Cinderela 77

Imagino que um bocado de gente já tenha visto isso, o último capítulo de “Cinderela 77”, uma novela da Tupi exibida em — surpresa! — 1977. Mas não custa postar aqui.

(É a maravilha da internet, especificamente do YouTube. A maior parte das gentes louva o link com o futuro que essas coisas de internet propiciam; eu sou grato pela chance de acertar as contas com o passado. De repente, um mundo de informações que pareciam perdidas para sempre no último grotão de minha memória reaparece aqui. Ninguém jamais vai saber o quanto sou grato ao YouTube por essas coisas. Eu vi capítulos dessa novela nessa época. Odiava novelas e desprezava quaisquer coisas associadas a elas — mal-estar que o tempo e a velhice destruíram, substituindo-as por uma condescendência extemporânea; mas lembro do robô que falava “PT saudações” [as gerações mais novas imaginarão que ele se referia ao Partido dos Trabalhadores e não a telegramas, pobres gerações ignorantes de um passado inútil] e de Sandoval. Eu sempre gostei dos vilões.)

Olhando agora, em retrospecto, fico impressionado com o uso da metalinguagem nessa novela.

Nos anos 70, a Tupi era uma empresa que respondia pelos erros de julgamento (e familiares) de Assis Chateaubriand e estava condenada ao fim. Reclamem o quanto quiserem, apontem as teorias conspiracionistas que desejarem: a verdade é que Figueiredo só apressou o desenlace inevitável. Ela mal pagava seus funcionários, se pagava. As condições técnicas eram terríveis. A sensação de fim cada vez mais próximo era inevitável, apenas contrabalançada pela fé na força de sua história.

Em diversos lugres vejo pessoas lembrando dos bons tempos da Tupi, muito parecidas com as que lamentam o fim da PanAir. A verdade é que tudo aquilo era heróico, sim, mas também era trágico. Conheço bem o espírito de improviso que fez parte do universo da TV durante muito tempo, e acho que ele só é bonito em retrospecto. Imagino quantos comerciais não foram editados clandestinamente na TV Tupi, quando o jabá era praticamente institucionalizado. Imagino o clima de “cada um por si e Deus que se foda” que a situação decadente da TV propiciava.

Mas quando vejo a liberdade criativa que era possível na Tupi, tudo isso acaba parecendo valer a pena.

A Tupi já tinha inventado a telenovela moderna com “Beto Rockefeller”, quase 10 anos antes. Há alguns capítulos disponíveis no YouTube, tirados do site da Cinemateca Brasileira, e eles são fascinantes. A linguagem se assemelha, em vários momentos, à do Cinema Novo, e imagino que se deva à mesma falta de dinheiro e de tecnologia. Os atores trazem muitas vezes os vícios do teatro, as marcações rígidas, o apego excessivo aos rr ditos corrrrretamente. Mas conseguem passar a emoção necessária, ao contrário dos atores despreparados que se vê nas novelas de hoje em dia.

É por tudo isso que fico impressionado com a liberdade criativa de que uma novela como “Cinderela 77” pôde desfrutar. Uma novela feita para o público do início da noite com resultado é fascinante, e quem tem alguma familiaridade com as tragédias gregas vai encontrar um bocado de pontos de convergência. E depois, se não for pedir demais, compare com as novelas pasteurizadas e engessadas da Globo hoje.

Isso não quer dizer que eu ache que a Globo destruiu a criatividade na TV. Pelo contrário. Ao contrário de outros comunistas velhos de guerra, tenho uma admiração sem tamanho pela tal Vênus Platinada. Mas para mim, pessoalmente, rever essa novela significa rever padrões estéticos que definiram a base do meu modo de ver TV, e que já foram superados há mais tempo do que ouso contar. Mas representa acima de tudo um deslumbramento com o talento, a ousadia e o amor que você vê em cada frame. Não se faz mais TV aberta como antigamente.

(Este post é um oferecimento da Associação dos Leitores Revoltados com a Cagada na Cabeça de Rafael Naqueles que Falam que “Minha Infância Foi Melhor Que a Sua”.)

Infância

Há uma série de coisas que me irritam no Facebook; mas tem uma, em particular, que me faz pensar em como as pessoas conseguem usar qualquer coisinha de nada para se autoconferir uma nesga de grandeza imaginária e ter o direito putativo de serem arrogantes no pouquíssimo que acham que podem ser.

São aqueles posts que falam que sua infância foi melhor que a atual. “Você viveu isso ou isso? Parabéns, sua infância foi a melhor”, e daí para baixo.

Eu gosto muito da minha infância. Nostálgico jamais arrependido, gosto de lembrar dela, dos elementos que a fizeram. Sigo grupos de outros saudosistas que viveram o mesmo que eu, como Imagens Antigas de Salvador, Aracaju Como Eu Via, Imagens Antigas do Rio de Janeiro. Gosto da minha infância, repito; mas não porque ela foi melhor que as outras, de outros tempos. Gosto porque foi a minha infância, a única que tive e da qual às vezes tenho dúvidas de que saí. Gosto como alguém gosta de jenipapo.

É por isso que quando vejo alguém se vangloriando por ter andado de carrinho de rolimã, por exemplo, tenho a certeza de que o nível de estupidez mundial não dá sinais de arrefecer.

Eu andei, também. Tenho uma cicatriz no pé para provar. E que merda, isso. Sinceramente, em vez de andar de carrinho de rolimã eu queria era ter dinheiro para comprar o CP-500 que era bonitão mas que nunca tive e por isso eu tinha que me contentar em ir para a rua brincar.

