O dia em que Ogun depôs suas armas

E então eu serei exilado.

O exílio é uma coisa terrível, mas se fosse em Paris eu aceitaria com felicidade de menino. Deve ser muito bom ser exilado em Paris. Sentar em um café e reclamar da conjuntura política internacional. Olhar uns livros na Shakespeare & Co. e falar em como a liberdade foi suprimida no Brasil, enquanto espero o fantasma bêbado de Fitzgerald. Encostar-me em um murinho do Louvre só para olhar as multidões de turistas esperando como gado sua vez de entrar no museu, felizes diante de filas que se recusariam a enfrentar em seus próprios países, e lembrar que o meu povo só tem medialunas para comer.

Eu seria um bom exilado, se me permitem a falta de modéstia. E se alguém me visse flanando pela Avenue d’Iéna, em um trenchcoat claro de cashmere, o Herald Tribune debaixo do braço, esse alguém poderia me parar e poderia falar do Brasil, falar de como cucarachos insidiosos tomaram conta do melhor país do mundo, e eu balançaria a cabeça dizendo sim, sim, temos que retomar o país, e daria cinco minutos ao meu companheiro de infortúnio, e me lamentaria também, e lhe prometeria um no pasarán qualquer, e diria que estava atrasado e voltaria a descer a Iéna em direção ao Trocadero.

O problema é que não se pode, nunca, confiar em trotsquistas portenhos barbudinhos.

Eles não me mandariam para Paris; não, eles me mandariam para um inferno qualquer, algo da Bolívia para baixo. Trotsquistas portenhos barbudinhos são uns miseráveis. Talvez me mandassem para o Burundi. Eu não sei onde fica o Burundi. Eu não quero sequer saber onde fica o Burundi. Eles me mandariam para lá e fingiriam que eu não existo, e em pouco tempo teriam razão.

Seria de lá, do meu exílio, que eu organizaria a resistência.

Aqui cabe uma confissão: a minha vocação para a guerra é ainda menor que a vocação para a matemática. Eu sou baiano. Eu gosto é de olhar para ela com cara de bobo, sentindo seus seios de encontro ao meu peito, enquanto ela faz cafuné em mim e diz que não compreende o meu olhar. E por isso o meu papel na revolução seria apenas o de guru, de homem a ser ouvido porém não instado à ação. Somente assim eu organizaria a volta de tantos patriotas, e menos eu não aceitaria.

Primeiro eu teria que definir uma estratégia. Eu sei como.

A diferença entre brasileiros e portenhos é a diferença entre o samba e o tango. O tango é preliminares, apenas, é um cafetão e sua respectiva, é aquele vai-e-vem infinito de um casal neurótico e excessivamente dramático tentando resolver seus problemas em passos que querem sincronizados. O tango é belo mas é falso, e não passa de um vagabundo e uma mulher de malandro, daquelas que nasceram para levar porrada, tentando descolar um troco de turistas desavisados.

O samba, não. O samba é o requebrado, é a felicidade em simplesmente ser, é uma mulata da Saúde com o cabelo trançado mexendo a cintura enquanto olha sobre o ombro para você, com um olhar que promete o que não deve ser prometido, nunca, nunca. O samba existe em si mesmo, e não pede mais que isso.

É essa a diferença entre brasileiros e portenhos, e por não entenderem isso eles nos chamam de macaquitos, e olham para suas louras bonitas mas sem remelexo, bulímicas que não sabem morder e não sabem apertar suas costas, e dizem que as jaboticabas estão verdes.

Por isso os portenhos podem sonhar, mas não conseguirão passar das ladeiras da Bahia. Porque jamais entenderiam que o cheiro do dendê está em nossas almas, que não podemos nos contentar com alfajores, e que isso é algo que não pode mais ser retirado de nós.

Argentinos não entenderiam o vatapá. Não compreenderiam por que passamos tantas e tantas horas fazendo um prato que julgariam tão complicado. Não entenderiam que o vatapá não é só alimento, como é o seu churrasco; o vatapá é um ato de amor, uma oferenda de devoção e fé feita a Iemanjá por todos por seus filhos, que também escolhem um dia claro de verão para lhe oferecer ainda mais; não compreenderiam que Iemanjá é uma deusa de amor que não pede mais que perfumes e flores para ficar bonita diante de seu amado.

