As vidas de John Lennon

Há exatamente 20 anos, um livro sobre John Lennon se tornou objeto de debate na mídia de fofocas: The Lives of John Lennon, escrito por Albert Goldman. Aparentemente, o livro tentava destruir a imagem do ex-beatle, tirando uma porção de sujeira de baixo do tapete e fazendo revelações inesperadas para passar uma mensagem clara: Lennon, o ídolo que entrou para a memória da humanidade como um pacifista que sonhava com um mundo sem posses, era um canalha viciado em drogas e com problemas sérios de relacionamento com as pessoas.

Goldman não era um neófito no jogo de esculhambar celebridades. Tinha na bagagem outro livro bastante conhecido: Elvis, em que fomos apresentados ao sujeito também viciado em drogas, com sérios problemas sexuais, uma imagem bem diferente do revolucionário dos anos 50 e até mesmo do semi-retardado inofensivo dos filmes dos anos 60.

De modo geral, aquele livro de Goldman sobre Elvis foi aceito como verdade. Até hoje, é essa a imagem que temos de Elvis: um junkie gordo e decadente e de poucos recursos artísticos, incapaz de superar o próprio complexo de Édipo.

No caso de Lennon, no entanto, nenhum exercício de iconoclastia parece conseguir sucesso duradouro. Há algo a mais na aura que cerca os Beatles há quase cinqüenta anos, e esse algo parece ser teflon. Isso não vale apenas para Lennon: McCartney, por exemplo, vai passar para a história como a imagem acabada do bom marido e pai de família — o que significa “esquecer” canalhices como sua recusa em reconhecer a paternidade de uma ou duas crianças (mas gastando bastante dinheiro em acordos extra-judiciais), e casos deliciosos como um fim de semana numa casa em Los Angeles em 1967, quando colocou uma starlet loura em um dos quartos, uma das prostitutas negras mais famosas da Califórnia em outro, e passou o fim de semana alternando-se entre elas, até que Peggy Lipton (atriz inglesa com quem Paul costumava sair, e que na época era sucesso na ilha com o seriado The Mod Squad) chegou de surpresa para fazer uma declaração de amor e bateu a cara na porta, porque Linda Eastman, sua futura mulher, ligara e Paul estava correndo para ela. (A propósito, como já deveria ser óbvio, eu sou um eterno fã de McCartney.)

E no entanto o livro de Goldman tem muitos méritos. De modo geral é um retrato acurado de Lennon, embora cruel, e por vezes uma boa análise da sua personalidade bastante complexa. Goldman acerta ao investigar a insegurança de Lennon, sua extrema crueldade (era pouco recomendável ser um deficiente físico perto dele: uma de suas diversões era chegar perto de mendigos aleijados na rua e perguntar: “Onde estão suas pernas, amigo? Fugiram com sua mulher?” Ele também não gostava de homossexuais nem de judeus).

Os problemas com drogas também são bem delineados. Para o folclore pop, os viciados em heroína dos anos 60 eram Janis Joplin, Eric Clapton, Keith Richards; Goldman mostra a extensão do vício em Lennon e, principalmente, em Yoko. E aqui cabe lembrar uma das principais queixas de Lennon sobre McCartney. Ele reclamava que o parceiro compunha 20 canções e então arrastava a banda para o estúdio. Dizia isso para ressaltar o papel dominador de McCartney. No entanto Goldman faz uma pergunta óbvia: não fosse a diligência de McCartney, quando os Beatles gravariam, já que Lennon estava imerso em um constante torpor de heroína e Harrison se perdia em ommms indianos?

O grande mérito de Goldman é que, embora se delicie com as fofocas típicas nesse tipo de livro, sua ética de trabalho é válida e quase honesta. Ele fez um trabalho decente de entrevistas e de checagem de fatos. Seu arquivo é até hoje uma boa fonte para quem escreve livros sobre os Beatles, como Bob Spitz, cujo “The Beatles – A Biografia” foi lançado recentemente no Brasil e, embora com defeitos, é a melhor biografia dos Beatles disponível atualmente em português.

Isso dá um nível quase suficiente de credibilidade ao livro, inicialmente atacado como um punhado de mentiras — afinal, Lennon e Ono reescreveram a sua vida como uma espécie de conto de fadas da nova era. The Lives of John Lennon foi se afirmando com o tempo, para consolo de Goldman, que morreu tentando defendê-lo. Revelações feitas ali pela primeira vez seriam depois admitidas por seus protagonistas — como o episódio em que Lennon, com Yoko numa festa, arrastou a namorada de Jerry Rubin para um quarto e deixou sua mulher e o namorado da moça na sala, ouvindo o aiaiai; Yoko finalmente mencionaria o episódio no livreto que acompanha o John Lennon Anthology, em 1998. Fica a impressão que outras revelações do livro (como o vício de Yoko durante todos os anos 70) são verdadeiras.

Mas Goldman também erra, e muito. Por todo o livro, parece haver uma necessidade de destruir por completo o mito de Lennon, o que o faz tirar conclusões tendenciosas e, por vezes, sem base. Por exemplo, ele parece encarar Allen Klein, o pivô financeiro da separação dos Beatles, como quase um anjo, incorrendo no erro contrário à narrativa oficial. Exagera a rivalidade entre Lennon e McCartney, simplificando em excesso a dinâmica da relação entre os dois e reduzindo a virtualmente nada a amizade profunda e a confiança artística que sempre os uniu.

Goldman afirma categoricamente que Lennon e o empresário dos Beatles, Brian Epstein, tiveram relações sexuais durante uma famosa viagem à Espanha, em 1963. Eu também acho isso. Mas o fato é que o único envolvido a se pronunciar publicamente sobre o assunto, o próprio Lennon, disse que foi “intenso, mas não consumado”. O que aconteceu realmente sempre foi um segredo, e foi para a cova com os dois. Goldman erra ao tomar como fato algo que não passa de especulação. É um erro grave para um historiador.

Aqui e ali, outros erros aparecem. Goldman faz uma boa análise do que Drive My Car quer dizer sobre a psique de Lennon — uma análise bastante acurada se a canção não fosse principalmente de Paul McCartney. Ao mesmo tempo, Goldman lembra acertadamente o fiasco que foi a carreira solo de Lennon, que começou com um álbum absolutamente genial, o John Lennon/Plastic Ono Band, comercializou-se bastante com o belíssimo Imagine e então despencou para bobagens redundantes e medíocres como o Mind Games.

O livro de Goldman é um livro para fãs: a compreensão dos mecanismos e processos por trás dos Beatles é útil para nós. Mas não interessa a mais ninguém. Porque o que realmente importa, nos Beatles e em John Lennon, é a música. E para isso não é necessário livro de fofocas nenhum.