Joguei bola de gude joguei bafo quase aprendi a rodar pião joguei bola e fiz gols porque eu colocava a bola onde queria quebrei braço quebrei cabeça quebrei braço de novo vi todas as unhas dos pés irem embora nas topadas mas elas sempre voltavam e Maura a empregada fazia o melhor bolo de laranja fui ao circo ver o domador de leões brinquei todas aquelas brincadeiras violentas que os meninos brincavam sofri bullying na escola e fiz bullying também porque o mundo é um grande sistema de compensações e talvez eu seja um pouco menos estressado porque briguei muito na rua e levei murro e levei chute mas bati mais do que apanhei.

O que me consola bastante.

Mas grandes merdas, tudo isso. Para começar, essa meninada faz mais sexo e mais cedo do que a minha geração, criada numa pequena província de muro baixo. E só por isso ela já é melhor (em compensação não viveu as históricas tragicômicas que eu posso contar). Mais que isso, faz sexo com menos preocupações, com menos culpa. Eu fui adolescente em uma década em que a Aids era razão de pânico absoluto.

Posso até lamentar que não leiam mais as historinhas Disney que eu lia; eles certamente não sentem a mínima falta. E se estranho a maneira cada vez mais diferente com que se relacionam, utilizando a internet e estabelecendo novos padrões, o fato é que essa é uma geração que está avançando em uma nova fronteira, instaurando uma nova normalidade. Não é pior, nem melhor. É só diferente.

Há exceções, claro. A TV aberta era realmente melhor que a atual — a variedade de atrações numa mesma programação me impressiona até hoje —, e o fato de haver poucas opções fazia com que ela tivesse um papel importante, já desaparecido, de unificação da conversa (“Bestão, você não viu mesmo SWAT ontem?”, e droga, agora eu tinha que dar uma porrada no babaca que disse isso, porque eu caía no sono às 8 da noite e não tinha tempo de ver SWAT porra nenhuma). Para quem, como eu, gostava de filmes — ainda era cedo para gostar de cinema — a programação era infinitamente melhor. Era fácil ver tantos dos grandes clássicos dos anos 50. Chaplin era exibido na Sessão da Tarde.

Mas se alguém realmente acha que a sua infância foi melhor que porque assistiu a “O Homem de Seis Milhões de Dólares”, que pena que se contente com tão pouco. A propósito, os meninos de hoje também podem ver o seriado, e na hora que quiserem, porque ele está no YouTube — enquanto na minha época a gente via quando a TVs deixavam. Eles só não veem graça nele, e eu entendo.

A meninada tem Netflix, tem torrents para assistirem o que quiserem quando quiserem, têm Spotify para ouvir a música ruim que se faz hoje — mas é a música deles, do seu tempo, como eu tinha que aturar a música ruim do meu. Sua noção de tempo para esse tipo de relação com o mundo e com a informação e o entretenimento é provavelmente o sonho de todo menino de minha época, que não tendo nada disso se contentava em subir em árvores, como macacos vinham fazendo já havia milhões de anos.

Em virtualmente todo e qualquer aspecto, a infância de hoje é melhor que a de antigamente.

E sempre que vejo algum sujeito encher a boca para falar de como brincou de carrinho de rolimã, eu penso: besta, brincou porque não tinha internet.

“Dona Olga não tirou essa fotografia em vão.”

Eis uma confissão desnecessária: eu estou longe, muito longe de ser um sujeito modesto. Não tenho culpa, foi Deus que me fez assim.

Mas sempre que leio esses anúncios, tenho a certeza de que precisaria comer muito feijão até ser um redator tão bom.

(Outros três títulos dessa mesma campanha: “Não trabalha na Prefeitura, mas já tapou muito buraco por aí”; “Já passou dos 30. Mas podem vir quente que ela está fervendo.”; e “Roubaram a mulher do Romeu. Juro por Deus que não fui eu”.)

Essa campanha tem quase 40 anos, e foi veiculada em 1978 pela Publivendas, em Salvador. São os textos que me fascinam, que me impressionam além do normal.

São praticamente crônicas da vida comum. Contam detalhes da vida do ouvinte de rádio que mesmo hoje, quatro décadas depois, ainda são verdadeiros. É uma campanha absolutamentebrilhante.

E ela acabou participando de um episódio curioso na minha vida.

Olhando para trás, é assustador que esse episódio já tenha um quarto de século — fazendo aniversário por esses dias, se já não fez.

Eu trabalhava em uma agência de Aracaju e estava fazendo uma campanha para uma rádio local. A primeira campanha que fiz ficou legal, mas foi rejeitada pelo dono da agência.

Fiz uma segunda. E essa ficou muito boa. Leve, engraçada, abrangia os públicos-alvo da rádio. Brincava com nomes locais famosos e tentava se aproximar do universo dos ouvintes. Ela foi rejeitada também.

E aí eu cansei. Tá certo, vamos brincar.

Datilografei os títulos dessa campanha e levei para o sujeito que tomava as decisões. Joguei o melhor papo de vendedor que eu tinha — o que não devia ser grande coisa, porque se eu vendesse bem não seria redator. De novo: “Não tá bom.”

Era a minha deixa.

“Olha, essa campanha ganhou não apenas o Colunistas de melhor campanha de jornal, mas também o Melhores da Década. Mas se você não gostou, paciência. Eles não entendem nada mesmo.”

Pedi demissão uma semana depois.

(A propósito, o título deste post é a legenda do anúncio da dona Olga.)