Oh, Sir

Ah, um dia eu vou deixar de ser só um paraíba, e vou afiar o meu inglês tão pouco usado, e então vou escrever neste blog misturando as duas línguas.

Vou me sentir como a aristocracia russa, aquela que falava francês em seus salões enquanto nos aposentos de empregados a revolução fermentava, até que os mujiques grosseirões, incapazes de admirar a beleza dos ovos Fabergé só porque não podiam comê-los, tomaram conta do Kremlin e aquela aristocracia sobreviveu apenas como paródias patéticas nos livros de Nabokov.

Farei isso porque almost everything que leio na internet é em inglês, e às vezes uma expressão me vem mais facilmente na língua do bardo do que in portuguese, e o tempo que gasto para achar sua correspondente na última vagabunda do Lácio é tempo perdido que não vou recuperar nunca. Fazer parte desses 10% de brazilians que têm internet me serve como desculpa, e então finjo que o meu crazy nigger’s samba é praticamente uma obrigação e um compromisso com a modernidade. Tenho certeza de que algumas pessoas vão acreditar.

Farei isso para me sentir elite, maluco, para mostrar a todo mundo que sei inglês, you see, e não vai adiantar nada, absolutamente nada alguém dizer para mim que em tempos de universalização falar inglês não significa que sou chique, que apenas denota uma jequice inenarrável, uma sensação de ser lorde na W Flagler St em Miami, que quase fechou em 1998 quando a ilusão de sermos saxões foi destruída pela desvalorização do real e percebemos que, no matter what, éramos apenas botocudos arremedando um colonizador que mal conhecíamos.

Mas so what? Eu quero viver assim, e o jeito como vivo não é nobody’s business, vou ser feliz olhando para a etiqueta da Brooksfield na minha camisa e fingindo que a comprei na Harrod’s. E eu, criado no pão com ovo, vou fingir que em vez disso tomo o meu chá das cinco, e vou olhar para o mundo com aquele olhar que pretendo fleumático mas é só deslumbrado por algo que apenas finjo compreender.

Eu não quero mais ser naïve. Vou fugir da naiveté como fujo hoje da bourgeoisie que me acorrenta em seus grilhões de mediocridade, e essas serão as únicas palavras em outra língua que não o English que usarei, porque a New Yorker me disse que anglo-saxão que fala assim é mais chique que o anglo-saxão que fala yo!, disse, sim, you schmuck.

Ninguém diga que tudo isso é oh so twatty; it’s only words, and words are all I have, e não importa que eu cite Bee Gees porque afinal de contas this is oh so English. Ou oh so Australian. So proper, anyway.

E então meu blog vai sofrer a much needed upgrade, e vou viver happily ever after.

Eu vou ser um viralata de lacinho.

Originalmente publicado em 01 de junho de 2006

As medidas dos santos

Não consigo lembrar onde li isso, não lembro sequer o nome do sacerdote. Mas o monsenhor responsável pela Igreja do Bonfim, em Salvador, disse que a tradição de usar as fitinhas do Senhor do Bonfim vendidas ali para realizar desejos é apenas conversa de vendedor, que não tem origem em nenhuma tradição católica, que é artifício para enganar turista.

Isso me lembrou outro tempo, coisa de século e meio atrás.

Era o tempo em que as caixas de esmolas se espalhavam pelas cidades e a Igreja fazia dumping contra os mendigos. Em que vendedores ambulantes não podiam vender objetos abençoados por padres, mas podiam trocá-los por dinheiro, e nessa sutileza de termos conseguiam definir toda uma sociedade extremamente católica e extremamente permissiva.

Nessa época faziam muito sucesso as medidas de santos.

Eram fitas cortadas pelos padres, do tamanho das imagens dos santos a quem suas igrejas eram consagradas. Costumavam ser usadas em torno da cintura e, dizia o povo e diziam os padres, removiam dores, doenças e realizavam as vontades de quem as usava.

Algumas eram de veludo, com imagens de santos gravadas nelas; outras eram fitas comuns, a maioria, dadas àqueles que podiam contribuir pouco com os cofres da Santa Madre. A cor variava de acordo com o santo. Havia até uma “medida do Espírito Santo”. Como esse Senhor não tem tamanho ou forma, mas dele não queriam prescindir as almas pias dos fiéis, pegavam uma fita de tamanho qualquer, gravavam nela um triângulo e uma pomba e assim se tinha um remédio eficaz contra todo tipo de enfermidade, que o Espírito Santo, convenhamos, é bamba de verdade, mais bamba que quaisquer daqueles santos menores que se especializavam em uma ou outra mazela.

