O ano do cometa

Eu mal posso acreditar que vai fazer 40 anos.

Entre 1985 e 1986, só se falava na volta do cometa de Halley — ou cometa Halley, sem o “de”, como era mais comum escrever e falar na época. Um malandro brasileiro registrou o nome e deve ter ganho algum dinheiro, porque aonde se ia se via revistinha em quadrinhos, especial da Globo, reportagens, previsões. A maioria antecipava o alumbramento visual que seria a passagem do cometa e sua cauda incandescente. E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada.

Falava-se também do medo e pavor e terror e pânico sentidos pelas pessoas em 1910, quando ele tinha passado pela última vez.

Eu já conhecia a fama do Halley porque anos antes tinha assistido a um episódio de “Túnel do Tempo” que se passava no dia do periélio do cometa. Sabia do medo, do dia virando noite, da bola de fogo imensa no céu apavorando as gentes.

A única pessoa que eu conhecia e que estava viva da última vez que o cometa tinha passado era minha bisavó. E claro que perguntei a ela como tinha sido, se ela lembrava do pânico generalizado, do medo, da certeza do fim do mundo, se as pessoas em volta dela tinham arrancado os cabelos e se jogado ribanceiras abaixo em um surto de desespero coletivo.

Mas dona Sinhá não lembrava de nada; mais presente em sua lembrança era a pandemia de gripe espanhola, alguns anos depois. Era estranho, porque a pouca idade não justificaria o olvido se a passagem do Halley tivesse sido espetacular como se dizia que tinha sido.

Na madrugada do dia 11 de abril, acho, eu e Gal subimos ao telhado do edifício com um binóculo e procuramos o cometa. Foi uma das grandes decepções das nossas vidas. O que se via depois de muito esforço era uma vaga luzinha borrada, mais ou menos como a luz de um poste distante obnubilada pela neblina.

Tanta expectativa para tão pouco. Algo tinha dado errado para o cometa. E demorei algum tempo para concluir que talvez aquela histeria de 1910 de que eu tinha ouvido falar tivesse sido um pouco exagerada.

Mas essa bobagem é repetida ainda hoje. A própria página da Wikipedia sobre o cometa faz referência ao medo de 1910.

Sempre reclamo que as pessoas têm preguiça de pesquisar. Mas só agora lembrei que podia consultar o Jornal do Brasil na hemeroteca da Biblioteca Nacional e descobrir, finalmente, o que realmente aconteceu.

O ápice da passagem do cometa estava previsto para o dia 18 de maio. Entre janeiro e maio, as poucas referências ao cometa vêm de telegramas internacionais. Boa parte de quem dizia avistar o cometa estava vendo, na verdade, a velha e boa Estrela d’Alva. Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar.

Em 5 de abril já havia relatos de avistamento, desmentidos por cientistas. No dia 24 o JB publica um artigo que poderia ter sido publicado em 1986, fazendo referência ao medo que o cometa já tinha inspirado ao longo dos tempos.

Em 14 de maio, um telegrama do Maranhão dizia que lá já se via o cometa à luz do dia e as pessoas se aglomeravam na rua para ver. Os jornalistas maranhenses, pelo visto, eram uns pândegos. Dia 17 o JB antecipava o grande dia e a “grande chuva de estrelas” que se seguiria, e se perguntava canalhamente se seria o fim do mundo. Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada.

O JB de 19 de maio conta o que aconteceu no Rio de Janeiro na noite anterior. As pessoas se amontoaram na Beira Mar, nos quintais, nos morros, o fim do mundo estava previsto para as dez da noite.

E o que se seguiu foi aquela mesma mixaria que eu veria 76 anos depois.

E quem acreditou nessa conversa mole pensou que o mundo ia se acabar, e foi tratando de se despedir, e sem demora foi tratando de aproveitar. Beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia, dançou um samba em traje de maiô. Chamou um gajo com quem não se dava e perdoou a sua ingratidão, e festejando o acontecimento gastou com ele mais de quinhentão.

Agora eu soube que o gajo anda dizendo coisa que não se passou. Ih, vai ter barulho e vai ter confusão, porque o mundo não se acabou.

Era por isso que dona Sinhá não lembrava do tal cometa. Porque a uma criança no interior de Sergipe, a pantomima midiática simplesmente não chegava. Não havia jornais espicaçando a imaginação das pessoas, gerando ansiedade e medo, nada disso. E o Halley era apenas uma luzinha a mais no céu, visível apenas a quem prestou atenção.

