Café com Leite

Eu gosto muito de café. Já escrevi sobre isso. E bebo mais café do que as pessoas normais.

Eu também gosto muito de leite. Cru e gelado, ou direto do peito da vaca — qualquer coisa que vem de peito é bom, mesmo. Quanto ao leite, nunca fervido ou com qualquer aditivo, como açúcar ou chocolate.

E gostando tanto de leite, e tanto de café, eu não posso misturar os dois. O simples cheiro de café com leite me dá náuseas, literalmente.

Eu nunca bebo café em casa. Eu nunca bebo leite fora de casa.

Essas idiossincarasias são estranhas.

O dia em que Paul McCartney perdeu seu swing

Um dia, muito tempo atrás, Paul McCartney dialogou com o futuro — e nesse diálogo foi um dos principais artífices da música que se seguiria.

Além disso, sem medo de errar, pode-se dizer que ele foi um dos melhores cantores da era de ouro do rock. Versátil como poucos, capaz de gravar na mesma sessão uma balada como Yesterday e um rock à la Little Richard como I’m Down. Sua voz não tinha a visceralidade de um Lennon, nem conseguia transmitir a emoção e verdade que ele passava; mas ia facilmente a extremos que poucos outros conseguiam.

Os anos passaram, muitos anos, e de uns tempos para cá ele vem se contentando em fazer música — muitas vezes muito boa, por sinal; seus últimos lançamentos não fazem vergonha a um ancião com mais de 40 discos nas costas (comentários sobre eles foram feitos aqui e aqui). Por outro lado, sua voz acabou há muitos anos; McCartney já não é capaz de chegar aos agudos que atingia nos anos 60, até mesmo nos 80; e para contornar esse problema, desenvolveu vícios que o tornam, em alguns momentos, quase brega.

Agora ele resolveu voltar lá para trás. Seu novo disco, Kisses on the Bottom, é uma coletânea de antigos standards americanos — a maioria relativamente desconhecida. Acompanha-o a banda de Diana Krall, responsável também pelo grosso dos arranjos. Pela primeira vez McCartney gravou um disco em que não toca nenhum instrumento (com uma única exceção, violão em The Inch Worm). Talvez isso contribua, em parte, para o fato de que na maioria das canções não há o seu toque, a sua marca. De modo geral, parece um disco de Diana Krall — principal arranjadora do disco e presente em virtualmente todas as faixas — com McCartney nos vocais.

É um erro. Talvez o mais incômodo em Kisses on the Bottom seja justamente isso, os vocais de McCartney.

Ele se aproxima das canções com um tom ao mesmo tempo reverente e autocondescendente; o resultado é apenas pretensioso. A intenção aparente de soar intimista e low key, então, soa caricatural. Sua abordagem das canções é completamente equivocada, deixando evidente sua incapacidade de alcançar as variadas nuances exigidas pelas canções. Isso fica mais claro em canções como Ac-cent-tchu-ate the Positive (duvida? Ouça a versão das Andrews Sisters).

A McCartney faltam tanto a versatilidade vocal e a riqueza tonal dos crooners d’antanho; mas acima de tudo lhe faltam as qualidades de intérprete que essas canções parecem exigir. Ele não tem aquele quê a mais que fazia Sinatra dar uma vida antes inimaginável a uma canção, ou o charme aparentemente preguiçoso de Dean Martin, ou ainda a sensação de casualidade que Bing Crosby imprimia ao que cantava — e, em todos esses casos, uma técnica perfeita. Interpretando velhos standards, McCartney é um mau intérprete, é só mais um cantor. Não é sequer dos melhores: é um cantor sem voz. Além disso, aparentemente o disco pretende ser minimalista; mas não se compara, por exemplo, ao que Fred Astaire fez em The Irving Berlin Songbook. É um minimalismo quase burocrático, o minimalismo batido do jazz aguado à la Diana Krall ou Harry Connick, Jr. que as pessoas ouvem hoje em dia.

Resumindo: o problema desse disco é que Paul McCartney não tem swing.