As mulheres costumavam usar fitas de santos do seu sexo; e nisso eram mais bem aquinhoadas que os homens, porque ainda melhor que o Espírito Santo costuma ser Nossa Senhora. Mas também usavam fitas de São Brás, Santo Antônio e São Gonçalo, este o santo que lhe poderia curar a mais grave das moléstias, o caritó — função apenas depois usurpada por Santo Antônio.

Seria fácil acusar o tal monsenhor de ignorância das tradições da sua própria igreja, inferir também que ele não deve saber que já houve tempo, esse mesmo tempo das medidas dos santos, em que no pavilhão de mini-deuses da Igreja havia até espaço para uma Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, cujo altar ficava na Rua do Carmo, Rio de Janeiro; herança das grandes navegações portuguesas e bem adequada a um tempo em que o Brasil ainda ostentava trágica presença no comércio no Atlântico Sul.

Mas uma acusação dessas seria uma mentira. Porque não é isso, e o que parece ignorância é em verdade o disfarce para uma inveja e um despeito profundos, aquele tipo negro que corrói a alma e enche o esôfago de bile.

O monsenhor nega as origens religiosas das fitinhas do Senhor do Bonfim porque, se as reconhecesse, teria que admitir que se essa tradição sobrevive ali não é por causa de qualquer santo católico, nem mesmo de um São Jorge que encarna a persistência dos homens e mulheres daquela terra. É por causa dos santos de verdade do povo baiano, e as fitas já não têm as cores de Nossa Senhora da Glória ou de Santa Prisciliana, mas são azuis para Iemanjá, amarelas para Oxumaré, vermelhas para as filhas de Iansã.

E o monsenhor teria que admitir uma derrota fragorosa e inconteste, admitir também que o que eles dizem entender do sincretismo religioso está errado, e que na Cidade da Bahia foram os santos da ascese e da renúncia que sobreviveram encolhidos sob a proteção do manto branco de Oxalá.

Originalmente publicado em 9 de maio de 2006

Eu sou apenas um rapaz latino-americano

E-mail interessante:

Olá, costumo ler o seu blog. Não consigo definir a sua pessoa, vc é um ricaço enrustido? Estou precisando de 5000 dolares ou 12000 reais, é o que me falta pra comprar um bem de consumo o qual ampara minha felicidade; Se souber de alguem que possa, por favor me indique.. Abraços, continue escrevendo assim.
Att,
André

E eu fiquei pensando.

O André não me conhece. Se conhecesse, saberia que eu não sou ricaço. E se me conhecesse mesmo saberia também que se fosse rico eu seria qualquer coisa, menos um rico enrustido.

Eu seria o pior tipo de rico, aquele que esbanja, que ostenta, que não sente culpa pela miséria em derredor. Seria um rico que acredita piamente que a única forma de demonstrar respeito ao dinheiro é não o respeitando em absoluto. Que compraria as coisas unicamente porque pode comprar. Que não dispensaria mais tempo pensando no dinheiro em si do que nos objetos inúteis que compraria num impulso.

Mas Deus não dá asa a cobra, e o Bezerro de Ouro só abençoa aqueles que não sabem venerá-lo comme il faut.

Eu não consigo compreender que a riqueza seja o resultado de trabalho, disciplina e acumulação. Não consigo conceber que para ser rico você tenha que trabalhar e trabalhar e trabalhar. Porque se você trabalha não consegue gastar o dinheiro, não como se deve, com o vagar e a despreocupação necessários. Você não pode conhecer o Tibet se tem que continuar a trabalhar para ganhar os tostões necessários para visitar a Alemanha. E então para que serve o dinheiro?

Aqueles que podem dar essa resposta são os ricos. Os outros que calam diante dessa pergunta são como eu, parte da multidão sem nome que apenas sonha em ser rica mas não perde muito tempo nesse exercício fútil, como não dedica muito tempo à teoria das cordas porque sabe que lá adiante chegará o momento em que não conseguirá compreender nada.