Imagino o que vai acontecer daqui a 38 anos. As pessoas vão falar do pânico de 1986, porque parecem precisar disso. Vão falar que pessoas morreram e outras nasceram, vão falar de tumultos e de desespero.

E se eu estiver vivo, o que é altamente improvável, vou confirmar tudo isso.

Traduttore… Tradittore

A biografia de Walt Disney por Neal Gabler chegou há algumas horas. A tradução é de Ana Maria Mandim. O livro está na terceira edição. E está me lembrando também de algo que eu sempre disse: que o mais importante no ofício do tradutor não é tanto conhecer a língua de que se traduz, mas a língua para a qual se traduz.

Quando o livro menciona a fazendinha em Marceline, Missouri, em que Walt passou parte de uma infância idílica e que transformou no ideal americano de milhões de crianças em todo o mudno, é assim que o trecho é traduzido: “Havia raposas, opossums, guaxinins.” Uma nota da tradutora explica o que é um opossum:

Tipo de marsupial, que não é morcego, com aparência de um rato de pelo longo, encontrado na América do Norte, ao norte do Rio Grande.

Ainda estou em dúvida sobre o que a moça quis dizer: não sei se fico aliviado por saber que morcegos não são marsupiais, ou apavorado ao descobrir que o morcego é um marsupial, mas não é um opossum.

Essa mixórdia seria evitada se a moça soubesse que opossum tem tradução simples e fácil para a última vagaba do Lácio: gambá. Tudo bem que não traduzisse por saruê ou timbu, termos a que estou mais acostumado porque são nordestinos. Mas é gambá, diacho, bicho que a gente vê o tempo todo em quintais e esmagados em estradas. Um opossum é tão gambá quanto um raccoon é guaxinim — apenas são espécies diferentes: o único gambá da América do Norte é o gambá-da-virgínia, assim como o guaxinim do Norte é o raccoon e o nosso é o guaxinim ou mão-pelada. Se traduziu raccoon por guaxinim, que traduza opossum por gambá porque a lógica é a mesma, e está tudo certo e a gente segue a leitura em paz.

Mas não, não fez isso e hoje vou ter pesadelos com morcegos marsupiais revoando meu telhado e carregando morceguinhos vampiros em sua bolsa.

O mais irônico é que tudo isso eu aprendi assistindo a “Disneylândia”, nos meus verdes e tão distantes anos.

Mas a coisa não termina aí.

A tal fazenda “era, nas palavras da tia de Elias, ‘um lugar muito boíto’”. A nota da tradutora explica:

No original, a frase é “very hansome (sic) place”. O correto seria “handsome”.

Eu até posso ouvir Elvis ou Carl Perkins falando hansome. Mas ninguém neste país assolado por Pablo Marçal fala “boíto” no lugar de bonito, com exceção de Didi Mocó muito tempo atrás. Traduzisse por “bunito”, tradução muito mais aproximada do contexto original, e não precisaria sequer de nota.

Tudo isso é na página 26. Tenho mais 700 pela frente. Que Deus me proteja.

 

 

Ópera de Borracha

Não sei como as pessoas deixam isso passar batido e ficam aclamando injustamente o Sgt. Pepper’s Lonely Hears Club Band como o primeiro álbum conceitual dos Beatles, essas coisas aí que todo mundo repete que nem papagaio.

Porque o verdadeiro ábum conceitual da banda veio muito antes. É o Rubber Soul. É tudo tão óbvio.

O álbum começa com o sujeito recebendo um convite pra dirigir o carro de uma moça que quer ser uma estrela. Mas ela não tem carro; aí ele vai até o apartamento dela e toca fogo em tudo, e diz que ela não o verá mais, porque ele é um sujeito fazendo planos de lugar nenhum. Por isso ela vai ter que pensar por si própria: e se quiser ser livre, que diga a palavra “amor”: porque ele a ama, a ama, a ama, é tudo o que ele tem a dizer. Então pergunta o que é que está se passando na cabeça dela, e reclama que ela é o tipo de garota deixa os outros para baixo e se sentindo otários, mas ele está sacando a dela — e ainda assim, de todos os amigos e amantes, ninguém se compara a ela. Por isso ele pede para ela esperar até que ele volte, e escreva seu número no muro de sua casa porque se ele precisar de alguém, é nela que ele vai pensar. Mas que ela tome cuidado: ele prefere vê-la morta do que com outro homem, e se ela aprontar alguma, é melhor correr para não morrer.

Se isso não é uma ópera italiana, eu não sei o que é.