Orgulhosos de seus sobrenomes ingleses, eles não saberiam o que fazer com os milhões de Santos, Silva e Jesus espalhados na geral do Maracanã, e pensariam que poderiam tomar conta do lugar que viu Zico jogar como se fosse uma Bombonera qualquer, e conspurcar o gramado santo com seus rolos de papel higiênico. Não conseguiriam. Talvez descobrissem, então, que não é o fanatismo que faz um grande time, é a verdade e a ginga nos pés escalavrados do seu povo, é um desdentado com as mãos na cabeça diante de um gol perdido.

Talvez. Porque esses argentinos são tão europeus.

Essa seria a minha estratégia. É a não-estratégia de um baiano, com os séculos de sabedoria que escravos carregando cadeiras de arruar Ladeira da Montanha acima acumularam. Ela existe pela certeza de que portenhos jamais entenderiam a maresia do Porto da Barra, nem aquilo que faz um stalinista baiano em Sergipe não conceber um expurgo, se é tão mais fácil pedir para passar lá em casa e não dar o endereço. Não entenderiam que, em vez de unificar todas as mulheres em azul maoísta, stalinistas baianos em Sergipe estariam preocupados apenas com a sua, com a penugem loura em volta do seu umbigo, com o jeito como ela levanta seus cabelos para que ele lhe morda a nuca.

Não, não. Por isso essa minha não-estratégia formulada há tantas eras no canto dos encanadores do relógio de São Pedro. Nós não precisamos de guerra, e Ogun foi comer uma buchada e agora dorme no regaço de Oxum. Ele sabe que, para nós, morte digna e honrada é a de Emiliano nos braços de Teresa Batista, e não brigando com estrangeiros que jamais saberiam o que fazer conosco. Diante dos argentinos, Ogun depõe sua espada. Ele não precisa dela. Só precisa dar tempo ao tempo, porque mesmo que os portenhos sonhem em ter tudo isto, nós sabemos que eles nunca conseguirão entender o que somos, que voltarão assustados para os frios d’além Prata.

E então bandeiras rubro-negras tremularão sobre o país, como tremularam um dia sobre Cuba quando a esperança e o sonho de uma liberdade há muito devida alegraram o coração dos cubanos.

Originalmente publicado em 29 de agosto de 2005

Diário de Berlim

Meio por acaso, me bati com o “Diário de Berlim”, livro de William Shirer, autor de um dos maiores clássicos sobre a II Guerra Mundial, “Ascensão e Queda do III Reich”.

O livro não está mais em catálogo no Brasil. Não dá para saber que edição é essa: apenas que a editora foi a Record e que quando ele foi lançado a Guanabara ainda existia.

“Diário de Berlim” conta a experiência de Shirer como correspondente estrangeiro em Berlim. Obviamente não pode oferecer uma visão ampla das coisas, em uma época em que a censura era quase absoluta, em que o Voelkische Beobachter, o jornal de Hitler, publicava notícias que pareciam saídas do Planeta Diário e em que todos os países diziam mentiras atrás de mentiras sobre seus inimigos.

Mas, em compensação, dá algo que os livros de história costumam perder: o frescor da notícia recente, o estupor diante da evolução dos fatos. As análises e previsões feitas, mesmo quando equivocadas, dão uma idéia clara e precisa de como se pensava naquela época. O livro ajuda a entender melhor a II Guerra Mundial, e principalmente o nazismo, porque oferece uma sensação de humanidade que a peripécia e a análise fria costumam expulsar dos livros de história.

“Diário de Berlim” ajuda a colocar algumas coisas em perspectiva. A atitude covarde da Inglaterra de Chamberlain é bem lembrada, e a figura de Churchill, solitário em suas denúncias de Hitler antes de quaisquer outros, cresce assustadoramente — assim como a de Roosevelt nos Estados Unidos, embora de maneira menos clara.

Nesse aspecto, o que realmente impressiona quando mostrada assim, a quente, é a indignidade da postura francesa. Não há explicação para a maneira covarde como a França reagiu diante de Hitler, nem mesmo a decadência da III República. Até quando a Alemanha invadiu a Polônia e as intenções alemãs já eram mais que claras, a França ainda insistia na paz. A única coisa decente que a França fez, em meio a sua tibieza, foi declarar Paris cidade aberta quando as tropas alemãs marcharam em direção a ela. Podem não ter mantido sua dignidade, mas pelo menos preservaram a melhor cidade do mundo.