Em entrevistas ele diz ter evitado durante muito fazer esse disco porque não queria ser comparado a Rod Stewart, que andou perpetrando coisas parecidas nos últimos tempos. Ele devia ter mais medo de ser comparado com Ringo Starr. O que Ringo fez 42 anos atrás em seu primeiro disco solo, Sentimental Journey, McCartney fez agora. A diferença é que Ringo não se levava a sério, até porque não podia, e seu disco tem um tom moderno, ainda que paródico, que quase chega a dar alguma personalidade aos grandes clássicos que o baterista não teve vergonha de regravar.

McCartney, no entanto, está sempre tentando se manter à altura de sua história. Talvez por isso tenha tido o cuidado de evitar ao máximo os grandes clássicos do cancioneiro americano. Foi uma medida acertada. Se se aventurasse a interpretá-los, o resultado seria provavelmente trágico, evidenciando ainda mais suas limitações. Uma pista disso está em Bye Bye Blackbird. Sua interpretação aqui é, em uma palavra, tenebrosa. Cheque a versão de Doris Day — que dificilmente seria incluída entre as mais conhecidas — para ver como se pode cantar essa canção com simplicidade e alcançar resultados excelentes. Em vez disso, McCartney acrescenta floreios desnecessários e uma interpretação arfante a uma canção que deveria ser interpretada apenas com um banjo, um contrabaixo e uma washboard. (Pensando bem, cheque a versão de Ringo em Sentimental Journey. Até essa é melhor.)

Como você vai baixar o disco nas redes P2P da vida (afinal, a quem queremos enganar, não é?), dê preferência à versão deluxe, que inclui duas canções bônus. Entre elas uma regravação de Baby’s Request, a canção que fechava um dos álbuns mais subestimados dos Wings, Back To The Egg.

Baby’s Request simboliza tudo o que há de errado em Kisses on the Bottom. Em sua versão original era uma canção simples, despretensiosa, que pretendia apenas fechar com graça o disco. Era aquilo que sua letra dizia: uma música para tocar antes de empacotar os instrumentos, depois que todo o salão se esvaziou, uma canção boba para um casal apaixonado em fim de noite que reluta em deixar uma noite perfeita acabar. A nova versão, no entanto, tem outras aspirações; a musiquinha simples se tornou pretensiosa, a voz de McCartney, antes sedutora em sua simplicidade, agora tenta se alçar a maneirismos que já não é capaz de conseguir.

Eu sei que tudo isso parece uma condenação absoluta do disco. Não é. Kisses on the Bottom é agradável, os arranjos são de extremo bom gosto, os músicos são de competência ímpar. E se você deixa de se preocupar com a voz de McCartney, ou sua interpretação de cantor de baile, se aceita sem problemas a sensação de dejà vu nas canções, Kisses on the Bottom se torna o tipo de disco que se pode colocar no CD player em uma noite com os amigos. Ou se no seu carro ou em sua casa está uma moça ou um moço que gosta desse tipo de música. É um disco útil. O problema é que utilidade é a última coisa que se deveria dizer de uma obra de arte.

Kisses on the Bottom tem outra grande qualidade, e essa é inquestionável. As duas canções escritas para este disco são surpreendentemente bem construídas, melodicamente sofisticadas, mostrando que McCartney afinal é um compositor em pleno controle de sua técnica. My Valentine é de uma elegância estonteante, sem perder a marca registrada de seu autor; Only Our Hearts é virtualmente indistinguível do que se fez de melhor nos anos 40. São, provavelmente, o melhor do disco.

Daqui a alguns anos, quando McCartney estiver morto e enterrado e vermes carnívoros não respeitarem suas vontades vegetarianas e devorarem suas carnes, Kisses on the Bottom vai ser lembrado dentro do conjunto da obra de Paul McCartney, talvez o maior artista pop da história. Vai ser visto com um acréscimo importante à obra impressionante de um sujeito que foi capaz de ajudar a mudar o mundo, que escreveu de rocks a balés, de oratórios a sinfonias. Mas enquanto isso não acontece, Kisses on the Bottom é só mais um disco feito para tocar em BG.

Quando eu era baiano

Quando eu era baiano, no Porto da Barra ainda havia butiques de frente para os tamarineiros e para o mar verde, e a vida era fresca e fácil.

