Paris

Ah, Bruno, você nunca vai entender Paris, e eu choro por ti, meu amigo.

Não pense que não entendo por que você prefere Londres. Entendo que você ame a vida da cidade, o dinamismo, a simpatia e a gentileza das pessoas, a capacidade estóica de comer a pior comida do mundo e ainda assim sorrir, mesmo com os dentes feios dos ingleses. Entendo tudo isso, e até admiro a cidade. Eu gosto de Londres. Gosto muito, quase tanto quanto de Aracaju, quase tanto quanto do Rio.

Mas em troca você não entende que Paris está além e acima da vida. Paris é infinita. E é maior que o amor do poeta, porque também é imortal.

Sous le ciel de ParisVocê nunca pensou nas razões pelas quais Paris é chamada a Cidade Luz? Não é só por causa de uns filósofos de tantos séculos atrás, que filósofos, aliás, Londres também teve e em quantidade bem razoável. Paris é a Cidade Luz porque representa, mais que qualquer outra cidade no mundo, um ideal de vida.

Você não entende que a diferença entre Paris e Londres seja a diferença que havia entre Apolo e Hermes, a diferença entre a beleza e a funcionalidade. Você gosta de Londres pelo que ela lhe oferece; Paris é Paris pelo que é.

É isso. Londres não seria nada sem os londrinos. Paris é Paris apesar dos parisienses.

Por isso eu choro por ti, meu amigo. Choro porque você nunca vai saber o que é simplesmente andar pelas ruas de Paris sem se preocupar com o seu destino, andar apenas pelo prazer de estar ali, porque vale a pena passear pelas ruelas do Marais. É por isso que aqueles que se dedicam a esse pequeno prazer até ganharam um nome também único, flâneur. O reconhecimento de um valor que pode existir por si só, que dispensa um destino e uma razão, é uma das coisas que fazem Paris ser Paris. E isso só é possível pela sua beleza, por detalhes simples como a certeza talvez até arrogante de ser a mais bela cidade do mundo.

Talvez o erro de todos aqueles que, mistificados pelas trevas da incompreensão, dizem preferir Londres a Paris seja uma certa incapacidade momentânea de perceber o que Pasolini dizia no final do seu Decameron: para que realizar algo, se é tão mais belo imaginar?

Deixe-me dar como exemplo a mania inglesa por flores. Se pode haver uma explicação para os jardins de Londres, tão obviamente mais bonitos que os de Paris, é essa: os ingleses precisam embelezar sua cidade; os parisienses já têm uma obra pronta. E por terem mais, quando se preocupam com flores, em vez de plantá-las eles as pintam — e Paris é Paris porque teve um pintor míope como eu pintando ninféias do jeito que as via. É essa a beleza da aventura humana: a capacidade de reimaginar o mundo além do que ele é. É isso que Paris representa. Londres está ocupada em corrigir um trabalho de um mau artista; acima disso, Paris se dá ao luxo de reinventar a vida ainda mais bela.

Sabe, Bruno, Paris não é e nunca vai ser uma questão de gosto. O Museu Britânico é melhor que o Louvre, na minha modesta opinião — mas eu confesso preferir estar do lado de fora do Louvre, tentando acertar com cuspe a cabeça de um dos sujeitos a bordo de um bateau mouche, a estar dentro do Museu Britânico.

Paris é Paris porque teve um Balzac reinventando-a de maneira monumental, porque teve um Dumas lhe dando um ar etéreo de heroísmo idealista e de juventude, porque teve um Zola e uns irmãos Goncourt falando coisas que a pudicícia vitoriana jamais deixaria alguém falar em público. Paris não é Paris porque tenha amado mais ou vivido mais, mas porque soube cantar esse amor e fazer dele a sua razão de ser.

Paris tem a Marguerite Gautier. Londres tem Elizabeth Bennet. E aqui está a diferença entre elas, que não se resume ao artigo definido diante do nome daquela: cá embaixo uma moça que viveu como quis e mesmo assim se deixou morrer de amor; e daqui a muitos anos, agonizando diante do fim de tudo, eu olharia para trás e certamente gostaria de ter vivido com ela. Em Londres, não. Em Londres, it simply is not proper, dear. E como amar assim, Bruno? Como amar se preocupando com essas coisas pequenas e mesquinhas do dia? Paris é Paris porque ali, num café qualquer de Montmartre, você pode dizer à mulher que ama que esse amor é incondicional, e para sempre.

Talvez você me diga que isso é bobagem, que a vida não é assim, que essas coisas que eu chamo de medíocres fazem parte dela. E então eu lhe responderei que é justamente por isso que Paris é Paris: porque ela se permite, e permite a nós, alçar vôos acima disso, dessa realidade boba que nem sempre é sinônimo de felicidade. Paris nos permite ser maiores que nós mesmos.

Paris é Paris porque enquanto os poetas ingleses choram que abril é o mais cruel dos meses — o tempo, sempre o tempo –, os franceses debocham de seus leitores hipócritas e enquanto olham cobiçosos para uma mulher madura dizem preferir os frutos do outono à flores banais da primavera.

Em Paris, até Belleville tem charme e tem espírito — e não é o charme caro de Regent Street, mas um tipo especial que empresta suas graças até aos marroquinos e senegaleses que falam alto.

Não tenho certeza de que, alinhavando essas poucas razões pelas quais prefiro Paris, eu tenha conseguido te fazer entender. Mas talvez possa lhe explicar tudo isso mostrando que Paris não é Paris apenas porque teve Modigliani em seus cafés. Paris é Paris porque teve Jeanne Hébuterne se jogando do quinto andar um dia depois da morte dele, sabendo-se incapaz de viver sem o grande amor da sua vida.

