A diferença entre índios e mendigos

Morreu hoje pela madrugada, em São Paulo, um morador de rua que teve 85% do corpo queimado.

Embora tenha sido incendiado na madrugada de ontem, só hoje, muitas horas depois de morto, se soube o seu nome. Até então só se sabia que ele era um mendigo, e não um índio. Chamava-se Ivanildo Raimundo.

Por ser um mendigo somente não houve manifestações de rua por sua morte. Não houve militantes pelos direitos humanos tentando chamar a atenção da mídia para a monstruosidade do ato praticado. Não houve debates em jornais e programas vespertinos de TV sobre a violência urbana. Não houve psicólogos questionando a educação e a formação dada aos adolescentes de classe média. Não houve aquelas manifestações de revolta e nojo instintivos da classe média quando se vê ameaçada enquanto testemunha sua apregoada superioridade moral cair por terra.

O mendigo morreu só, diante do silêncio tranqüilo e desdenhoso daqueles que, há dez anos, se esgoelaram em protesto contra a morte do índio Galdino, em Brasília. Morreu só como morreram tantos outros mendigos, queimados numa calçada qualquer em Salvador, em São Paulo, no Rio de Janeiro. Centenas, talvez milhares ao longo da história. Nenhum deles causou repercussão, porque um mendigo que morre queimado, espancado ou enregelado não faz falta, sequer tem família.

A polícia diz já saber quem foi o responsável pela morte do mendigo. Aparentemente foi outro mendigo. E assim como o morto que só agora foi identificado no Instituto Médico Legal, o assassino também não tem nome, ainda. Mas assim que ele for descoberto e preso os juízes serão imparciais e rigorosos, como não foram com os marginais de classe média de dez anos atrás, e talvez isso possa servir de consolo a alguém. Por outro lado, o advogado dativo oferecido pelo Estado não vai se esforçar em defendê-lo.

Ao contrário do índio Galdino, o mendigo que morreu ontem não tinha nome. Não precisava ter. É um entre muitos, quase alguém que não existiu. Porque não é índio, é só um mendigo que deu o azar de ser queimado por outro mendigo.

Republicado em 17 de setembro de 2010

14 thoughts on “A diferença entre índios e mendigos

  1. Mas acho que não houve repercussão não apenas pelo cara ser um mendigo, mas sim porque não foi pessoas abastadas que o queimaram.

  2. É aquilo mesmo: mais uma vítima da meritocracia hereditária da sociedade que entra para algo maior: uma estatística.

    Parabéns pelas palavras!

  3. Desde que cheguei ao Rio de Janeiro, a três anos atrás, duas coisas me marcaram bastante.. uma deles foi que, certo dia, passando pelo maracanã, três pessoas abordaram a mim e a outro amigo querendo os celulares. Eu, como não tenho, não tive nada roubado, ms meu amigo tinha logo dois, e eles os levaram… isso era a noite e eu sabia q perto sempre fica uma viatura policial, corria té a prontamente fui com eles atrás dos individuos… depois de 45 min de busca pela regiao eles me levaram a uma das rampas de acesso ao estádio maracanã onde ficam dormindo moradores de rua a noite e pediram para eu olhar se era algum daqueles que dormiam… não era, mas o que me marcou mesmo foi na hora em que voltavamos a viatura, o policial que carregava o fuzil virou pra mim e disse:

    “tem gente aí que já morreu e não sabe!”

    nunca mais vou esquecer dessas palavras.

  4. O avesso da liberdade!

    Cara,
    já fiz trabalho voluntário com moradores de rua e sei como algumas coisas funcionam… e “infelizmente” a maioria está lá por vontade própria. Mas isso é até compreensivel, já que somos livres para sermos e termos o que quisermos.
    Mesmo que a opção de morar na rua seja por uma magoa, decepção, tristeza ou raiva de um familiar – esses são os maiores motivos por eles estarem lá. – é inadimissível a ato cometido por esses covardes. Não importa se são jovens ou adultos, se são pobres ou ricos, mendigos ou viajantes… pra mim são covardes! Não deveriam usufruir do diretio de serem livres, pois tiraram o mesmo direito do próximo. Todos devem pagar por crimes, seja ele qual for.
    Quanto a ausência dos direitos humanos, da mídia, dos militantes… fico com a dolorosa certeza que paz, justiça, liberdade são apenas palavras que têm mais valor – às vezes financeiro – do que sentido.

    Parabéns pela critica!

    Ps: O trabalho voluntário é um ótimo modelo de educação, mesmo para os mais crescidos. Recomendo àqueles que têm tempo e vontade.

  5. É que o mundo é pop, e diferente do que diz a música, o pop poupa alguns. Índio virou pop: Está na na boca dos políticos, é notícia e notícias. Agora, mendingo, nem romances foram protagonizados por mendingos. O pop não enxerga a vida como um fim e princípio de tudo; enxerga apenas como um meio de ganhar dinheiro.

  6. É isso realmente é uma tremenda injustiça e um desaforo ao ser humano,pois hoje você só é reconhecido (até depois de morto) pela sociedade pelo poder aquisitivo e infeliz daquele que for pobre, basicamente sua vida não vale nada,ou seja o capitalismo esta cada vez mais transformando vidas em produtos valorosos e aqueles que nem valor tem.

  7. Uma dura verdade, difícil até de comentar.
    Que vergonha, que vergonha…
    Se nos serve de consolo, suas palavras, pelo menos, nos levam a reflexão e servem de epitáfio para o pobre coitado.
    abraço
    pat

Leave a Reply to Joao Cancel reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *