Os bons anos 80

Lembrei uns dias atrás de um dos tantos motivos para odiar os anos 80, esses que os últimos tempos têm edulcorado e levado a uma reapreciação degenerada da sua música horrível, da sua moda tenebrosa, do seu cinema cheio de maneirismos infelizes.

Aquela década viu a primeira geração a chegar à puberdade sob o fantasma aterrorizante da Aids.

Para quem nasceu nos anos 90 a Aids é uma doença grave, incurável, e que condiciona em maior ou menor grau a vida sexual de todos. Mas naqueles tempos um diagnóstico de Aids era uma sentença de morte quase imediata, e dolorosa. Eu ainda lembro da confusão que cercou a sua descoberta, a maneira como as pessoas inicialmente a chamavam de “praga gay”, e de como o pânico se espalhou aos poucos, mas com firmeza, ao verem que gays não eram suas únicas vítimas.

Uns anos atrás, conversando com Almir Santana, coordenador da luta anti-Aids em Sergipe, comentei que o número de contaminações parecia estar diminuindo. Ele, delicadamente, me deu uma aula e tentou me ensinar a não falar besteira sobre o que eu não entendo. Este blog é prova de que ele não conseguiu.

O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos: jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas. Os dois últimos me pareceram bem lógicos: os velhos ganharam o presente inestimável do Viagra, mas não os novos hábitos; mulheres casadas não costumam usar preservativos com seus maridos, mesmo os que têm um pé fora do armário. Eu só não consegui entender imediatamente o caso dos jovens, que eu achava terem aprendido com o sofrimento dos que lhes precederam — até lembrar que adolescente é animal idiota, e essa juventude usa camisinha principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer. Além disso, o fato de que aparentemente pode-se viver hoje normalmente com o vírus faz com que a urgência em evitá-lo diminua.

A geração anterior à minha lembrava dos tempos anteriores, tempos perdulários de fartura e exuberância e alegria de viver; e por isso os mais odaras tentavam entender o que se passava, os mais místicos viam a Aids como uma espécie de punição pelo desbunde dos anos 70. A minha, que não tinha vivido nada disso, tinha apenas o medo e a obrigação de desenvolver uma visão nova sobre a moral sexual, algo que tentasse combinar a liberdade alcançada com a ameaça constante de morte. Isso se tornou pior quando Henfil e seus irmãos foram condenados à morte por receber transfusões de sangue contaminado. Alguns anos depois, como se a situação já não fosse crítica o suficiente, Magic Johnson anunciou que tinha o vírus e nós levamos um golpe fatal no pé do ouvido, coitados de nós, que então nos víamos diante da prova definitiva de que era possível pegar Aids com mulheres. “É, gente. Ferrou de vez.”

Lembrei dessas coisas que o tempo deveria ter enterrado porque vi uns trechos de uma série recente da Globo, ambientada no início dos anos 80, que tinha entre seus personagens uma moça morrendo de Aids. Me impressionou a maneira como ela era bem tratada, como as pessoas bebiam do seu copo, beijavam sua boca. Tão bonito.

E tão falso. Era tudo mentira. Esse cenário quase idílico, do amor superando a incompreensão e a ignorância, não existiu. Naqueles anos 80 a regra era o medo, e a falta de certezas. As pessoas tinham medo. Medo de abraçar, medo de apertar a mão, medo até de respirar o mesmo ar que o “aidético”, era assim que os portadores de HIV eram chamados, respirava. Certo, não demorou tanto assim para entendermos que abraço não transmitia Aids. Mas nenhum pesquisador tinha certeza absoluta de que beijo não transmitia. E o medo continuou por muito tempo.

Já faz um bom número de lustros, isso. Os anos passaram, a cura não veio mas o pânico passou. E como o esquecimento leva sempre a distorções, hoje as pessoas até acreditam piamente que os anos 80 foram uma época boa.

Mas os que vivemos aqueles anos sombrios temos uma missão diante das novas gerações. Temos o dever cívico e moral de descortinar a tragédia daqueles dias. Esses eram os anos 80, os bons anos 80 em que sentíamos que a vida tinha nos pregado uma peça de muito mau gosto e encerrado a festa justamente na hora em que conseguíamos driblar os leões de chácara e entrar. E como se não bastasse, toda essa tragédia se desenrolava ao som da música desgraçada de Rosana, Yahoo e Kátia Cega.

8 thoughts on “Os bons anos 80

  1. Já nos anos 90 — 1992 pra ser mais exato — eu estava no meu primeiro emprego e apareceu na sala um rapaz que era aluno ou professor da universidade, não lembro, e todos sabiam que ele era HIV positivo.

    Ele quis falar com alguém, não estava, e a secretária foi bem grossa com ele e mais ou menos mandou ele ir embora e voltar outro dia.

    Depois que ele saiu ela disse que ele era “malvado” e “carregava seringas com o sangue dele” e “espirrava em móveis onde sentava”, uma história completamente maluca e falsa, mas que circulava livremente pelo puro terror que as pessoas tinham da doença.

    • Isso me lembrou uma lenda urbana na Aracaju daqueles tempos (o que inclui o início dos anos 90): a de que na praia da Atalaia Nova tinha um sujeito com uma seringa com seu sangue, contaminado.

      Havia também uma variação: uma mulher que dava para todo mundo, na esperança de contaminá-los também.

      • Essa tal mulher que dava pra todo mundo ainda escrevia no espelho do banheiro com batom: “Bem vindo ao clube da AIDS.”

  2. “O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos: jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas (…) e essa juventude usa camisinha principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer.”

    Será que viver com AIDS, por mais possível que seja hoje em dia, não é, para os jovens gays, uma ameaça pelo menos equivalente a uma gravidez não-desejada para os héteros?

    • Talvez até menos grave. Mas eu não sei. O que eu acho é que sem ver pessoas definhando, sem acompanhar casos de famosos que de repente pegaram Aids — Rock Hudson, Cazuza, Sandra Bréa, por exemplo — e morreram cedo demais, a ameaça se torna difusa demais, e Aids fica parecendo uma variedade mais estigmatizada de herpes.

  3. E Biafra, Wando, Cid Guerreiro, Sarajane, Ursinho Blaublau, George Michael, Cindy Lauper…

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