Um adeus a John Updike

E o John Updike morreu.

Os jornais americanos estão repletos de elogios ao finado. “O escritor do sexo e do subúrbio”, diz um deles, e talvez seja essa a imagem que vai ficar do sujeito enquanto se lembrarem dele. Talvez não seja muito tempo.

Para mim Updike não significava muita coisa. Não gostava dele como ficcionista, e não conheço sua poesia. Eu o considerava uma espécie de John Cheever com menos talento, um escritor um tanto limitado com suas historinhas sobre a classe média alta do nordeste dos Estados Unidos. No entanto, os obituários o colocam no nível de um Norman Mailer e de outro cujo nome agora me escapa. Talvez ele fosse realmente tudo isso, e talvez eu esteja errado. Não me importo. Curiosamente, não falam do resenhista, e essa era a única qualidade que eu admirava dele. Sempre achei suas resenhas brilhantes, e sempre achei que esse era o seu maior talento: escrever com graça e elegância sobre as obras dos outros — às vezes com mais graça que o autor original.

Me bati com o sujeito uma vez, em Veneza, coisa de 10 anos atrás. Para mim, na verdade, não interessa se ele era um escritor bom ou ruim, porque é a lembrança desse dia que vai ficar dele em mim. Já escrevi sobre isso neste blog, mas agora escrevo de novo, porque um escritor com tamanho reconhecimento público como John Updike merece um obituário à sua altura.

Eu tinha perdido o avião em Roma. Embarquei algumas horas depois, mas o pessoal que deveria me receber, obviamente, já tinha ido embora. E foi então que cometi a minha grande estupidez.

Ao sair do aeroporto, eu poderia ter olhado em duas direções. Se olhasse para a esquerda, veria atracadas ali perto as lanchas que me levariam diretamente à porta dos fundos do hotel em que eu ficaria. Mas não, olhei para a direita, e vi um ponto de táxi. Claro que não sei por que não me perguntei como um automóvel iria me levar até Veneza. E não aceito que me façam essa pergunta, porque ela me envergonha ainda mais.

Lá fomos nós. Entramos no táxi e depois de um longo caminho pelo que pareceram ser todos os grotões da Itália ele nos deixou em um ponto de vaporetto. Ainda tivemos que fazer uma baldeação em uma estação no Grande Canal, e outro vaporetto nos deixaria diante de um longo beco pelo qual se chegava ao Campo Santa Maria del Giglio, onde fica o hotel onde nos hospedaríamos.

Foi naquela baldeação. Eu estava em pé, carregando uma porção de malas. Aquele brejo infindável, um frio de cortar os ossos — era abril e Veneza é mais fria aí pelos fins de março, talvez por causa das águas —, e eu carregando uma porção de malas. Minhas mãos estavam vermelhas, porque elas nasceram para fazer carinhos e digitar em um teclado de computador ou de máquinas de escrever, no máximo para ser erguido, dedo médio em riste, em direção a alguém de quem eu não goste. Eu não sou do tipo que nasceu para carregar malas. Não é que tal empreitada esteja acima ou abaixo de mim; é que essas coisas simplesmente não deveriam fazer parte do meu mundo. Na verdade, não sou sequer do tipo que deva ser incomodado com o destino delas; malas, para mim, deveriam ser coisas autônomas que se encaminhariam diretamente ao seu destino, bem-adestradas como os yorkshires das madames de Copacabana.

Obviamente nada disso importava naquele momento. Minhas mãos doíam por causa das malas. Ao meu lado, minha então mulher, visivelmente grávida e cansada. Olhamos em volta para ver se havia um lugar em que ela pudesse se sentar enquanto o vaporetto não chegava. Os lugares estavam ocupados. E em um deles, sentado com aquele ar fleumático de quem está muito à vontade em seu lugar, estava o tal John Updike. À vontade como maganão de historinha de Joaquim Manuel de Macedo, alheio ao drama de dois pobres brasileiros e às mais básicas regras da etiqueta. Ao seu lado, também sentada, estava uma mulher. Ela também era feia. Não tão feia quanto ele, porque isso era uma tarefa difícil, mas ainda assim muito feia.

De qualquer forma, mesmo feios eles estavam sentados, enquanto eu em pé carregava uma porção de malas e ao meu lado estava uma mulher grávida.

Há um mínimo de regras de educação que as pessoas devem seguir em público, não importa que em casa arrotem e peidem e comam com as mãos. Uma delas diz respeito ao hábito saudável e gentil de ceder o seu lugar a uma mulher grávida. Porque isso é até mais que etiqueta, é um símbolo de respeito à vida e à preservação da espécie. John Updike não era um homem educado, no entanto. Continuou sentado, rindo com o bacurau ao seu lado.

E nessas horas você começa a nutrir e cultivar um sentimento pouco nobre de indignação e revolta, cuida dele com carinho e zelo como se cuida de um bebê. Mesmo que ele fosse o escritor que eu nunca achei que fosse, ainda assim teria a obrigação moral de ceder seu lugar a uma mulher grávida — e ela sentaria ali, bela ao lado da trupizomba de meia-idade que o acompanhava; e se ele fosse mesmo bom escritor poderia refletir sobre como são as coisas neste mundo: por exemplo, que ele estivera confortavelmente sentado até então, mas estivera sentado ao lado de uma espanta-mosquitos, enquanto o pobre paraíba aqui podia até estar com as mãos esfoladas pelas malas que carregava, mas naquela noite iria dormir ao lado de uma mulher bonita enquanto ele, com aquele jeito de quem estava tão mais à vontade do que eu, ciente de ocupar o seu lugar justo no mundo, teria que se contentar com aquela coisinha do Cão vadiar. Seria uma reflexão importante e luminosa sobre a natureza vã das coisas neste mundo. Mas como eu disse, Updike não era um escritor tão bom assim.

O vaporetto chegou e fomos embora — em pé, novamente; eu só sentaria no meu quarto de hotel. Mas aquele escritor mal-educado não saía de minha mente.

Mais tarde eu teria uma vingança solitária que é um retrato mais que acurado da pequenez de minh’alma, ao lembrar que ele tinha psoríase e eu não, e não importava o quão mais à vontade ele parecesse estar naquela estação do Grande Canal. Um pensamento mesquinho, eu sei bem, mas mesmo tantos anos depois — o tempo passou, Veneza passou, a mulher passou — ainda acho um pensamento menos mofino que a recusa do sujeito em ceder o seu lugar a uma mulher grávida.

Isso foi há mais de dez anos. Agora Updike está morto. Que descanse em paz. E escrevo isso com sinceridade e com profunda paz de espírito. Porque agora tenho mais um motivo para olhar de cima para ele e reconhecer que o destino me compensou aquela pequena provação — ele está morto e eu estou vivo, e não existe consolo melhor que esse neste mundo tão grande de meu Deus.

4 thoughts on “Um adeus a John Updike

  1. Mr. Galvão

    Nunca mais nos vimos, e embora goste de conversar com você, isso não deve ter muita importância porque muito mais tempo passamos antes sem nos ver até nos reencontrarmos há um dois anos atrás, mas passei aqui no blog e vi o post do John Updike, rapaz fiz todo o percurso em minha cabeça, então achei que tinha a obrigação de incentivá-lo a publicar essas suas histórias, em livro claro, em blog já o faz. Não sei se vai gostar da comparação, mas achei parecido com Pedro Juan Gutierrez na Trilogia Suja de Havana, cheio de detalhes,cheio de juízo de valor, até por isso, melhor, principalmente por isso,cheio de verdade. Adorei e espero o convite para o lançamento.

  2. Rafael Galvão,
    Q texto lindo! Depois deste texto, juntamente com as irmãs Galvão, você é o Galvão mais inteligente que eu conheço. Quanto ao John, que era Updike, agora ele é Downdike, como todos nós seremos um dia. R.I.P.

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