A poesia das causas siderais perdidas

Existe um curso online de ufologia. Eles dão certificado e tudo. E você pode fazer mesmo que tenha sido abduzido, já que não é presencial.

Se eu fosse ainda o Rafael de 15 anos atrás estaria espantado com a estupidez do mundo, agora arreganhada sem nenhuma vergonha diante de meus olhos cansados. Mas nesses últimos anos passamos por tanta coisa. As manifestações de junho de 2013, a histeria canalha da Lava Jato, o impeachment de Dilma, Michel Temer, a ascensão da extrema direita, a eleição de Jair Bolsonaro, os quatro anos de tragédia e agonia, a pandemia de COVID. Passamos pelas pessoas que rezam para pneus e pela Cagona do 8 de Janeiro, a velha traficante que transformou o mero defecar em ato de terrorismo. Passamos pela transformação da esquerda em uma auxiliar boazinha de um capitalismo cada vez mais exigente, preocupada em me empurrar goela abaixo a ideia de que se eu falar “todes” as mazelas do mundo estarão resolvidas. Passamos pela consolidação da cultura do cancelamento, pela universalização da estupidez através das redes sociais.

Diante de tudo isso, a existência de ufólogos é quase um refresco, a sensação reconfortante de que a estupidez, afinal, não é de hoje e algumas coisas são permanentes neste mundo baumaniano. Para mim, ao menos, significa um tipo de maluquice inofensiva e quase benevolente, o sujeito que chamamos de excêntrico porque é o tipo de doidinho que não faz mal a ninguém, nem mesmo a ele. É uma variedade einsteiniana do astrólogo.

Mais que isso, me surpreende a tenacidade e a resiliência desse pessoal. Agora que todos têm uma câmera na mão, parece que ninguém mais tem uma ideia na cabeça.

É o grande paradoxo sideral destes tempos: há câmeras em tudo quanto é bolso, e mesmo assim ninguém agora tira foto de um disco voador. A chance que ufólogos tinham de provar que estavam certos, que os idiotas éramos os céticos, até agora não foi aproveitada.

Ninguém mais é abduzido, ninguém mais dá passeios pelo lado escuro da lua — nem mesmo a melhor das promessas feitas por esses alienígenas safadinhos, a ET verdinha e gostosa dos peitão que vinha fazer um filho para levar lá para a constelação da Ursa Polar, ah, nem mesmo isso parece existir mais. Os ETs broxaram, e nós também.

Por tudo isso é de se respeitar, sim, a insistência em acreditar no inacreditável.

E assim como admiro os golpes de Afonso Coelho, assim como um dia ainda compro um busto de Victor Lustig, o gênio que vendeu a Torre Eiffel como sucata, preciso prestar meus respeitos ao malandro que criou esse curso.

Porque de uns tempos para cá dei de pensar que deixar de acreditar em OVNIs é, no fim das coisas, uma coisa ruim, ruim e triste. Porque fazer isso seria como deixar a imaginação para os roteiristas de filmes de ficção científica, que seguem sempre a mesma inspiração, as mesmas fórmulas. Acreditar em OVNIs significa um resquício de fé no improvável, de teimosia em acreditar no que não existe; é, e isso é talvez o mais importante, uma forma mais pura de fé que a dos religiosos; ufólogos não esperam nada de ruim dos ETs, esperam paz e progresso e levá-los ao nosso líder — e não fazem mal a ninguém, nem mesmo a eles, ao contrário de quem acredita que seu Deus que os faz matar em nome do amor.

Borges dizia, e eu sempre repito, que a um cavalheiro só interessam as causas perdidas. Nenhuma causa é mais perdida do que essa, e isso a justifica e engrandece. E é assim, transformando a estupidez no mais próximo que consigo chegar da poesia, que a gente segue levando a vida.

Playboy

A primeira Playboy que comprei foi a de novembro de 1984, com Christiane Torloni na capa. Mas não foi por causa dela: foi pela entrevista com Paul e Linda McCartney. Deve ser por isso que, até hoje, uma das coisas que me irritam é quando riem descrentes de quem diz que “comprava a Playboy pelas entrevistas”. Pelo menos a primeira que comprei, foi.