É isso que dói em nós, esse conformismo em saber que nunca conseguiremos entender os verdadeiros mecanismos do dinheiro. E é essa incompreensão atávica e imutável acerca dos mecanismos da riqueza que me tira todas as chances de ser um ricaço, mesmo enrustido.

Por causa dela, por causa dessa miopia ibérica que me batizou ainda no berço, leio a fábula da cigarra e das formigas e não consigo entender, não de verdade. Apenas finjo que entendo, como finjo ao recitar um trecho ou outro de “Ulysses” ou dos “Lusíadas”. Porque me parece uma profunda injustiça que sejam as formigas as únicas a ter comida no inverno. Elas não têm esse direito. De que vale um verão se ele só serve para que se acumule comida? Qual a graça em ver o sol brilhando, se ele só serve para fazer com que as idiotas, carregando folhas mais pesadas que elas às costas, suem um pouco mais?

Enquanto isso a pobre cigarra, que viveu o verão como o verão deve ser vivido, que se divertiu e divertiu os outros — menos as formigas, prenhes de despeito pela alegria e pela beleza da cigarra, antecipando com prazer mórbido e vingativo o dia em que ela não teria o que comer e justificando assim a sua existência minúscula e excessivamente ordeira — se vê às margens da fome quando o sol vai embora.

Algumas pessoas entendem isso, entendem que essa é a ordem correta das coisas. Outros, não. Para estes é uma injustiça, uma alteração da ordem correta das coisas que a cigarra tenha que se humilhar diante de formigas que só existem como estatística, como parte de um grupo informe e feio de escravos e soldados, em que mesmo a rainha só existe para parir.

É por isso que não, eu não sou um ricaço enrustido ou declarado. Não posso te enviar, portanto, os cinco mil dólares que amparariam a sua felicidade. Apenas posso te dar um mau conselho, que de maus conselhos sim, eu sou rico, imensamente rico, e deles tenho uma caixa-forte maior que a do Tio Patinhas: cinco mil dólares é muito pouco para amparar qualquer felicidade verdadeira. Só ampara as pequenininhas. E as pequeninhas não são felicidade, são só umas contentezas daquelas de nada, que logo, logo vão passar.

Originalmente publicado em 4 de abril de 2006

Indo para Pasárgada

A partir de hoje, este é um blog de oposição.

Durante todos esses últimos meses este blog apoiou o governo Lula, apesar de todas as denúncias, apesar de todos os indícios, apesar de todos os fatos, por ter uma compreensão própria e pouco ingênua de política e por acreditar que este tem, sim, sido um bom governo.

Mas agora vou deixar de achar que Lula será um bom presidente a partir de 2007 porque, se eu for da oposição, eu sei que vou ter sorte.

Vou casar porque sei que minha mulher vai ganhar vestidos. Dados assim, sem nenhuma intenção. Presentes graciosos de um estilista que dá tão pouco valor ao seu tempo e ao seu trabalho que, para ele, 40 vestidos e 400 são exatamente a mesma coisa. E se eu não souber me explicar direito, isso não vai significar muita coisa, porque afinal de contas sem sorte é o governo.

Se eu for para a oposição vou ter sorte como o Francenildo teve.

Porque é preciso ser uma pessoa que nasceu com a bunda virada para a lua para que um pai que nunca lhe viu, e nunca sequer lhe assumiu, lhe dê de mão beijada 25 mil reais, por sorte e coincidência na véspera de um depoimento importante. Mais ainda: com a sorte do Francenildo eu também vou arranjar um advogado metrossexual que vai tentar fazer o Estado me pagar dezenas de milhões de reais pelas pequenas e grandes sacanagens que me fez.

É por não ter essa sorte que só bendiz a oposição que aquele pessoal do governo se envolve em tantas confusões, que é acusado de crimes eleitorais e de esquemas de compra de votos. Ao longo deste último ano, pelo menos de uma coisa eu passei a ter certeza: se o pessoal do governo tivesse a sorte que a oposição tem, não teria que se envolver com os Marcos Valérios da vida. O governo precisa fazer caixa 2; a oposição simplesmente ganha as coisas porque, bem, tem sorte.

É isso. Vou para a oposição porque andar com gente sem sorte não traz coisa boa. Eu quero a sorte que nos faz ganhar coisas e que não nos obriga a compromissos com gente como Roberto Jefferson.

Cada vez mais admiro esta oposição com tanto trabalho nas costas, com a honestidade única e inquestionável que só aqueles com sorte podem ter, com as mãos limpas e ostentando uma probidade que muitos céticos, como eu fui um dia, julgavam impossível. Vou virar um oposicionista ferrenho porque lá nossas máculas são automaticamente limpas, e o passado não nos condena mais. A partir de hoje, este é um blog de oposição, e eu estou indo para Pasárgada.

E como Marco Antônio naquela peça inglesa, eu vou poder dizer de todos os políticos que vou defender: For he is an honourable man; so are they all; all honourable men.

Originalmente publicado em 2 de maio de 2005

Hoje é dia de Santa Zita

Elas moram na sua casa mas não são da família, não são sequer amigas — e muitas vezes são mesmo inimigas. Raramente sentam à mesa com a família, e dormem em quartos do tamanho de closets.

Herdeiras involuntárias das relações escravistas que formaram o Brasil, empregadas domésticas fazem parte das relações mais complexas da sociedade brasileira, em que confiança e necessidade se misturam à desconfiança,

Mas hoje é dia de Santa Zita.

Zita nasceu em Monsagrati, Itália, em 1218. Em uma família de camponeses pobres, como sói acontecer quase sempre nesse ofício de santos; proêmio melhor se dá apenas apenas quando o futuro santo é um rico que se despoja espetacularmente de seus bens, como aconteceu uma vez ali perto, em Assis.

Aos 12 anos Zita foi trabalhar como empregada doméstica para a família Fatinelli, uma das mais ricas de Lucca. Antes que partisse, sua mãe lhe deu um único conselho: “Em tuas palavras e ações deves sempre perguntar: ‘Isto agrada ou não a Jesus?'”. (Imagino que deva também ter dado outro, menos pio: “Feche as pernas, minha filha”, que esse conselho é sempre dado a meninas que vão viver longe de casa, embora raramente seja seguido.)

O Fatinelli, comerciante de lã e tecidos, era um sujeito grosseiro e tratava seus criados como menos que porcos. Todos os empregados da casa protestavam contra esse tratamento, menos uma. Isso. Ela mesma. A Zita.

Zita foi empregada ali por 48 anos, até sua morte em 27 de abril de 1278. Nas horas vagas, como toda postulante a santa que se ache digna desse nome, ia à missa todas as manhãs, visitava pobres, presos e doentes, e repartia com eles o pouco que tinha. Um bom santo demonstra pouco apego ao dinheiro, atributo no entanto pouco desejável em papas.

A versão oficial da Igreja diz que os outros empregados dos Fatinelli ofendiam, desprezavam e humilhavam Zita por invejarem sua “postura cândida e serena”. É uma idéia bonita, mas o mais provável é que essa atitude se devesse ao simples fato de ela manifestar uma disposição sobrenatural para agüentar desaforos e humilhações, por aceitar ofensas com um halo beatífico e cristão emoldurando um rosto sereno em que brilhavam olhos puros de poodle.

Por tudo isso, quase sete séculos depois, Pio XII transformou Zita em santa padroeira das empregadas domésticas.

Talvez não houvesse santo mais apropriado. Zita não foi martirizada pela sua fé como Santo Estêvão. Não tem atrás de si uma grande obra evangelizadora como São Paulo. Não combateu hereges em cruzadas como São Luís. Santa Zita virou santa por seu sangue de barata, por ser apontada pelo Fatinelli como o modelo que aqueles insolentes deveriam seguir. Zita é a imagem ideal da empregada, aquela sombra muda mas eficiente, tanto melhor quanto mais próxima do comportamento de uma geladeira ou batedeira.

Santa Zita também é boa padroeira por causa do seu nome.

Há tantos nomes elegantes de santos, alterosos. São Tiago de Compostela, Santa Catarina de Sienna, Santa Teresa de Lisieux, uma infinidade de Nossas Senhoras de sobrenome imponente como Mont Serrat.

