O Ina pediu, há uns tempos, que a gente enumerasse dez coisas que precisa fazer antes de morrer.
Eu pensei, pensei, e achei melhor ficar calado. Porque via o Ina sonhando coisas bonitas como se perder na Igreja da Sagrada Família em Barcelona e, poeta que é, cair de amor e ser erguido por ele. Em contraste, essas coisas apenas tornariam mais feia a minha lista.
Eu não sonho em cair de amor, porque sou só um paraíba e sempre sonhei, mesmo, foi em cair de língua. Para uns não há diferença, mas em verdade ela existe, e nela está contido o verdadeiro segredo da vida. Por isso pensei muito, e fiz uma lista dizendo o que eu realmente gostaria de fazer antes de morrer, e vi que ela nem de longe se pareceria com a belezura do Ina. Melhor não publicá-la, então, porque ficaria mais ou menos assim: 1) Comer a Isabel Fillardis; 2) Comer a Nicole Kidman; 3) Comer a Catherine Zeta Jones; e por aí seguia, lista ainda por cima tão volúvel que às vezes mudava um ou outro item, uma mulher injustamente esquecida e que parecia fazer melhores promessas que outra incluída — embora a lista fosse essencialmente constante em seu objeto. Em sua defesa eu poderia apenas dizer que ela mostraria interessante unicidade de motivos, uma força de vontade adamantina, ou mesmo um despojamento quase franciscano em relação ao que é acessório na vida. Poderia dizer que sou um sujeito bastante centrado.
Melhor não publicá-la, então, que ela apenas iria revelar a minha monomania e minha absurda falta de criatividade no que refere às coisas realmente importantes da vida. Ainda pensei em fingir e falsificar um ou outro desejo, em colocar uma ou outra bobagenzinha como comer em um tal restaurante de Florença, ou ver o sol se pôr em um cudemundo qualquer do Pacífico, mas além de nada disso ser verdade, todos iriam perceber imediatamente que eu mentia. Comer em um restaurante de Florença, na verdade, só se fosse a Monica Belluci — ou mesmo a Sophia Loren, para satisfazer um capricho mórbido, quase necrófilo.
Mas a idéia ficou na minha cabeça, e se não tenho lá tantos sonhos ou pequenos projetos acessórios de vida, percebi que há uma coisa de que eu realmente gostaria, que traria alguma luz para o meu coração aparentemente de pedra.
E decidi que o que quero mesmo fazer antes de morrer é ser um velho chato.
Chegar à velhice, para alguém com os meus hábitos de sono e alimentação, minhas preguiças e meus impulsos, já é uma vantagem. Uma grande conquista, tão mais desejável quanto mais improvável se mostra. E dentro dessa perspectiva a artrite, os ossos quebradiços, a aversão ao frio e o amor às meias e casaquinhos de lã, o medo pânico da pneumonia e da falência renal se afiguram como quase uma vitória. Por ela valeria a pena até adquirir aquele cheiro inconfundível de velho, de antigüidade que ninguém quer.
Mas não basta ser velho, que depois que a Peste Negra se foi ficou fácil chegar a uma idade de ancião. Bom mesmo é ser um velho chato. E eu seria um velho realmente chato, daqueles que reclamam de tudo, que peidam diante do genro e beliscam os netos, que mostram a eles doces que jamais darão, que furam a bola dos meninos que jogam na rua, que atrapalham namoros na praça, que dizem esquecer as coisas para que os tratem com absoluto monopólio de atenção.
Não furaria a bola dos meninos porque já não podia jogar, tampouco reclamaria do namoro dos jovens que não têm motel porque a impotência geraria em mim a inveja e a sensação de que tudo é indecente. Eu faria isso apenas pelo prazer de ser chato, ars gratia artis, um velho ranheta cheio de bile que sente um prazer genuíno em tentar fazer do mundo um lugar, se não desagradável, pelo menos um pouco pior. Finalmente, encheria o saco dos netos porque, afinal de contas, eles teriam que aprender que esse mesmo mundo pode ser um lugar muito mau.
E quando eu andasse na rua, encurvado, reclamando do tempo que passou rápido quando não devia e que parou de passar quando devia se apressar, reclamando da morte que não vem; quando as pessoas rissem de mim e dissessem que virei um velho chato porque não como mais ninguém, eu riria baixinho, aquela risada banguela e nasal de velho chato, e me sentiria finalmente realizado, e poderia morrer em paz. Apenas pediria, como última concessão do tempo que teria se mostrado tão generoso, que me levasse antes que eu perdesse a noção de que estava sendo chato, porque aí a brincadeira perderia a graça, e a velhice duramente conquistada ao longo dos anos em que sofri e fiz sofrer teria perdido o sentido.
Originalmente publicado em 28 de julho de 2006
Adorei a sinceridade…tb nunca fiz listinhas pq não sairia do viajar pra tais lugares e comer latas de leite condensado sem culpa (coisa que já faço atualmente). Abç
Nunca vi alguém com tamanha vocação pra ser velho chato como tu…
OI..Rafael.
Gosto do que escreve. Como o colega disse gosto do tamanho da sua sinceridade, só lamento vc se esconder tanto atrás de suas palavras….
beijos
Serás mais que um velho chato, um verdadeiro velho fdp. 🙂
Rafael, quem produz um post como este e depois diz que só escreveu merda, o faz por pura ranhetice.
Bom ler isso.
Pensei que só eu tinha vontade de fazer coisas banais, dava até vergonha ao ver algumas listas com umas coisas grandiosas. Minha lista seria bem óbvia, e eu qria morrer beijando na boca.