Playboy

A primeira Playboy que comprei foi a de novembro de 1984, com Christiane Torloni na capa. Mas não foi por causa dela: foi pela entrevista com Paul e Linda McCartney. Deve ser por isso que, até hoje, uma das coisas que me irritam é quando riem descrentes de quem diz que “comprava a Playboy pelas entrevistas”. Pelo menos a primeira que comprei, foi.

Eram tempos diferentes: eu era um recém-adolescente mas o jornaleiro não via nenhum problema em me vender uma revista expressamente proibida para menores de 18 anos. Não havia, mesmo. Talvez porque a ditadura e a Censura estavam chegando ao fim e o país se sentia um pouco mais livre, respirando melhor; mas principalmente porque o Brasil de 40 anos atrás era menos pudibundo, menos americanizado, e todo mundo parecia ter uma relação diferente com a imagem do corpo, especialmente com a nudez, e era honesto o bastante para preferir a beleza. Basta lembrar os biquínis daqueles tempos, os fios-dentais, os asas-deltas, lembrar que nos comerciais de então a nudez era farta e comum. Isso ia até o exagero: sei de um comercial dos jeans Villejack que sugeria nada menos que uma suruba. Procura no YouTube que você acha.

Mais tarde, início dos anos 90, assinei a revista em alguns momentos de mais dinheiro. Obviamente, as moças belas em suas páginas eram um grande atrativo — quem não ficou fascinado pela Luciana Vendramini ou pela Andréa Guerra ou pela Vanusa Spindler, quem? É uma questão estética: para héteros ou gays, eu tenho certeza de que o apelo da Playboy era universal porque, como costumávamos dizer a quem ria de nossas desventuras, “mulher bonita até gay come, quero ver é ser macho pra pegar os urutaus que andei pegando” —, mas as entrevistas eram sempre uma parte importante. A entrevista de Tim Maia, por exemplo, é inesquecível.

Na mesma época um amigo que casou com uma mulher ciumenta me deu sua coleção, cobrindo boa parte da segunda metade dos anos 80. Revistas que depois desapareceram, infelizmente. Mais tarde, cheguei a ter um CD-ROM com todas as entrevistas da Playboy americana, das quais, infelizmente, li poucas antes que ele sumisse pelo mundo. E não lembro com muita certeza, mas não duvido que tenha sido numa entrevista à Playboy que Sandy & Júnior declarou a possibilidade de “prazer anal”; o fato de isso ter causado algum rebuliço então é uma mostra de como o mundo mudou: recentemente a Xuxa andou dizendo que gosta de sexo anal e de beber certas excreções e ninguém ligou.

Foi também no início dos anos 90 que comprei a primeira Playboy americana e descobri que era uma revista muito melhor que a brasileira. Enquanto esta me parecia destinada a punheteiros que sonhavam com mulheres e bens que jamais poderiam ter, a americana tinha uma postura política e um engajamento que refletia a necessidade ao combate ao puritanismo típico da gringolândia que, infelizmente, se espalhou pandemicamente pelo mundo com a internet. É bom não esquecer nunca que foi na Playboy americana que Gore Vidal publicou um artigo antológico, “Sexo é Política” (publicado aqui no livro “De Fato e de Ficção”). A gente quer putaria, nego, não fingir que é rico. Além disso, enquanto a daqui se dava ares de revista pra gente rica, a de lá não precisava disso. Outra diferença cultural importante era que a daqui se especializou em estrelas da nossa dramaturgia, enquanto a de lá se baseava em puta, mesmo — e eram mulheres de plástico, que eu nunca entendi como podiam motivar algum tipo de desejo; esses americanos são uns loucos.

O tempo passou e a revista ficou cada vez mais chata. E olha que, muitas eras atrás, cheguei a namorar pouquinho tempo uma moça gente boa que saiu sem destaque em uma de suas páginas. As vendas caíam e ela já não podia pagar o que estrelas exigiam. Não sei se por reflexo disso ou se porque o mundo foi mudando e mudando, as entrevistas ficaram mais simplórias. A internet, a consagração da autoexposição pessoal, a abundância de pornografia fácil e barata acabaram tornando a Playboy redundante, da mesma maneira que acabou a velha e boa coluna social. E em algum momento do século XXI ela anunciou que ia fechar e nunca mais ia deixar seus leitores na mão. Não me importei muito. A Playboy era, havia tempo, uma sombra do que tinha sido.

Mas o passar do tempo sempre gera alguma nostalgia.

No fim do ano passado apareceu um site chamado Inside Playboy Brasil que se dedicava a recuperar o material publicado na Playboy. Publicou, por exemplo, entrevistas maravilhosas com Chico Buarque, Caetano Veloso e Chico Anysio, todas da década de 70. Agora, depois de alguns meses, fui procurar pelo site e não achei. Desapareceu. É uma pena. Talvez exista alguma coisa no Internet Archive, eu não sei. Mas é um mau sintoma que sites como esse desapareçam assim. É como se o mundo perdesse um pouquinho da classe que lhe restava num mundo de OnlyFans.

Identidades

Meu cachorro é um cão equilibrado, tranquilo. Nunca fez mal a ninguém além dos pés de minhas cadeiras, minha edição de “O Gene Egoísta” e umas galinhas incautas que chegaram perto demais, nunca precisou. Meu pastor alemão é um poodle.

Eu sei que ele se identifica com um poodle. Um poodle melhorado, porque não é nervoso, não fica chorando quando saio, não tem medo de fogos de artifício, nem medo de outros cachorros, mas ainda assim um poodle.

É isso que vou responder quando as pessoas perguntarem se tenho cachorro. Tenho, sim, tenho um poodle. E na rua, quando os poucos que se atrevem a chegar perto de mim perguntarem “é um capa preta?”, eu vou dizer que não, é um poodle.

E se você alguma vez criticou a J. K. Rowling, vai me dar razão e vai dizer: sim, é um belo poodle, Deus benza.

E a minha cachorra, ah, essa é uma pinscher.

60 Contos Eróticos

Quando eu tinha uns poucos anos caiu nas minhas mãos um livro grande, com capa vermelho-alaranjada, chamado “60 Contos Eróticos”. Eram as estórias classificadas em dois concursos da revista Status — não essa revista amorfa de hoje, mas a revista de mulher nua dos anos 70/80.

Foi um livro que li bastante. Li, reli, reli mais uma vez, mais duas, tantas. Alguns desses contos nunca saíram de minha memória. “Tia Bela”; o seminarista que passeia pela zona; o sobrinho que vai fazer uma visita à amante do tio morto; a moça que pede “dicumforça, dicumforça”; a mãe do amigo que ajeita o narrador entre as suas pernas enquanto o chama de bobo.

O tempo passou e muitas das memórias desapareceram, soterradas por outras tantas, mais novas, e novas maneiras de ver o mundo. O livro se perdeu na vida, acho que já há uns 30 anos. Já há muito tempo não gosto de contos eróticos, estão sempre aquém do erotismo quando sutis, estão sempre brigando com as palavras quando explícitos.

Mas semana retrasada lembrei desse livro e procurei por ele na internet (o Mercado Livre é sempre um bom lugar para achar essas coisas, as pessoas gostam de vender velharias que tentam fazer passar por antiguidades). Achei, lembrei imediatamente da capa vermelho-alaranjada. Fui na Estante Virtual e vi que o livro estava barato. Comprei. Comprei também um exemplar de “Grease — Nos Tempos da Brilhantina”, mas isso é outra história.

Ontem cheguei em casa e o livro estava lá, me esperando.

O que mais me impressionou foi o reconhecimento imediato de tanta coisa. Dos contos dos quais eu lembrava, claro, mas também dos que já não lembrava. Das ilustrações. Os cartuns — reconheci todos, embora nem lembrasse que o livro tinha cartuns; mesmo assim reconheci-os todos, imediatamente, cartuns franceses inteligentes e engraçados, curiosamente sem nada a ver com a temática sexual do livro. Tudo aquilo evocava tanta coisa, evocava eu mesmo aos 10 anos.

