Sábado à tarde, muito longe

O homem está no caixa do horti-fruti, no subúrbio. É mais ou menos uma da tarde do sábado, aquele horário morto em que só os homens de família ainda existem, e saem à rua em um dia frio de inverno em busca de algo que faltou em casa, porque é isso que os homens domesticados fazem nos sábados de inverno, e saem com uma sacolinha de plástico com umas frutas, cebolinha, talvez uma lata de cerveja.

Só mais um sujeito do subúrbio, um entre tantos, não fosse a revista que carrega debaixo do braço enquanto paga: uma edição da revista Guitarra.

Essa é a revista que vemos nas mãos de adolescentes de cabelos compridos, roupas pretas e camisetas puídas dos Ramones. Não é o tipo de coisa que se espera de um homem como ele, óculos, mais de 40, sandália de dedo que denuncia a tranqüilidade resignada do homem casado em uma tarde de sábado.

Nada no seu rosto e no seu corpo denuncia um insuspeito ás da guitarra. Cabelo cortado curto como convém a um funcionário respeitável; bermuda barata, camisa barata, a despretensão daqueles que passarão o tarde de sábado bebendo cerveja e vendo o jogo, talvez lavando o carro. Olhe para este homem e o que você verá é apenas um pai de família como tantos outros, daqueles que jamais pensariam em sai por aí com uma revista Guitarra adornando suas axilas.

Há uma época em que todos os sonhos parecem, se não possíveis, dignos de serem sonhados. É isso, essa pureza, que faz com que a adolescência seja lembrada com tanta saudade por tanta gente. É também essa pureza que se perde à medida que se envelhece e que o mundo vai impondo suas vontades ao espírito que antes julgavam inquebrantável, aos gritos de Gabba Gabba Hey. Uma revista sobre guitarras pertence a essa época e a essa pureza. Não pertence a homens do subúrbio que se aproximam da meia-idade.

Algo de melancólico em tudo isso dá a impressão de um sonho que não se realizou nem se tornou, como deveria, uma boa lembrança de tempos que passaram que deveriam ter passado. É aquela lembrança que o faz suspirar à noite, antes de dormir, enquanto a mulher ao seu lado já ressona, cansada do dia que passou e cansada do que a espera no dia seguinte.

Enquanto olho para ele, desejo apenas que o sonho de ser um ás da guitarra não atrapalhe a sua vida. Sonhos que sabem que não serão realizados mas que se recusam a morrer costumam fazer isso.

Ele paga suas compras no caixa, transfere a revista para a mão esquerda e passa por mim, que espero dentro do carro. Seu rosto é tranqüilo, e se tranqüilo é sinônimo de resignado, de que isso importa? Talvez o sonho que adivinho pela revista em sua mão não seja tão ruim assim. Talvez nenhum sonho seja ruim.