Na praia uma pequena língua negra ainda corria em direção ao mar, perto do monumento a Tomé de Souza. E por isso diziam que aquela praia era poluída; devia ser, mesmo, mas que diferença isso fazia, a água da baía talvez levasse embora o esgoto. E se não levava, quem é que ia ligar para uma besteira dessas, deixar aquilo atrapalhar a sua algria? Era na Barra que formávamos amizades instantâneas e efêmeras, e isso é um bem valioso, uma língua negra de nada não ia atrapalhar algo assim.

Os barcos chegavam mais perto da praia, e dava para ir até eles nadando. Os pescadores chegavam com os peixes ainda se debatendo, e você podia brincar com os chicharros que eles lhe davam, piabinhas que em sua mão se transformavam em tubarões monstruosos, ou ainda com os pedacinhos de gelo seco que os vendedores de picolé Capelinha lhe davam depois do segundo ou terceiro picolé de tapioca, o gelo seco queimando a água salgada aos pés do Forte Santa Maria.

Ali perto ainda havia dois clubes, a AABB para fazer natação e a Associação Atlética, ali, no pé do Morro do Gavazza. Era a época da discothèque, da Maria Fumaça pegando fogo figurada e literalmente, e os meninos cabeludos dançavam “le Freak c’est chic — freak out!”, ou “one for you, one for me”, e as meninas não davam para eles e então eles arrastavam empregadas domésticas para os telhados dos edifícios como o Vendaval ali na esquina da Raul Drumond com a Pires Ferreira.

Mas para quem não tinha ainda idade para dançar na Associação ou para arrastar empregadinhas para o telhado, aquele era o tempo de apenas dois canais de TV, a TV Aratu com a Globo e a TV Itapoan com a Tupi. A TV Aratu entrava no ar aí pelas 8 da manhã com um jingle inesquecível: “Bom dia, bom dia, Bahia do meu coração / Que tenhas um dia tranquilo assim / Com a graça de Deus e o Senhor do Bonfim”; e a tarde era a hora de odiar a Tia Arilma com aquele programa chato feito para meninas que a Xuxa depois iria imitar, e por causa dela você ia para a rua, para a Barra que você explorava descalço, sem camisa e imundo, apostando corrida de bicicleta na descida da Oliveira Salazar (que não é mais Oliveira Salazar, tem outro nome agora) entre a Oito de Dezembro e a João Pondé, deixando Marquinhos Moreno de olho roxo na frente do Jaraguá, batendo e apanhando de Jailton — apanhando mais que batendo, infelizmente — ou indo comprar brinquedos baratos lá longe, na Brink Bem da Marquês de Caravelas.

Era a Barra onde Joel instalado numa garagem do Monterey com sua Pfaff costurava calças e camisas ao gosto do freguês, ainda que quase sempre com atraso. Joel que era pai do seu melhor amigo que lhe batia mais do que apanhava, e que levou vocês à Fonte Nova onde jogavam também o Galícia, o Catuense, o Leônico — Joel que agora está numa portinha do mesmo edifício, ao lado do vão de escada para onde você levava suas coisas sempre que fugia de casa. A Barra onde Dinho que morava no Jaraguá foi para a janela na noite em que faltou luz e gritou o que mais tarde seria uma inspiração sempre presente: “E viva a putaria!”; a Barra do cheiro único do Chico Bar, o mesmo cheiro há tantas décadas, a San Remo vendendo frutas e verduras ao lado.

Naquela época a Barra ia além dos seus limites geográficos. Se não fosse assim, como o circo iria até ela? E ele ia. Para aquela parte da Barra que chamam Água de Meninos — o Tihany, alguém lembra do Tihany em Água de Meninos? Alguém pode dizer que aquele é lugar de guerra e de tragédias, de fogo e de fuzis e de escravos vendo sua revolta acabar — mas é mentira, Água de Meninos é lugar de circo, circo com bicho, com tigre e com urso, circo para olhar boquiaberto o trapezista voar no vazio e o domador com chicote na mão mostrar ao leão de bocarra aberta quem é que manda ali.