E enquanto relia alguns contos, fiquei pensando em como esse livro definiu minha vida.

O meu conto preferido, por exemplo (“Tia Bela”: um rapaz vai morar com os tios e obviamente se apaixona pela bela tia novinha, bonita e mal amada, com quem vive uma história de amor condenada desde o início), era tão feminino.

Há uma diferença marcante entre contos eróticos escritos por homens e por mulheres — desconto aqui os contos escritos por garotos espinhentos porque esses são pouco mais que delírios lascivos causados por overdose de hormônios. Contos femininos, pelo menos esses da coletânea, parecem ser de costume mais românticos, mais suaves, costumam ter sentimentos além do sexo, uma eterna busca de um senso de pertencimento.

Fiquei pensando no quanto “Tia Bela” me influenciou. A moça que deitada de bruços na cama enquanto folheia um álbum de fotografias. A ilustração, por exemplo, mostrava uma moça nua, de costas — moça magra, de torso bonito mas com pouca bunda. Será que esse modo feminino de ver as coisas não vem daí? Não sei. Só sei que ver isso me dá uma resposta afinal às bobas que passaram décadas negando um fato básico da vida, dizendo que não tenho alma feminina. Eu tenho sim, gostar de um conto desses é indício de alma feminina, sim, e a imagem de tia Bela com a fotografia amassada nas mãos não me deixa mentir.

Mas não só “Tia Bela”. Os contos que citei lá em cima. “A Deusa de Ébano”, uma neguinha de 13 anos que come um menino de 8; era um dos meus preferidos na época, talvez pela idade, talvez pelo seio negro oferecido à boca do menino que era ainda mais novo do que eu, menino de sorte, tanta sorte que eu não tinha; mas esqueci totalmente dele. “Weekend com Liv Ullman” é um título que reconheci imediatamente, era daí que eu sabia quem era Liv Ullman (e, en passant, também a palavra “weekend“); eu não sabia quem era Ingmar Bergman, demoraria anos até saber e mais anos ainda até ver algum filme dele; mas Liv Ullman eu sabia, sabia desde que era menininho e alguém queria fazer safadeza com ela.

Agora estou imaginando o quanto não devo a esse livro que não reli inteiro, mas que vou ter que reler, para saber se isso aqui não veio de um conto, se aquilo não veio de outro, se o meu desinteresse por isso não veio da delicadeza de “Tia Bela”, se aquilo não veio daquele conto, se o seio em minha boca não evoca aquele outro.

A criança é o pai do homem, dizem, e talvez isso afinal seja verdade.

Bunda

Sabe aquelas bundas que passam na sua frente e deixam você pensando “que bunda, meu Deus?”

Era daquelas. Passou na minha frente há poucos instantes, e depois de dizer “que bunda, meu Deus”, parei para pensar na razão pela qual um belo depósito de gordura, aparentemente concebido com o fim prosaico e pragmático de acumular energia para dias difíceis, cresceu tanto no coração das gentes, cresceu tanto no meu coração, e hoje chama tanto a atenção, a minha atenção ao menos, e faz com que sua boca se encha d’água involuntariamente, e lhe faz tecer comentários que não podem e não devem ser publicados.

É claro que sacanagem e raciocínio não combinam — talvez sejam até mutuamente excludentes. Cá entre nós, parar para pensar nas razões pelas quais a visão de uma bunda deflagra reações fisiológicas em determinadas pessoas é perda de tempo, é consolo de pobre coitado que não tem a bunda ao seu dispor. E eu sequer sou esse fã absoluto de bunda; lembro de tantas namoradas sem bunda, tadinhas delas. Bunda não define caráter.

