As nature intended

Jojo was a man, etc.

Phil Spector, o produtor legendário que estragou os Ramones e, segundo Paul McCartney, o último disco dos Beatles, deu o ar da graça. Ele não andava falando muito, a não ser em depoimentos na polícia para se defender da acusação de assassinato de uma moça.

Agora ele resolveu falar sobre o Let it Be. Também aqui Spector se defende, basicamente: diz que salvou o disco, esculhamba a versão recente patrocinada por McCartney, o Let it Be… Naked, e outras pequenas coisas.

A história resumida: no final de 1968, os Beatles tiveram a idéia de fazer um documentário sobre o processo de preparação de um novo show e um novo disco, que se chamaria Get Back. Tudo deveria ser ao vivo — “sem truques”, exigiu Lennon. As gravações e filmagens começaram no segundo dia de 1969 e duraram um mês. Foram um inferno, de acordo com todos os envolvidos. A banda estava indo para o buraco, e não fazia questão de manter a elegância.

George Martin cansou de tanta baixaria no estúdio e abandonou o projeto. O engenheiro de som Glyn Johns, transformado em produtor, apresentou uma primeira mixagem do álbum, depois uma segunda. Esta versão chegou a ser distribuída para algumas rádios (e foi resenhada pela Rolling Stone), mas recolhida logo depois. A situação era tão feia que até mesmo a banda, envolvida com o fim iminente, abandonou o projeto. McCartney ainda conseguiria fazê-los voltar para gravar o Abbey Road, com várias canções ensaiadas durante aquelas sessões no inverno londrino, e que se tornaria seu canto de cisne. Lennon e Harrison então chamariam Phil Spector — provavelmente o produtor mais famoso da história do pop, idolatrado por gente boa como Brian Wilson — para ver o que ele podia fazer daquele material disponível. Spector se trancou com as fitas e emergiu com o Let it Be — um disco esquisito, para dizer o mínimo.

Eu fazia parte daquele grupo que achava que Spector tinha salvo o disco. Concordava com a versão de Lennon porque o que se via no filme Let it Be era uma mixórdia confusa, e achava difícil que se conseguisse tirar algo dali. Mas Lennon estava errado, e eu também. Spector não salvou o Let it Be.

O fato é que nenhum dos dois produtos — a versão de Glyn Johns ou a de Phil Spector — era grande coisa. Nenhum produtor, por melhor que fosse, poderia fazer uma obra-prima a partir do material que os Beatles deixaram em suas mãos. Aquilo era inferior a praticamente tudo o que os Beatles já tinham feito em sua carreira. Claro que se podia fazer um grande disco com aquelas canções; bastava colocar a banda em estúdio e gravar do modo tradicional, como fizeram mais tarde com o Abbey Road. Mas àquela altura isso era impossível. Johns e Spector tiveram que trabalhar com o que tinham.

Mas a versão de Johns era mais orgânica. Com boa vontade, assim como os ouvintes acreditaram que o Sgt. Pepper’s era um disco conceitual, Get Back tinha a cara de um disco ao vivo, ou ao menos a representação de um processo de criação. A abordagem de Johns estava correta. Aquele era um disco mal acabado, confuso, cheio de erros — mas era essa a proposta original de Lennon e de todo o grupo. Havia, afinal de contas, um conceito por trás daquilo tudo, e Johns conseguiu traduzi-lo adequadamente — algo que Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme, não conseguiu, a propósito. Get Back, como concebido por Johns, é um exercício de iconoclastia que faz todo o sentido no mundo fragmentado de 1969. De certo modo, chega a ser avant garde — “french for shit“, segundo o Harrison de alguns anos antes.

A versão de Johns tinha defeitos, obviamente. Ele nem sempre escolheu as melhores versões disponíveis. Algumas canções não precisavam estar lá, como Teddy Boy, que nunca chegou a um ponto aceitável de entrosamento, tosca até pelos padrões do disco. Não havia nenhuma necessidade de colocar Rocker e Save The Last Dance For Me — entre as musiquinhas que os Beatles improvisavam no estúdio pode-se citar umas cinco, pelo menos, que tinham melhor qualidade.

Ainda assim, o disco produzido por Glyn Johns tirava o melhor de uma situação extremamente adversa. Assumia que aquilo era uma gravação desleixada e e a transformava em um retrato sobre a intimidade de uma banda. A versão de Johns aparentava um sentido; a de Spector é apenas a tentativa desastrada de transformar um material ruim em algo comercial. A abordagem de Johns é mais inteligente, porque não tenta tirar leite de pedra, e os resultados são mais satisfatórios.

A versão de Phil Spector tirou boa parte da espontaneidade que se podia perceber no Get Back. Não apenas ao colocar cordas e corais em canções como The Long and Winding Road, mas ao picotar o disco e tirar a organicidade que, bem ou mal, a versão de Glyn Johns tinha. Por exemplo, é só ver o que ele fez com Dig It. Essa canção era um problema, por ser longa demais. A versão de Johns é basicamente a que aparece no filme Let it Be — que não é uma versão completa. Spector mutilou a música ainda mais, transformando-a em apenas uma vinheta perdida em meio a duas canções. Seria melhor tirá-la, ou colocar a versão de Johns (do meio para o final) para abrir o disco — “can you dig it?”

Spector está errado. Só está certo ao falar mal do Let it Be… Naked, um lixo sem razão.

***

Falando em Dig It, a canção é uma mostra de como as coisas são confusas quando se trata dos Beatles. Ela nasceu de uma jam session, com Billy Preston nos teclados e George Martin nas maracas. Por isso, está registrada como composta por todos os quatro Beatles. Mas é John quem improvisa a maior parte das letras. Talvez por isso, sempre que alguém se refere à canção, diz que é dos quatro, mas principalmente de John.

A gravação incluída no Get Back, com mais de 4 minutos e musicalmente mais interessante, mostra uma participação muito maior dos outros — principalmente de McCartney — na definição da canção. Só isso já deveria bastar para colocar em dúvida essa presunção de que Dig It é de Lennon.

Mas há uma outra canção que me intriga. No More Rhine Tapes, um dos melhores discos piratas tirados das sessões do Let it Be, ela tem o nome de Get Off e dura cinco minutos. É basicamente um bluesinho de 12 compassos. Paul canta: “White power!” e John responde: “Get off!” Aí começa uma brincadeira de perguntas e respostas entre Paul e John — Paul citando nomes e John gritando “Get off!“, quanto Ringo segura a base e George sola e arpeja durante a música. Entre os nomes desprezados por Lennon estão Judy Garland, Wilson Pickett e uma porção de outros, gente boa e ruim.

A música pára. Eles voltam. E Paul solta a frase: “Can you dig it?“, uma evolução da brincadeira do “get off“. “Winston Churchill; can you dig it?” A música continua evoluindo a partir daí.

A canção não tem maracas nem teclados, o que quer dizer que provavelmente foi gravada nos estúdios Twickenham, antes de George sair e antes dele convidar Billy Preston para amenizar o clima no estúdio. A Dig It como se tornou conhecida é quase certamente uma evolução dessa Get Off.

Não seria justo creditar a canção a qualquer um dos Beatles. É uma obra coletiva, uma brincadeira de estúdio. Mas a insistência de “beatleólogos” em definir um autor específico para cada canção acaba levando a distorções como essa.