Uma pessoa, um hospital e outra pessoa

E assim foi que acabei indo parar na urgência do hospital no domingo à noite.

No consultório, depois de confirmar o meu diagnóstico, o médico dá umas orientações gerais. Diz para eu reduzir o peso, mudar a dieta, fazer exercício, reduzir o stress. E aí já é pedir demais. Eu posso refazer tudo na minha vida. Posso perder peso e posso passar a fazer exercício, desses que se faz em academia. Mas stress, não. Não depende de mim. E a essa altura, eu já aprendi que sem stress eu não existo. Sem stress eu fico baiano. Aviso a ele que isso não será possível, que troco dois exercícios por um stress. Ele não discute, sabe que não vai adiantar. Insiste nos outros pontos, e eu concordo. Promessas feitas quando você está morrendo de dor não valem nada, mesmo.

Mas eu não penso nisso na hora. Minha cabeça está ocupada com outra coisa. Pela primeira vez na vida, eu vou tomar soro.

Em quase quatro décadas de vida, eu nunca tinha tomado soro. A não ser para acompanhar alguém, nunca tinha dormido em hospital. As vezes em que fui para um, tudo se resolvia com alguma costura, uma puxada nos ossos quebrados, receita de anti-histamínicos quando tive dengue.

Mas soro, não. Nunca.

Soro, na lembrança de infância que insistiu em permanecer neste velho, é como se fosse a condecoração por uma batalha vencida com muito sacrifício. É um evento especial. Alguém, pela minha lógica infantil, deveria estar muito doente para tomar soro. Soro seria um acontecimento raro na vida de uma pessoa, um momento especial, quase épico.

Por isso chego na enfermaria alegre, quase leve. Vejo as camas vazias e pergunto se todo mundo que estava ali já morr — eu tenho que interromper porque na cama à direita da entrada está uma senhora deitada com cara de aimeudeus; uma senhora mais velha se senta à sua cabeceira. Vai que ela está para morrer, mesmo; eu jamais me perdoaria por essa gafe. Eu posso ser um puto, mas respeito futuros defuntos.

Uma cama é separada de todas as outras por divisórias, e não por biombos retráteis. É para lá que me encaminho, feliz, enquanto pergunto à enfermeira se posso deitar nela.

Ela hesita:

— Olha, aquela cama é para os pacientes que precisam ficar em isolamento…

Dou meia-volta imediatamente.

— É, vou ficar por aqui, mesmo.

Deito na cama e espero. Ela não é exatamente confortável. Peço um travesseiro à enfermeira. Faço o meu melhor sorriso — aquele que diz “olha como eu sou bonzinho e eu quero uma coisa e sei que você vai fazer para mim porque se sentiria muito mal me se me decepcionasse”. Sempre dá certo.

— A gente não tem travesseiro na enfermaria…

Quase sempre.

— Mas posso te conseguir um cobertor.

Certo, vamos declarar isso um empate.

Ela traz o cobertor e me ajuda a tirar o plástico. Eu estou tão contente que esqueço mesmo de fazer o que sempre faço em clínicas e hospitais: olhar os peitos da enfermeira para avaliar o material. Enfermeiras são sexies. Elas cuidam da gente. Enfermeiras são o contrário de policiais; aquelas seduzem pela autoridade que representam; estas, por uma delicadeza presumida — que, para ser sincero, eu raramente vejo em enfermeiras cansadas do seu plantão. (Esse julgamento sobre autoridade vale para policiais militares, apenas. Guardas municipais não são sexies. Elas usam cacetetes. Podem ter idéias esquisitas. PMs são mais confiáveis.)

Depois que meu corpo é massacrado por agulhas, às quais resisto com o sorriso beatífico de quem vai tomar soro pela primeira vez na vida, a enfermeira finalmente injeta o tubo na minha mão.

Pronto. Ali estou eu, deitado na cama de hospital, tendo um cobertor por travesseiro, olhando para a embalagem de soro pendurada ao meu lado. É quando lembro que um momento histórico como esse deve ser imortalizado em foto. Peço para pegarem a máquina, mas então lembro que deixei a mochila em casa. Vou ter que me virar com o celular.

A moça que foi comigo tira algumas fotos minhas deitado na cama, mas não é suficiente. Eu quero os detalhes. E ali fico eu, me contorcendo para pegar um ângulo decente. O soro. A agulha envolta por esparadrapo. É disso que vou lembrar.

Imagino que a senhora da cama próxima — aquela da cara de aimeudeus — não se sinta à vontade com essa alegria intra-hospitalar.

Um sujeito entra na enfermaria. Deve ter por volta dos 30 anos. Anda rápido, sua muito, ofega, traz um braço dobrado nas costas. Imagino que tenha quebrado o braço, por isso a posição estranha. Volto a olhar para a senhora ao meu lado. Um homem que provavelmente é seu marido está sentado ao pé da cama agora, de cabeça baixa. Pela posição dele eu julgaria que a mulher está mesmo batendo as botas, mas agora ela está sentada, e a cara agora é de ex-sofredora. Melhor assim.

Uma amiga cirurgiã entra na enfermaria. Me vê e se surpreende. Imagino que ela pense que estou tomando glicose, então vou logo avisando o que é. Apertamos as mãos; em outra situação eu daria o beijinho de praxe, mas ali não parece ser um ambiente adequado para isso. Aperto de mão. Prefiro nem elogiar o seu novo corte de cabelo. Não parece adequado, não ali. Ela checa o soro e o remédio que está dentro dele, está tudo bem.

