Let it Be, de novo e finalmente

A Apple Corps. anunciou o relançamento do filme Let it Be — o original, lançado há 54 anos —, agora restaurado, remasterizado, essas “res” todas que viabilizam as arapucas para fãs em que a empresa se especializou nas últimas décadas.

A princípio não entendi direito: lançá-lo depois do excelente Get Back, de 2021, parece um anticlímax, quase um contrassenso.

Assisto de vez em quando a esse filme há mais de 40 anos. No dia 14 de dezembro de 1980, o domingo seguinte ao assassinato de John Lennon, a TV Aratu exibiu Let it Be. Era um dia nublado, abafado, depressivo. Havia visitas lá em casa e as pessoas comentavam tristes sobre o assassinato bárbaro daquele tal John Lennon, que eu nunca tinha visto mais gordo. Lembro de assistir a pedaços do filme e considerá-lo uma das coisas mais chatas que eu já tinha visto, pior que “Concertos Para a Juventude” e corrida de Fórmula 1, perfeito para completar aquele domingo trancado em casa.

Seis anos depois as coisas tinham mudado. Eu era um beatlemaníaco que agarrava com sofreguidão cada chance de ver algo novo sobre os Beatles — naqueles tempos, novidades sobre a banda eram algo suficientemente raro para transformar em um acontecimento cada nova informação, cada nova música desencavada de um disco pirata. Apareceu uma cópia em VHS, mais gasta que as frases decoradas que McCartney diz entre uma e outra canção de seus shows, e claro que eu tinha que ver.

Hoje parece haver uma lavagem cerebral coletiva, propiciada pelas redes sociais, que transforma fãs em lemingues siderados a considerar obras-primas qualquer lixo lançado sob a marca Beatles, das caixas remasterizadas de aniversário, cheias de sobras de estúdio sem nenhum interesse artístico ou musical, a mediocridades lancinantes e vergonhosas como Now and Then. Nas redes sociais, o que não falta é gente sem-noção e sem estética se dispondo a chorar antecipadamente pelo filme que já nasceu defunto. A canção morreu, diz Chico Buarque há muito tempo, e essas são suas carpideiras, chorando por vício e costume, apenas.

Meus cachorros têm mais dignidade.

Talvez por serem outros os tempos, para mim o filme tinha exatamente quatro momentos razoáveis: a versão mais longa de Dig It, a versão rock de Two of Us, a jam onde cantam Shake, Rattle and Roll, e obviamente o show no telhado. O resto era chato, continuava chato como quando eu era ainda criança. Não entender inglês não contribuía muito para gostar do filme, claro, mas a verdade é que os diálogos melhoram muito pouco a situação.

Let it Be era só um filme ruim. Muito melhor assistir a This is Spinal Tap. Ou mesmo Rockshow.

Ao longo dos anos seguintes assisti ao filme inúmeras vezes. Minha opinião nunca mudou. Em algum momento percebi que ele podia ser visto como uma história de redenção pela música: o começo difícil em Twickenham, a melhora dos ânimos no estúdio da Apple em Saville Row, finalmente o congraçamento do show no telhado. Sempre disse que a percepção do filme seria completamente diferente, não tivessem os Beatles se separado oficialmente um mês antes de seu lançamento.

Também disse que o filme é ruim, malfeito, uma tarefa muito acima da experiência e provavelmente do talento do diretor Michael Lindsay-Hogg — e a maior prova disso é que Let it Be, em sua mediocridade, em sua incompetência, é a única obra pela qual Lindsay-Hogg será lembrado. Era ululantemente óbvio ser possível fazer algo melhor com o material existente.

Com Get Back, Peter Jackson provou que era. E fez pior: lançou luz sobre o papel deletério de Lindsay-Hogg na epopeia de erros que foram a ideia e a execução do Let it Be.

É por isso que soa estranho o seu lançamento agora. Let it Be já estava restaurado há muito tempo, e algumas cenas puderam ser vistas já no Anthology. A restauração agora lançada deve ser outra, com melhores recursos, algo similar ao filme de Peter Jackson. De lá para cá a longa e sinuosa estrada se estendeu muito além do que se podia imaginar, e é por isso que, à primeira vista, parece não fazer sentido o seu lançamento agora, quando ele poderia ter sido parte do grande pacote que incluiu o Get Back e a edição de aniversário do Let it Be em 2021: “Tá aqui um grande documentário, e junto vai essa desgraça para vocês verem a bagaceira que fizeram antes”.

Mas é estranho só à primeira vista. A lógica da Apple é a do caça-níquel, do camelô. Por que lançar tudo junto se vale mais a pena lançar cada parte em separado? Além disso, o Get Back pode ter ajudado a amenizar o efeito depressivo que Let it Be sempre exerce nos seus espectadores, mudando a perspectiva com que se olha para o filme original. Agora podemos olhar para a obra de Lindsay-Hogg como um técnico de laboratório olha para um exame de fezes.

Que o cheiro do parágrafo acima, porém, não seja levado tão a sério. A irritação deste post não é com o filme, que é apenas chato e medíocre e merecia ser obliterado da história em favor do Get Back, como o compacto duplo Magical Mystery Tour original foi substituído pelo álbum americano. O incômodo é com a vulgarização progressiva e agora aparentemente incontrolável de uma obra estelar como a dos Beatles, e com a estupidez crescente do público consumidor. Um fã dos Beatles que ainda não tenha visto o Let it Be é, certamente, um fã novo que não achou que valesse realmente a pena o esforço de busca para assistir ao filme. Pra ele, o lançamento pode significar alguma coisa. Infelizmente, só para ele.

2 thoughts on “Let it Be, de novo e finalmente

  1. O Get Back não só redimiu o Let it Be, como dissolveu um monte de teorias da conspiração sobre a relação pessoal dos Beatles naqueles dias.
    O Get Back é Jesus falando “eu lhes dou um novo mandamento…”

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