Comprei em junho, em Fortaleza, mas só comecei a ler agora. “Lili Passeata”, do baiano Guido Guerra.
O texto começa na página 11. Na página 14 eu já havia decidido: não vou ler este livro. Para respaldar essa decisão, para tirar dos meus ombros a responsabilidade por tanto radicalismo, ainda dei uma incerta nas páginas seguintes para ver se aquilo que me incomodava era proposital, se aquele mal era passageiro.
Não era:
Indicou-me, o sonolento rapaz da recepção, apontando para o compartimento superior: primeiro andar, lado esquerdo, última porta. Mas se, até lá, quisesse ir, de acordo com norma interna, teria de deixar, antes declarando a que setor me dirigia e assunto a tratar também declinado, documento de identificação, o qual, acertados os ponteiros lá em cima, pegaria cá embaixo, na saída.
Vira-a na véspera em sua casa, por volta das 17 horas. Fazia pouco, ainda no jornal, que, por telefone, confirmara o encontro, local e horário. Fora seu pai quem me atendera. Feita a consulta, isto é, solicitando-lhe permissão para entrevistar Lili, pediu-me um minuto, nem mais nem menos, um minuto. Deduzo que, pelo ruído que chegou a mim, colocou o fone na mesa, o que me levou a nova suposição: deve terido, sem saber o que responder, indagar ao advogado, certamente a orientar Lili como se conduzir, o que, estando o repórter do outro lado da linha, dizer.
Na sua “História da Literatura Brasileira” Sílvio Romero bate pesado em Machado de Assis. Diz que sua literatura tartamudeia — um golpe abaixo da cintura em um gago epiléptico que na verdade não constava da obra original: foi incluído por seu filho na segunda edição, a que eu tenho, pinçado de um texto avulso.
Pois acabei de tentar ler um bêbado com soluços. Porque é isso que esse texto é: a fala (hic!) de um bêbado (hic!) soluçante, que (hic!) interrompe sua (hic!) frase (hic!) a cada duas (hic!) ou três palavras.
A culpa não é só dele. Sua, mesmo, só a culpa pela primeira edição. Mas a que tenho em mãos é a terceira, e as orelhas do livro estão repletas de citações com elogios cúmplices ao autor, que:
…não abandona jamais a percepção do mundo, não cai no abstrato de um simples jogo verbal. Bem maior é sua ambição de criador: serve-se das palavras e de sua inter-relação para levantar os conflitos humanos e sociais (…)
Jorge Amado, A Tarde…lançou ao lixo a retórica obsoleta e estéril do romance e construiu uma nova, própria e exemplar…
Carlos Cunha, O Estado do Maranhão
Sempre aparece alguém de um fim de mundo usando palavas vazias como “a retórica obsoleta e estéril do romance”, coisa que ninguém sabe o que é.
A orelha é ainda mais pródiga em elogios a outros livros do autor:
…linguagem ágil e flexível que concentra os valores do livro e lhe assegura realidade.
James Amado, Jornal da Bahia…mais do que com as histórias e os personagens, Guido Guerra parece preocupar-se com seu estilo, deliberadamente cheio de imprevistos, enxuto e rico, empolado e simples, ao qual ele impõe um ritmo heróico e elementar… o autor consegue sem dúvida criar um ritmo que escande a dor da vida e a magia da morte…
Bruna Brecherucci, Veja…exibe seu talento narrativo numa linguagem nova e contagiante, envolvente e agilíssima…
Mário da Silva Brito, Suplemento de Minas
Talvez esses outros livros sejam mesmo tudo isso, talvez o pecado das vírgulas que tomaram LSD, seguiram o trio elétrico e fizeram um carnaval texto afora tenha sido redimido, não importando que os livros tão elogiados sejam anteriores a “Lili Passeata” e provavelmente menos maduros. Mas eu e Manuel Bandeira amamos como as criancinhas, gostamos da beleza à primeira vista, e é esse amor que fica. À primeira vista, o que eu vi foi um livro chato. E assim, por culpa da minha superficialidade, eu talvez tenha perdido a chance de um grande amor.
estou lendo “O Dia em que Getúlio Matou Allende e Outras Novelas do Poder” de Flávio Tavares e estou realmente adorando!
Rafael,
se, eu, fosse você, não teria, não digo parado de ler mas, antes, folheado o livro e, vendo esse estilo, nem comprado.