Mas bunda é algo belo, é algo que transcende. Talvez não aquelas bundas criadas à base de anabolizante de cavalo, ou arredondadas artificialmente em anos de academia — tá, eu estou exagerando, na falta de coisa melhor vão essas mesmo, que é melhor bunda esforçada que bunda nenhuma; mas a bunda bonitinha é aquela bunda natural, mesmo quando xoxinha, mesmo quando tímida. Não, ela pode ser o que quiser, só não pode ser bicho do mato e se esconder da visão de todos, ela precisa ao menos existir.

E quando ela quer mais que existir, quando quer ficar bela para o seu amado, então ela se veeste de celulite, um pouquinho que seja. E que delícia é ver as moças reclamando de suas celulites, e tentando se livrar delas, quando a celulite é quase pré-requisito para a beleza de uma bunda; bunda sem celulite é bunda de travesti, e essas não me interessam, por belas que sejam.

Bunda, rebolado e celulite; nem mesmo o diabo conseguiu inventar trio melhor, e olha que o canhoto inventa coisa de que até Deus duvida. Mas isso não interessa agora — o diabo invente o que quiser, que a visão da bunda passando em rebolado discreto na minha frente ainda não saiu da minha retina, eu a vejo nitidamente quando fecho os olhos, acompanho o ritmo discreto do seu cai pra lá, cai pra cá. Não quero saber de Deus nem do diabo. Eu agora não quero filosofia nenhuma: quero só continuar sentindo a felicidade estética de ver uma bela bunda passar diante de mim, e que bunda, meu Deus.

Transexuais

Um comentário do Gabriel à minha homenagem ao Dia da Mulher merece ser republicado aqui, porque ao resumir algo que eu penso é algo embaixo de que eu assinaria.

Rafael, pode até parecer uma piada aleatória, mas o travesti e o transexual dizem muito sobre as lutas feministas do último século.

É como bem disse outro dia o Rogério Skylab em uma entrevista ao Danilo Gentili (no minuto 17:50 mais ou menos), o travesti/transexual é um dos grandes retratos da modernidade.

Se a modernidade é a fluidez de valores, inclusive, e principalmente talvez, de identidade, se o movimento negro subvertia a ideia de superioridade de raças, se a luta operária subvertia uma realidade histórica de exploração, se o feminismo a o movimento gay já discutiam a construção cultural do que deve ser homem e do que deve ser mulher, se tudo isso é a cara da modernidade, um passo mais adiante ainda é aquele sujeito que além de querer subverter o papel social que lhe foi imposto ainda contesta a determinação biológica sobre sua identidade.

Pago pau mesmo pros transexuais, estão entre o que há de mais revolucionário e corajoso nesses tempos.

É isso.

Flanelinhas, a salvação da humanidade

No meu tempo era diferente, revistas femininas diziam como decorar a casa e o que vestir no verão; acho que prefiro os novos tempos.

O caso é que, lendo uma matéria numa dessas revistas sobre as necessidades de comunicação durante o sexo oral, fiquei sabendo que os participantes de tal colóquio se beneficiariam amplamente de um pouco mais de diálogo em hora tão prazerosa.

Como leigo no assunto, me espantou o fato de que ninguém até hoje tenha percebido a oportunidade que está bem aí, debaixo — literalmente — de seus narizes. Uma profissão nova poderia surgir para administrar essas necessidades e vontades, cuidando para o desempenho satisfatório de tais atividades.

Flanelinha de boceta.

Ou seja, alguém que desse ao senhor inexperiente as indicações necessárias para o bom cumprimento de sua tarefa. Que facilitasse as coisas e tornasse irrelevantes as vergonhas do senhor e da senhora — o senhor, que nunca para para pedir direções; e a senhora, que tem vergonha de dizer para aquele puto que porra, mordida dói.

Profissão tão útil, essa seria. E, pelo menos para mim, não é difícil imaginar o flanelinha desempenhando seu doce mister:

“Vai! Vai! Isso. Pra esquerda! Vai, vai! Mais um pouquinho! Desfaz, desfaz! Pra frente. Agora um pouquinho pra direita! Um pouquinho pra direita! Agora desfaz! Isso! Vai, vai direto! Isso! Isso! Cavuca fundo!”