É por isso que quando eu era baiano via filmes no Guarani, no Tamoio, no Bahia, no Liceu; todos eles ficavam nessa Barra onírica, uma Barra que incluía a praça Castro Alves, a rua Chile, os ônibus e livrarias da Praça da Sé, os rolos grossos de fumo no mercado das Sete Portas, o parquinho de seu Roque no Campo Grande, depois no Tororó, os doces da Nubar diante da sumaúma que você achava ser um baobá, o PlayCenter acampado onde um dia tinha sido o Campo da Graça, o ônibus com sua avó no terminal de Aquidabã, o cheiro insuportável de chocolate da Chadler no caminho para Monte Serrat. E por ser baiano, ainda, ia tomar sorvete de tapioca ou de baunilha na kombi da Primavera, bem em frente ao que tinha sido e voltaria a ser o Hotel da Bahia, ou sorvete de tangerina na Bambinella da Marques de Leão, mesma rua de comer pizza na Pizzaria Guanabara. Ou ia ao zoológico, lendo sempre um pedaço da carta de despedida de Getúlio Vargas, bem ao lado do colhereiro; e no caminho passava por alguma pichação de Faustino ou do Dr. Pênis — “Dr. Pênis é de esquerda”, “Dr. Pênis fez fimose”, ou ainda aquelas que não tinham identificação: “O rato roeu a calçola da graxeira”, “O velho peidou e saiu aguado”.

O Forte de São Pedro ainda tinha suas muralhas rebocadas e pintadas de branco, ainda era um forte português e não um prédio mutilado com pedras aparentes para gringo ver. As velhas ainda vendiam vermelha, pimenta, gengibre e camarão seco em banquinhas diante do Forte, bem em frente da Avenida Hilário, o cortiço onde moraria um de seus melhores amigos; e o Colón ainda ostentava a velhice digna de um marco urbano, quase ao lado de um Paes Mendonça que deixava antever um futuro do qual não participaria, nem ele, nem o do Chame-Chame. E era ali, na avenida Sete, que essa Bahia fazia as compras que precisava, na Fernandez, na Tio Corrêa, na Romelsa Radiolar, o tênis Motoca a gente comprava na Ladeira da Barroquinha, ou era na Ao Leão de Ouro?, a calça Lee a gente comprava na Sloper, era na Sloper?, e os brinquedos ia comprar na Lobrás, revólveres de espoleta que não existem mais. Ali perto, quase aos pés do Relógio de São Pedro, encanadores e seus maçaricos esperavam sua vez, como vinham fazendo há mais de um século, sem saber que o seu tempo estava acabando e os canos de ferro iam desaparecendo e levando com eles seus maçaricos.

São as lembranças que ficam da Barra, e nunca vão acabar: a pizzaria Guanabara, o seu tio vagabundo estudando no Pio X da Euclides da Cunha, o cachorro perdido que você quis criar no playground, a árvore da qual caiu para quebrar o braço e que já derrubaram — toma, filha da puta. A Barra onde Eloína passava com seu maiô branco — ah, Eloína, por que eu não tinha uns quinze anos a mais, e por que eu não sabia dizer no seu ouvido as coisas que você gostaria de ouvir? —, a Barra que servia de contraponto aos cortiços da Misericórdia onde hoje tem loja chique de Pierre Verger, do Terreiro de Jesus, do Pelourinho, da Barroquinha e da Saúde. A Barra que era tão diferente do Taboão, com a Banca do Renato, no Largo da Barra, vendendo revista e trocando dólar para os gringos, a primeira banca com telefone que vi na vida. Tudo isso está vivo em uma Barra que já morreu.

Naquela época ainda havia o Centro Comercial da Barra, um pequeno open mall que deu lugar a quê?, a uma loja, um hotel? Eu não sei, a tragédia das gentes foi acumulando sobre andar sobre andar até que das lojinhas bonitas, elegantes, só sobrou um prédio disforme e improvisado. O que sei é que, assim como o Centro Comercial, a Barra acabou. Eu disse que a vida era fresca e fácil, e era mesmo, mas isso foi quando aquele era o melhor lugar do mundo para se viver, antes dos gringos montarem pousadinhas para seus compatriotas levarem as putas baratas que passam pelas calçadas, antes da Barra cair na lama da qual parece que não vai mais se levantar, antes mesmo de eu deixar de ser baiano.