À medida que o diário vai sendo escrito, a história vai acontecendo. A tomada da Renânia, o Anchluss da Áustria, a Tchecoslováquia entregue por Daladier e Chamberlain. O livro mostra que a data de 1o de setembro de 1939 só é lembrada como o início da II Guerra Mundial porque foi quando a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha. Mas demoraria ainda mais de 8 meses até os três países entrarem de fato em guerra, com ataques a seus respectivos solos; enquanto isso Hitler ia tomando a Dinamarca, a Noruega, o Benelux.

O livro mostra também o impacto do pacto Ribbentrop-Molotov, primeira parte de uma estratégia acertada de Hitler — o segundo viria a ser o Pacto Tripartite, feito para intimidar os Estados Unidos mas que acabaria justificando sua entrada na guerra na Europa. Se a Europa vinha permitindo o crescimento militar de Hitler, é porque tinha mais medo de Stalin do que do nazismo; de repente, sem que ninguém esperasse — e depois de várias tentativas de acordo entre Stalin e a Europa não-nazista — a União Soviética era deixada em paz por Hitler. Foi uma medida pragmática de Stalin; mas nem por isso aqueles que tinham lutado ao lado dos legalistas na Espanha conseguiram engolir ou compreender a atitude.

É no retrato do dia-a-dia alemão, entretanto, que está o melhor do livro. Shirer mostra como os alemães se prepararam para a guerra, vivendo numa pobreza e privações incompatíveis com o resto da Europa enquanto Hitler, em menos de dez anos, criava a mais fantástica máquina de guerra que o mundo já tinha visto.

Lendo “Diário de Berlim”, uma coisa fica clara. Claro que a esmagadora maioria dos alemães não era nazista. Mas quase todos, de modo geral, apoiavam Hitler. Aqui se confundem vários elementos, cada um importante na formação do fenômeno nazista. Um deles é sentimento de revanche depois da humilhação em Versalhes. Durante décadas, os alemães tentaram negar sua herança dizendo que foram vítimas de Hitler; o que transparece deste livro é outra coisa, é a aclamação de um grande líder, o apoio popular esmagador. Mesmo depois que as Leis de Nuremberg começaram a ser postas em ação, os alemães ainda apoiavam Hitler.

Nesse ponto o livro deixa ainda mais clara uma coisa óbvia, que vários revisionistas tentam ocultar: o anti-semitismo foi o elemento catalizador na imagem dos nazistas. Shirer mostra uma série de bons retratos de “traidores”, gente que aderiu ao nazismo e se mudou para a Alemanha. São pessoas de origens e formações diferentes. Mas todos têm um mesmo elemento em comum: o ódio aos judeus. Isso reforça a tese que Daniel Goldhagen defende em “Os Carrascos Voluntários de Hitler” e que tanta gente, até hoje, tenta desmentir.

Mas eles não eram apenas anti-semitas. De vez em quando tem-se a impressão de que eles eram anti-qualquer coisa que não fosse germânica. É um sintoma do famoso hegemonismo alemão, que ali ganhava as cores feias da eugenia, como no caso da política de Gnadenstoss, golpe de misericórdia, aplicado nos deficientes mentais alemães. Se em algum momento da História mundial um povo esteve pronto para a guerra, esse povo foi o alemão, por menos que a quisesse.

Um diálogo de Shirer com uma camareira ilustra bem esse sentimento alemão:

— Por que motivo os franceses nos guerreiam? — perguntou ela.
— Por que motivo vocês guerreiam os poloneses? — perguntei também.
— Hum — disse ela — mas os franceses são seres humanos.
— E os poloneses talvez sejam também — retruquei.
— Hum — voltou a fazer outro muxoxo.

Mas mesmo anti-semitas, anti-eslavos e anti quase qualquer coisa, mesmo apoiando Hitler, os alemães não queriam a guerra. Shirer compara a ida das tropas alemãs aos fronts da Primeira Guerra — em que os soldados marchavam sob pétalas de flores — com o silêncio e apreensão demonstrada pelos alemães diante dos desfiles de suas tropas em 1939.

O livro termina em dezembro de 1940. Antes do vôo de Hess, da invasão da União Soviética, de Pearl Harbor. Publicado em 1941, e podendo ser considerado parte da pressão doméstica para que os Estados Unidos entrassem na guerra, não se pretende um documento definitivo e não nega o seu caráter profundamente partidário; mas é provavelmente aí que está sua força e o seu interesse. É um grande livro, e vale a pena ser lido.

Originalmente publicado em 26 de agosto de 2005