Prisioneiros de guerra têm como padroeiro São Leonardo de Noblac; professores, São João Batista de La Salle. Mas às empregadas fizeram a grande sacanagem de dar como padroeira Santa Zita, santa de não muitos milagres mas de nome inigualavelmente apropriado a uma doméstica. Zita, coitada, não tem sobrenome, não lhe fizeram sequer a gentileza do topônimo; e a santa padroeira, que poderia ser Santa Zita de Lucca, é só a Zita, assim como a sua empregada não tem sobrenome porque não lhe interessa.

É por isso que Santa Zita é a padroeira das empregadas. Porque é uma santa que sabe o seu lugar. E que, provavelmente, folga aos domingos.

Originalmente publicado em 27 de abril de 2006

Ainda o golpe do film d'auteur

A comparação do diretor com o maestro, feita pela Cláudia, é interessante. Lembrei de um de que gostava muito, o Herbert von Karajan. Eu era fascinado pela mão esquerda do Karajan. Nazista ou não, ele era grande.

Mas por bom maestro que fosse, Karajan continua sem ser o autor da Quinta Sinfonia de Beethoven. Podia alterar o andamento, podia enfatizar determinadas passagens — mas era só um intérprete. Aliás, a própria definição de interpretação presume algum tipo de acréscimo pessoal à obra. Mas não lhe usurpa a autoria.

O mesmo valeria se a comparação fosse com o teatro. Por mais “iconoclasta” que seja uma montagem de, digamos, Gerald Thomas, por mais que ele subverta o texto e tente dar ou ressaltar novos significados a uma peça como “Hamlet”, ela continua sendo de Shakespeare.

A tese central do post — a de que o diretor não é o autor do filme, ao contrário do que dizem os franceses — continua em pé, na minha opinião.

Quanto ao que disse o Bia, que Hitchcock desqualificou uma trilha, etc., a pergunta é: e daí? Como disse o post, esse é o trabalho que qualquer produtor faria — e normalmente faz. O que se questionou acessoriamente no post foi a função específica de direção, e não das pessoas ou do processo de produção de um filme; até agora não vi nada que contestasse isso definitivamente. Hitchcock era o produtor efetivo de seus filmes. Chegava aos sets com storyboards detalhados. Ele tinha controle total sobre tudo ali, mas não por causa especificamente de sua função de diretor.

No que se refere a “Os Sonhadores”, o problema do Bia é uma generosidade excessiva, e a crença de que porque fulano fez alguma coisa boa deve haver um significado em tudo o que faça depois. Uma espécie de presunção de inocência. Deve ser o que o faz dizer que aquele é um filme “visual”, com todos aqueles diálogos pseudo-profundos. Para mim, filme “visual” (e todo filme não é visual?) é “O Clã das Adagas Voadoras” ou “Sonhos”. “Os Sonhadores” é um filme tipicamente europeu dos anos 2000, inclusive naquela nova tendência de fazer filmes “multilíngües” que apresentam como novidade, esquecendo que “A Grande Ilusão” de Renoir já fez isso com muito mais propriedade e significado há quase setenta anos. “Os Sonhadores”, por mais boa vontade que o Bia tenha para com ele, é filme inconcluso e medíocre.

E quanto a imaginar o roteiro de Sin City sem Robert Rodriguez, é o que falei antes: um mau diretor pode fazer um bom filme com um bom roteiro, mas um bom diretor jamais fará um filme com um mau roteiro. Basta olhar o monte de lixo que tanto o Rodriguez e o Tarantino (que é um grande diretor) produzem. É algo na mesma linha do que falou o Ina: o Bogdanovich fez bons filmes com bons roteiros, afinal, embora nós dois discordemos do seu valor como diretor (apesar de o Ina admitir que, com exceção dos quatro primeiros, ele só fez bobagem).

Sin City, aliás, é o pior exemplo que o Bia poderia dar. Por favor, o storyboard do filme foram os próprios quadrinhos de Frank Miller. Até nisso, na definição de cenas, ângulos, etc., a primazia do “roteiro” é absoluta, maior que na maioria dos filmes; não é à toa que o título completo do filme é Frank Miller’s Sin City . E Tarantino dirigiu uma seqüência do filme. Se você não sabe antecipadamente, saberia dizer qual é ela? Improvável. (Só para constar: é o trecho do Benicio Del Toro degolado no carro.) E aí a tal história da “marca do diretor” vai por água abaixo. Se eu estivesse defendendo o ponto de vista do Bia, preferiria ter usado filmes refeitos pelo mesmo diretor, como “O Homem que Sabia Demais” de Hitchcock ou Rio Bravo e El Dorado, de Howard Hawks. Daria para argumentar melhor.