Paris é Paris, Bruno, porque por mais que tente, você não pode imaginar Humphrey Bogart dilacerando sua alma e olhando pela última vez para Ingrid Bergman enquanto diz: “Nós sempre teremos Tottenham Court.” Não, não. Paris é a cidade que lhe dá a certeza de olhar para a mulher amada ao seu lado, ela com frio e implorando para parar em um café, e então, mesmo sem saber o que vai ser do futuro, você e ela ainda terão a certeza de que sempre terão Paris. E nada, absolutamente nada poderá arrancar isso de você.

20 thoughts on “Paris

  1. Na disputa Paris X Londres, minha mulher tem o argumento em favor da velha Albion: “Fica perto de Paris”. Não consegui retrucar.

  2. acho que são cidades para momentos diferentes. paris é a cidade que eu escolheria pra fazer uma jura de amor eterna – nesse sentido ela ganha de lavada de londres. mas depois de fazer isso eu iria à londres, “londrar” com a minha paixão recém-consumada, com tudo o que isso significa.

  3. Rafael:

    Não sei se você se esqueceu, mas, ainda por cima, Paris já teve, ao mesmo tempo, Hemingway, e Scott Fitzgerald quando paris era uma festa. É mole?

  4. De acordo, Rafa. Mas acho que o melhor argumento que você poderia ter sacado da algibeira seria o “An American in Paris”, dos irmãos Gershwin.

    Grande abraço, rapaz.

  5. “gentileza das pessoas”?
    há quantos anos você não vai a Londres?

    no mais, concordo com o Victor (não pelos mesmos motivos): são cidades diferentes para momentos diferentes.

  6. achei tão bonito, que senti vontade até de comentar…
    mas eu nao sei comentar sobre essas coisas chiques…esses países civilizados..acho que só sei falar, e pouco, do meu nordeste…
    abraço

  7. Chorei com gosto. Tai o que eu sempre tento explicar às pessoas quando elas querem que eu me justifique por ter escolhido viver em Paris (como se precisasse justificar). Obrigada.

  8. E isso agora? Você só aceita comentários a favor de Paris!
    Mas eu ainda prefiro mil vezes e meia Londres e a Rainha do que Paris e o Arco do Triunfo.
    Tá, pelo menos eu achei alguma coisa na qual não concordamos.

  9. Não sei, pode sr que seja uma tola nostalgia, e qual nostalgia não é tola, pueril, vibrante, dolorida, mas Paris, mesmo na sua sujeira e trevas dos séculos XVIII e XIX, enfeitiça e embevece. Ler Balzac é a prova disso. O charme, os flaneurs, as mulheres e o ar blasé, os homens e o medo que a amanhã chegue e o dinheiro acabe para fugirem da realidade dos cabarés. E depois Montmartre e Montparnasse e seus artistas, os studios, o ar década 1930, imortalizado por tantos boêmios, pescoços cortados, vinhos tomados, sabor de chuva no outonal outubro, e ainda ler sem pieguice o Trópico de Câncer e achar que Miller eterniza a visão hedonista e sonhadora e nostálgica de todos nós, que mesmo em´péssimas condições, financeiras ou existenciais, nao resistem ao algo mais que Paris traz em seus boulevards, places e rues…

  10. Ah não… não me diga que os parques de Londres são só uma desculpa pra uma cidade feia. Os parques, tão abundantes (fiz um teste. Abri um guia de rua de Londres e tentei achar alguma página sem um espaço verde. Não tem), tão bem cuidados, tão cheios de gente, são fundamentais para que as pessoas possam usufruir da cidade. Lá elas levam os filhos pra brincar, jogam bola, comem, tiram uma soneca, tomam sol. Tudo isso que em São Paulo só pode fazer quem paga por um clube ou topa se locomover quilômetros pra chegar ao Ibirapuera. Seria uma vantagem até em Paris. OK, isso são considerações de uma paulistana deslumbrada com a urbanidade londrina.
    Mas isso não significa que eu não reconheça que Paris é a cidade mais bonita do mundo. Realmente, comparar as duas é dureza.

  11. everton: “quase chorei.”
    só se foi de raiva. isso parece mais uma novela do manoel carlos. bruno, deixou barato. get with the program, girlfriend. sort him out!

  12. Gostaria de entender porque as pessoas tendem sempre a ter que escolher por algo em detrimento do resto? Estive me Londres e Paris e não consigo expressar a grandeza do que vivi em cada uma delas. Acredito que a alma humana é infinita e nela cabe as duas cidades e muitas outras. Escolher é restringir, não poderei ter em Paris o que tenho em Londres e vice-versa. Sugiro então, a todos que ainda não tiveram a oportunidade, que conheçam as duas, sem querer compará-las para escolher. Até porque a vida, na sua beleza divina, não nós pede isso, as duas belas cidades estão lá, disponíveis para que TODOS possamos tomá-las na intensidade que conseguirmos.

  13. Londres é linda, charmosa, tradicional, mas elegância e magia está em Paris, cidade luz. Uma não é mais bela que a outra, ambas têm seus encantos. A diferença está no ar. Em Paris buscamos cultura, conhecimento, moda, atualidade. Em Londres sabedoria, tradição, discrição. Quem vai a Paris busca o novo, em Londres a memória. Amo as duas cidades, mas fico com o Rio de Janeiro que reúne encanto magia e charme. Essa beleza não veio do iluminismo nem da tradição, mas de um grande arquiteto, DEUS, que fez do Rio de Janeiro um palco da natureza.

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