mim então, ou não importava, e durante décadas ele foi um personagem muito popular. Nos anos 70, esteve mesmo à frente dos outros heróis: se casou com sua eterna namorada e teve filhos. Mas o Fantasma passou tempo demais sob o controle de Lee Falk, que o manteve nas tiras de jornal e impediu que o personagem alçasse voos mais altos. Ele não evoluiu, não acompanhou sequer as mudanças importantes a partir dos anos 60. O Fantasma virou uma relíquia, como aquela África selvagem, misteriosa, mística.
Dia desses comprei uma revista em quadrinhos dele. Comparadas às histórias da Marvel e da DC, são muito inferiores. Falta a ele horizontes mais largos, um universo próprio, e mesmo roteiros suficientemente elaborados. São histórias que poderiam ser publicadas no final dos anos 70 sem nenhum problema. Além disso, todas as vezes que tentaram adaptá-lo para o cinema os resultados foram canhestros. O serial de 1943, hoje disponível no YouTube, chega a ser esquisito. O filme de 96, além de não ser grandes coisas, ainda foi sabotado pelo seu protagonista, que saiu do armário às vésperas do lançamento (e aquele Fantasma sequer usava suas Colt 1911, um absurdo).
Mas mesmo maltratado, e pertencendo a um continente que hoje não parece ter mais nada de selvagem, misterioso, místico, o Fantasma tem uma característica única que nunca foi aproveitada: ele pode morrer. Porque será substituído por seu filho, também chamado Kit Walker. Não por uma medida desesperada de editores tentando aumentar as vendas, mas porque é esse o ciclo da vida.
Um dos primeiros posts deste blog falava justamente disso. O Fantasma podia ser o primeiro super-herói em tempo real. Podia crescer e envelhecer com seus leitores, renovar-se para uma nova geração, estar sempre atual. Podia responder às questões de seu tempo, podia morrer, morrer de verdade, e ainda assim continuar vivo em seu filho. Todos os erros e becos sem saída em que costumam colocar super-heróis para dar-lhes fôlego momentâneo, como casar, ter filhos, morrer — apenas para depois, com a besteira já feita, fingirem que nada daquilo aconteceu —, podiam faer parte da normalidade do Fantasma.
Quando escrevi o post, eu achava que isso já não fazia diferença, porque o tempo tinha passado e a África agora era apenas uma terra de misérias intermináveis. Eu estava errado, claro. Ainda dá para fazer muita coisa com o personagem. Fizeram com o chatíssimo Pantera Negra, por que não com um personagem muito melhor? Todas as questões a que o mundo tenta responder hoje podem ser discutidas em Bangala, ou na ONU onde Diana Palmer trabalha. E o mais fascinante é que, mesmo com tanta coisa que se pode imaginar, o melhor que se pode fazer com o Fantasma é matá-lo.