O rapaz que passou pouco enfermaria adentro sai e vai para o quarto de isolamento. O mesmo braço dobrado atrás das costas, o mesmo suor abundante, o mesmo ofegar.

Mas agora ele grita de dor.

São gritos fortes — mas contidos, sufocados, guturais. Assustam mais que gritos normais porque são o contrário do exagero. São o sintoma de muita dor que ele tenta, em vão controlar.

Ele também se debate. Da tapas na parede, ou na cama. Eu não sei, porque não olho. Apenas ouço, e não consigo evitar. O soro está acabando e eu já estou sentado na cama. A moça que está comigo olha para o quarto onde o homem de 30 anos se contorce e grita e se debate de dor, e comenta baixinho: “Deve ser cálculo renal…”

Eu não tenho coragem de olhar. Não quero saber. Espero impaciente a enfermeira. Ela demora e digo que vou tirar o soro sozinho, se não vierem logo. Eu quero ir embora dali, só isso. Não tem mais graça.

Uma enfermeira vem e tira a agulha. Eu saio andando rápido — tão rápido que esqueço a chave do carro na cama. A enfermeira me avisa e me entrega. É bom que ela tenha visto, porque se eu notasse lá fora eu não voltaria para pegar, pediria a alguém, até iria andando para casa.

Quando eu encontrar a minha amiga eu vou perguntar como ela agüenta aquilo. Não me refiro a cirurgias, ou a ossos quebrados, ou a cortes que precisam ser suturados. Me refiro aos gritos de dor abafados e aos tapas na cama. Mas não não sei por quê, eu já sei a resposta: “A gente se acostuma.” Talvez.

Na sala de espera onde vou pegar a minha carteira do plano de saúde a mulher do homem lá dentro gritando de dor está sentada, esperando. Traz a filha sobre suas pernas, ela deve estar aprendendo a ficar em pé. A mulher do homem lá dentro gritando de dor fala, entre irritada e preocupada: “Ele sabe que não pode fumar…” A moça que está comigo brinca rapidinho com a menina, e ela sorri, um sorriso bonito de bebê, alheio a tudo, que não sabe que o seu pai está lá dentro, gritando de dor.

33 thoughts on “Uma pessoa, um hospital e outra pessoa

  1. Essa foto da mãozinha no soro me lembrou aquela historinha do João e Maria…

    Sobre o estresse, você tá certo, “como assim, evitar?”
    Acho engraçado quando mostram na TV pessoas que mudaram seu estilo de vida para acabar com o estresse, como o camarada que era corretor da Bolsa todo estressado e de repente se torna um criador de cabras todo zen. Duvido que isso mude alguma coisa: estressado é estressado, seja criando cabras, jogando futebol, operando cérebros. O estresse tá muito mais na pessoa que na vida que ela leva. Administrar isso e tentar não compensar com comida, bebida e cigarro é que são elas.
    Melhoras,

  2. E você não vai contar o que foi que te levou ao hospital? Vou ficar imaginando situações exdrúxulas, rs.
    Espero que esteja melhor. Beijos.

  3. Rafa, se achar oportuno eu mando o mesmo cognac português que o Bia anda bebendo para você recuperar os níveis. Só pode ser isso que está faltando.
    Abraço e as melhoras,
    Francis

  4. ola, te vi no blacklittledogs. 🙂

    putz, que empolgacao hein. foto do soro e tudo! kkkkkkk

    mas serio, clima de hospital eh foda mesmo, muito bizarroooo! e feliz do bebe, os ignorantes sao felizes! 😉

    beijos

    .
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  5. “Cálculo Mortal” é o nome de um filme com a Sandra Bullock. Deve ter enganado um monte de incautos pacientes de pedras nos rins, que acharam que finalmente veriam seu sofrimento representado numa telona…

  6. Sei que não serve de consolo, mas também estou beirando os 40 e a primeira vez que tomei soro foi há apenas seis meses…

    Abraço e melhoras!

  7. Rafa, no dia que você tiver com o pé na cova, não vai escrever testamento não, vai fazer uma crônica. 🙂

    Já tá jogando bola?

  8. bom
    ja q vc publicou agora me importei … rs
    brincadeira
    estimo melhoras
    kd o post de hj rapaz

  9. se cuida. e bem. tem muita gente que te adora. saudade grande e um beijo da amiga… 😉

  10. O que houve, Rafa? TPE (tensão pós-eleitoral)? Piti?
    Seja o que for, melhore, viu?
    E, a propósito: sou o campeão do soro. E sempre por conta ou de Sindrôme de Pânico (pode chamar de piti também!) ou de bebedeira! A gente acostuma!
    Abraços, querido.

  11. meu ..
    ce vai matá nóis tudo de curiosidade ..
    o piti foi domingo 3, hj ja e quarta 7 e nada de post …
    po .. foi grave??
    esperamos todos q não …
    mas q demorô convelescer, demorô
    abrassssssss

  12. Sei o que sentiu.

    Eu trabalho no Circo Voador como assistente de palco, mas eu faço um pouco de tudo por lá. Uma vez me pediram para acompanhar um garoto, da minha idade, que estava muito bêbado, até a emergência do Souza Aguiar, de táxi.

    Nunca, NUNCA, leia bem, nunca. Nunca entre na emergência do Souza Aguiar. Recuse intermitentemente. Foi a pior experiência da minha pequena vida. Pior experiência.

    100+ 8)

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