O trecho de que o Gabriel discordou é mais do que válido para o studio system, como demonstra o livro que o finado Smart Shade of Blue (que o Grande Designer o tenha em bom lugar, Adriano) citou (e que não, não foi a inspiração para aquele post; na verdade foi um ensaio de Gore Vidal e a decepção com “Os Sonhadores”). Não é questão de interpretação, é um fato histórico. Pode não valer necessariamente para o cinema feito no resto do mundo, mas aí o problema é muito mais de estrutura de produção que filosófico: nesses casos, o diretor normalmente é também o produtor e o roteirista. É aí que está o tal golpe: falar em caméra stylo nesses casos é tentar se apropriar de um mérito que não é exclusivo da função.

Quanto aos “filmes de roteiristas”, eu acho que há sempre uma grande confusão sobre a própria qualidade do roteiro e a sua importância. Acho que o que impressiona no caso de, por exemplo, Charlie Kaufman é a qualidade da trama. Mas o processo continua o mesmo, com um bom ou mau roteiro. O filme continua sendo feito a partir dele.

O trecho de Truffaut que o Gabriel citou é interessante, mas me parece um grande sofisma. Porque todas as sugestões aceitas ou não, as contribuições recebidas ou não, são posteriores à definição do fato primordial: o próprio filme. Essas contribuições só existem em função do reconhecimento de uma estrutura prévia. Elas não existem sem um roteiro que os guie. É por isso que continuo achando que cinema é arte coletiva, que cada um dá sua contribuição, e que o dono do filme é o produtor — o dono do dinheiro, como diz o Nelson. Mas que se autoria houver é a de quem o concebe. E quem o concebe é o roteirista, e não importa se ele o dirige depois ou não.

Originalmente publicado em 10 de abril de 2006

P.S.: Gabriel, não vale “des-discordar”. 🙂

O golpe do film d'auteur

Certo, o mundo deve muito à revolução teórica e estética que veio daquele pessoal da Cahiers du Cinéma. Pelo resgaste de gente muito boa em Hollywood, pela apresentação e pela crítica do que a França tinha de melhor e pior.

Mas a tese do cinéma d’auteur é uma das maiores bobagens que já se fez em cinema, com a provável exceção de “Godzilla”. É uma mistificação, e nisso se aproxima muito de boa parte da filosofia francesa moderna.

A idéia de caméra-stylo é, provavelmente, o ápice desse 171. O fato é que a função do diretor é dispensável. E a maior parte do que se convencionou chamar de “marca do diretor” é o resultado do trabalho de outros.

Não que um diretor não tenha nada a acrescentar a um filme. Normalmente tem (embora no mais das vezes seja basicamente um copidesque, retocando aqui e ali o roteiro, inserindo um travelling aqui, um close ali). Mas acrescenta usurpando outras funções, como a do cinegrafista. Em que diferem, por exemplo, a maior parte dos filmes feitos por Spielberg e os de George Lucas? Se Spielberg — e estou escolhendo um diretor que acaba tendo uma marca autoral relativamente forte — dirigisse aquele roteiro bobo e diálogos inanes de Star Wars, qual seria a diferença? Ou seja, o problema não é a pessoa do diretor, que no processo de criação de um filme acaba fazendo mais que simplesmente “dirigir”, mas a função de direção.

É simples. A idéia do diretor como autor do filme é um ultraje. Cinema sempre foi “arte” coletiva, típica da era taylorista. É o resultado do trabalho direto de muita gente, de atores ao assistente de montagem. É difícil, para começo de conversa, dizer que um filme tem um autor, especificamente. O que seria de “O Último Tango em Paris”, por exemplo, sem a atuação de Marlon Brando? E ele foi mais além do que o ator normalmente vai, com a sua interpretação: alterou a própria estrutura do filme, com improvisos fantásticos como o monólogo sobre Buddy.