Eram tempos diferentes: eu era um recém-adolescente mas o jornaleiro não via nenhum problema em me vender uma revista expressamente proibida para menores de 18 anos. Não havia, mesmo. Talvez porque a ditadura e a Censura estavam chegando ao fim e o país se sentia um pouco mais livre, respirando melhor; mas principalmente porque o Brasil de 40 anos atrás era menos pudibundo, menos americanizado, e todo mundo parecia ter uma relação diferente com a imagem do corpo, especialmente com a nudez, e era honesto o bastante para preferir a beleza. Basta lembrar os biquínis daqueles tempos, os fios-dentais, os asas-deltas, lembrar que nos comerciais de então a nudez era farta e comum. Isso ia até o exagero: sei de um comercial dos jeans Villejack que sugeria nada menos que uma suruba. Procura no YouTube que você acha.

Mais tarde, início dos anos 90, assinei a revista em alguns momentos de mais dinheiro. Obviamente, as moças belas em suas páginas eram um grande atrativo — quem não ficou fascinado pela Luciana Vendramini ou pela Andréa Guerra ou pela Vanusa Spindler, quem? É uma questão estética: para héteros ou gays, eu tenho certeza de que o apelo da Playboy era universal porque, como costumávamos dizer a quem ria de nossas desventuras, “mulher bonita até gay come, quero ver é ser macho pra pegar os urutaus que andei pegando” —, mas as entrevistas eram sempre uma parte importante. A entrevista de Tim Maia, por exemplo, é inesquecível.

Na mesma época um amigo que casou com uma mulher ciumenta me deu sua coleção, cobrindo boa parte da segunda metade dos anos 80. Revistas que depois desapareceram, infelizmente. Mais tarde, cheguei a ter um CD-ROM com todas as entrevistas da Playboy americana, das quais, infelizmente, li poucas antes que ele sumisse pelo mundo. E não lembro com muita certeza, mas não duvido que tenha sido numa entrevista à Playboy que Sandy & Júnior declarou a possibilidade de “prazer anal”; o fato de isso ter causado algum rebuliço então é uma mostra de como o mundo mudou: recentemente a Xuxa andou dizendo que gosta de sexo anal e de beber certas excreções e ninguém ligou.

Foi também no início dos anos 90 que comprei a primeira Playboy americana e descobri que era uma revista muito melhor que a brasileira. Enquanto esta me parecia destinada a punheteiros que sonhavam com mulheres e bens que jamais poderiam ter, a americana tinha uma postura política e um engajamento que refletia a necessidade ao combate ao puritanismo típico da gringolândia que, infelizmente, se espalhou pandemicamente pelo mundo com a internet. É bom não esquecer nunca que foi na Playboy americana que Gore Vidal publicou um artigo antológico, “Sexo é Política” (publicado aqui no livro “De Fato e de Ficção”). A gente quer putaria, nego, não fingir que é rico. Além disso, enquanto a daqui se dava ares de revista pra gente rica, a de lá não precisava disso. Outra diferença cultural importante era que a daqui se especializou em estrelas da nossa dramaturgia, enquanto a de lá se baseava em puta, mesmo — e eram mulheres de plástico, que eu nunca entendi como podiam motivar algum tipo de desejo; esses americanos são uns loucos.

O tempo passou e a revista ficou cada vez mais chata. E olha que, muitas eras atrás, cheguei a namorar pouquinho tempo uma moça gente boa que saiu sem destaque em uma de suas páginas. As vendas caíam e ela já não podia pagar o que estrelas exigiam. Não sei se por reflexo disso ou se porque o mundo foi mudando e mudando, as entrevistas ficaram mais simplórias. A internet, a consagração da autoexposição pessoal, a abundância de pornografia fácil e barata acabaram tornando a Playboy redundante, da mesma maneira que acabou a velha e boa coluna social. E em algum momento do século XXI ela anunciou que ia fechar e nunca mais ia deixar seus leitores na mão. Não me importei muito. A Playboy era, havia tempo, uma sombra do que tinha sido.

Mas o passar do tempo sempre gera alguma nostalgia.

No fim do ano passado apareceu um site chamado Inside Playboy Brasil que se dedicava a recuperar o material publicado na Playboy. Publicou, por exemplo, entrevistas maravilhosas com Chico Buarque, Caetano Veloso e Chico Anysio, todas da década de 70. Agora, depois de alguns meses, fui procurar pelo site e não achei. Desapareceu. É uma pena. Talvez exista alguma coisa no Internet Archive, eu não sei. Mas é um mau sintoma que sites como esse desapareçam assim. É como se o mundo perdesse um pouquinho da classe que lhe restava num mundo de OnlyFans.