Fora matar meninos, institucionalizar a grande corrupção, amordaçar todo um país e depois entregá-lo destruído e com a alma um pouco piorada, teve algumas coisas que a ditadura militar fez bem.
O sistema de comunicações que os milicos deixaram era exemplar. Nem parece obra de uma gente que hoje só entende de ajudar ladrões de joias e pintar meios-fios. O caso das telecomunicações é o mais óbvio, porque um sujeito em Canindé do S. Francisco conseguir ligar direto para qualquer lugar do mundo era algo que não existia de maneira universal sequer nos EUA. Mas também dignos de orgulho eram os Correios. Em 1986, uma carta enviada de uma capital para outra normalmente chegava no dia seguinte. Mais tarde, o Sedex fazia com que uma encomenda estivesse com o destinatário antes das dez da manhã do dia seguinte.
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos era exemplo de eficiência. Era também um instrumento importante de integração nacional, apenas para ficar nos valores caros à milicada que, hoje, abdicou de qualquer senso de moral.
Pensei nisso quando lembrei de um tweet de Lula há algum tempo. Ele falava sobre a necessidade de combater a privatização dos correios. Lembrou que “em mais de 2 mil municípios onde não existem agências bancárias, os Correios são a única instituição a atender moradores e negócios locais. E quem vende ou compra pela internet sabe que pode contar com uma eficiente rede de logística que abrange todo o território nacional.”
Dois mil municípios equivalem a 40% do total brasileiro. O tamanho do estrago que a privatização dos Correios faria nas vidas de milhões de brasileiros não pode ser estimado, embora hoje fosse menor do que há alguns anos: a distribuição de impressos passou a ser mínima, contas chegam por email ou pelos aplicativos de celular. Gigantes do varejo constroem suas próprias redes de logística, e os caminhões do Magazine Luíza chegam a buracos inimagináveis.
Ainda assim, seria um estrago considerável.
Para isso, no entanto, os privatistas contam com a estupidez do brasileiro médio. Dia desses vi um comentário raivoso de um sujeito que tinha comprado algo, escolhido a entrega mais barata (pelos Correios, óbvio) e então ficava reclamando da demora, e que era por isso que os Correios tinham que ser privatizados. Ele não conseguia entender que no mundo sem Correios ele pagaria ainda mais pela mesma demora.
O desmonte começou ainda no governo Sarney. Collor aprofundou o processo, inclusive mudando o nome para permitir uma posterior privatização; mas a coisa alcançou seu ápice durante o governo FHC, que abriu uma porção de miniagências terceirizadas, avançando ainda mais no propósito de Collor e consolidando a decadência do serviço.
Lula interrompeu esse processo, mas fez algo igualmente danoso: utilizou a empresa como moeda de troca política, entregando-o ao PTB de Roberto Jefferson. Foi nos Correios que estourou o escândalo do Mensalão.
Privatizar os Correios é repetir a canalhice com a nação feita durante a privatização das telecomunicações.
Me impressiona ver como as pessoas continuam defendendo a privatização, tolerando os preços irrisórios com que estatais foram vendidas, alegando que hoje a situação é muito melhor, lembrando que demorava-se anos para conseguir uma linha de telefone.
Parte disso é burrice, parte é ignorância, parte é má fé. A burrice está em não ver que essa universalização dos serviços telefônicos se deve não à privatização, mas à evolução tecnológica. A ignorância, em talvez não saber que já no início dos anos 90 — também graças ao barateamento da tecnologia, a modelos mais eficientes de gestão e parcerias com a iniciativa privada — telefones tinham deixado de ser um objetivo inalcançável e chegavam a cada vez mais casas. A má fé está fingir que não vê o que está diante de seus narizes.
Em 1997, só havia uma operadora de celular em Sergipe, a estatal Telergipe. 27 anos depois, Tim, Claro e Oi têm cobertura pífia no interior do estado. A única operadora a abranger de maneira consistente esse território é a Vivo. Não porque foi a única a fazer investimentos, o que provaria a tese de que a mão invisível do mercado faz mais que tirar dinheiro de pobre. Mas porque foi quem acabou ficando com a antiga Telergipe, e herdou a infraestrutura que ela tinha construído com dinheiro público.
Eu ainda continuo desconfiando da mão leve do mercado.
O Brasil é o unico pais que sofre de doenca autoimune. Os próprios habitantes atacam seu pais, seus compatriotas, prejudicando a eles próprios de uma forma totalmente ilógica. Um pais que tem cancer.
Estive numa reunião com a secretária da indústria e comércio do Paraguai, o pais mais pobre da América do Sul, e não vi lá esse fenômeno do “cancer” em uma nação.