Se fosse para um filme ter um “autor”, este seria é o roteirista. É uma lógica simples. Um mau diretor pode fazer um bom filme com um bom roteiro, e Peter Bogdanovich é a prova viva. Mas nem um grande diretor consegue salvar um mau roteiro. Não há filme sem roteiro, mas um roteiro tem existência própria — e se for muito bom pode ser lido isoladamente: há alguns anos a LP&M publicava em livro os roteiros de Woody Allen, e eles valiam por si sós. A Rede Globo, uma grande produtora de teledramaturgia, reconhece esse fato primário sem muito alarde: não existem novelas de Dênis Carvalho ou Herval Rossano, mas de Janete Clair e Manoel Carlos.

Por outro lado, coordenação da direção de arte, direção de fotografia, cenografia, são coisas facilmente desempenhadas por um bom produtor. E a melhor prova de que a importância do diretor é superestimada está na própria evolução histórica da função.

Durante a era do cinema mudo, o diretor era rei. Mas com o surgimento do cinema falado e a consolidação do studio system o produtor passou a ser o “dono” do produto cinematográfico, e o diretor se tornou pouco mais que um técnico, algo como um capataz ou um cabo de turma. Normalmente só era chamado quando o produtor já tinha definido o filme com os roteiristas, escolhido a equipe, feito o teste do sofá com os atores. Ainda hoje não é o Spielberg diretor, aquele sujeito que grita “ação!” no set de filmagens, que dá uma cara própria a seus filmes. É o Spielberg produtor, que concebe o filme e eventualmente mete a mão no roteiro.

Gore Vidal defende que o cinegrafista tem mais influência em um filme do que o diretor, e ele tem razão. Por exemplo, não é o trabalho do diretor Robert Rossen que faz de Body and Soul um filme razoavelmente famoso. Foi a decisão do cinegrafista James Wong Howe de usar patins para filmar as cenas de luta. E o que conheço de ilhas de edição me dá a impressão de que um editor é quem realmente define o resultado final do filme.

Houve ao longo dos tempos um bocado de exceções, claro. Frank Capra, Howard Hawks, Billy Wilder; todos esses tinham marcas fortes e próprias. Mas essa marca se revela não no trabalho específico de direção, mas em atribuições típicas de um produtor, como a escolha do roteiro e dos atores. Capra só pôde imprimir sua marca porque, antes de tudo, capitaneava uma unidade de produção independente. E todos conhecem o trabalho de Billy Wilder, essencialmente, como roteirista — um dos melhores da história. Os produtores da era de ouro de Hollywood costumavam entender mais de cinema que seus diretores, e “…E o Vento Levou” deveria calar a boca de quem prega a sua primazia. É um grande film d’auteur, se alguém quiser chamá-lo assim, mas esse autor não foram os diretores que se sucederam numa produção tumultuada, e sim David O. Selznick, o produtor. Falar em Chaplin, então, é covardia.

Mas a mística do diretor é muito forte.

Vi “Os Sonhadores” pela primeira vez há algumas semanas, e dele lembrava que houve alguns comentários blogs afora, mais nada. Perdi os cinco minutos iniciais, e no final cheguei à conclusão de que a única coisa que prestava ali eram as tetas divinas de Eva Green. Porque o filme é uma porcaria sem sentido, mal narrado, que não dá resposta a nada e que tem um dos finais mais incompetentes da história.

Há incesto, não consumado. Há homossexualismo, não consumado. Há cinefilia, não consumada. Há um questionamento político, não consumado. Enfim, o que há ali é um filme não consumado.

A impressão que ficou ao final era a de que o filme tinha sido feito por um bando de universitários (categoria onde se inserem, felizes, alguns dos mais burros e mais pretensiosos seres perpetrados pela humanidade) que passaram tempo demais vendo filmes antigos e tempo de menos pensando. Pareciam falar de de um tempo cuja alma não conseguiam apreender, o que talvez explicasse o uso de canções de Morrison Hotel, disco dos Doors de 1970, em um filme que se passa no início de 1968.

No dia seguinte peguei o filme do começo e vi que o diretor era Bernardo Bertolucci.

O mais curioso é que passei a duvidar do meu próprio julgamento. Se o filme era do sujeito que amanteigou a Maria Schneider, que escreveu o argumento de “Era Uma Vez no Oeste”, deveria ter alguma qualidade que eu não tinha conseguido ver.

Não tinha nenhum, na verdade. O fato, triste, é que eu também havia caído no golpe do film d’auteur.

Originalmente publicado em 6 de abril de 2006