Elas moram na sua casa mas não são da família, não são sequer amigas — e muitas vezes são mesmo inimigas. Raramente sentam à mesa com a família, e dormem em quartos do tamanho de closets.
Herdeiras involuntárias das relações escravistas que formaram o Brasil, empregadas domésticas fazem parte das relações mais complexas da sociedade brasileira, em que confiança e necessidade se misturam à desconfiança,
Mas hoje é dia de Santa Zita.
Zita nasceu em Monsagrati, Itália, em 1218. Em uma família de camponeses pobres, como sói acontecer quase sempre nesse ofício de santos; proêmio melhor se dá apenas apenas quando o futuro santo é um rico que se despoja espetacularmente de seus bens, como aconteceu uma vez ali perto, em Assis.
Aos 12 anos Zita foi trabalhar como empregada doméstica para a família Fatinelli, uma das mais ricas de Lucca. Antes que partisse, sua mãe lhe deu um único conselho: “Em tuas palavras e ações deves sempre perguntar: ‘Isto agrada ou não a Jesus?'”. (Imagino que deva também ter dado outro, menos pio: “Feche as pernas, minha filha”, que esse conselho é sempre dado a meninas que vão viver longe de casa, embora raramente seja seguido.)
O Fatinelli, comerciante de lã e tecidos, era um sujeito grosseiro e tratava seus criados como menos que porcos. Todos os empregados da casa protestavam contra esse tratamento, menos uma. Isso. Ela mesma. A Zita.
Zita foi empregada ali por 48 anos, até sua morte em 27 de abril de 1278. Nas horas vagas, como toda postulante a santa que se ache digna desse nome, ia à missa todas as manhãs, visitava pobres, presos e doentes, e repartia com eles o pouco que tinha. Um bom santo demonstra pouco apego ao dinheiro, atributo no entanto pouco desejável em papas.
A versão oficial da Igreja diz que os outros empregados dos Fatinelli ofendiam, desprezavam e humilhavam Zita por invejarem sua “postura cândida e serena”. É uma idéia bonita, mas o mais provável é que essa atitude se devesse ao simples fato de ela manifestar uma disposição sobrenatural para agüentar desaforos e humilhações, por aceitar ofensas com um halo beatífico e cristão emoldurando um rosto sereno em que brilhavam olhos puros de poodle.
Por tudo isso, quase sete séculos depois, Pio XII transformou Zita em santa padroeira das empregadas domésticas.
Talvez não houvesse santo mais apropriado. Zita não foi martirizada pela sua fé como Santo Estêvão. Não tem atrás de si uma grande obra evangelizadora como São Paulo. Não combateu hereges em cruzadas como São Luís. Santa Zita virou santa por seu sangue de barata, por ser apontada pelo Fatinelli como o modelo que aqueles insolentes deveriam seguir. Zita é a imagem ideal da empregada, aquela sombra muda mas eficiente, tanto melhor quanto mais próxima do comportamento de uma geladeira ou batedeira.
Santa Zita também é boa padroeira por causa do seu nome.
Há tantos nomes elegantes de santos, alterosos. São Tiago de Compostela, Santa Catarina de Sienna, Santa Teresa de Lisieux, uma infinidade de Nossas Senhoras de sobrenome imponente como Mont Serrat.
Prisioneiros de guerra têm como padroeiro São Leonardo de Noblac; professores, São João Batista de La Salle. Mas às empregadas fizeram a grande sacanagem de dar como padroeira Santa Zita, santa de não muitos milagres mas de nome inigualavelmente apropriado a uma doméstica. Zita, coitada, não tem sobrenome, não lhe fizeram sequer a gentileza do topônimo; e a santa padroeira, que poderia ser Santa Zita de Lucca, é só a Zita, assim como a sua empregada não tem sobrenome porque não lhe interessa.
É por isso que Santa Zita é a padroeira das empregadas. Porque é uma santa que sabe o seu lugar. E que, provavelmente, folga aos domingos.
Originalmente publicado em 27 de abril de 2006
Texto bem escrito, Rafael. Eu não sabia dessa santa (são tantos santos para se conhecer…) e, com o nome dela e o começo do seu texto, achei que estava falando de alguma empregada contemporânea. Lendo o texto sou obrigado a concordar não haver padroeira mais de acordo para as empregadas domésticas…
empregada boa não falta nunca
de certo q a geladeira não vai tá lá no domingo?
nem pensar ….
rs
eu tive um professor q dizia: “sim, é como “se fosse” da família, mas não senta à mesa junto, dorme lá no quartinho do fundo, só recebe as roupas velhas q não prestam mais, usa aquele “outro” banheiro …. ”
ou seja, douraram a pilula do antigo escravo
abrassss
Maravilhoso, querido Rafael!
E vou lhe dizer, iludidos somos nós de acharmos que só porque estamos sentadinhos em nossas salas, na frente do tal do computador, Seu Dotô Rafael, porque andamos no carrinho novo cheiroso e metidinho a besta, porque estudamos no exteriorrr, e estas coisinhas más, não precisamos render nossas homenagens a Zita. Ah, não é assim não! Como Santa que sou, rendo minhas homenagens sim a ela, como mulher que muitas vezes dependo dela para ver minha vida andar e principalmente como ser humano, porque também tenho que aguentar calada muito desaforo por aí e olha que tenho voz para gritar! Imagina quem não tem ou não sabe que tem? É muito complicado. Lindo texto como sempre! Fico aqui aplaudindo de pé! Grande e carinhoso abraço.
O Santo! (que na verdade é uma Santa…)
Adorei o texto , pra variar.
Cara, vc escreve bem demais!
Eternamente sua fã.
(hoje leio vários blogs, gosto de alguns, mas saibas fostes o primeiraço)