No Natal de 1980 eu não ia ganhar nenhum presente.
Minha mãe nos avisou. A coisa está complicada, ela me disse. Não vai dar para comprar presentes para vocês. Eu entendi. Eram cinco filhos, e pelo visto daquela vez não seria possível dar presentes. Tudo bem.
Eu sempre tinha recebido presentes interessantes no Natal. A verdade é que estava acostumado a ganhar o tipo de presente, em qualquer momento do ano, que outras famílias só trocavam no Natal, no máximo no Dia das Crianças e em aniversários. E por isso, o Natal era reservado para presentes bem mais caros, aqueles que você passava o ano desejando.
Devia ser uma seis da tarde, um pouco mais que isso, quando minha mãe chegou afobada em casa, carregando um saco grande de plástico, desses usados para colocar lixo. Dentro dele uma porção de brinquedos. Eram todos brinquedos muito baratos, o tipo que não costumávamos ganhar, ainda menos em datas especiais. Porque Natal, aniversário, Dia das Crianças, todos esses dias mereciam presentes mais caros, mamãe fazia o possível para nos dar o que pedíamos.
O meu foi uma lancha de plástico amarela. Não uma lancha chique, com motor ou plástico de qualidade ou cheia de detalhes: uma lancha simples, sem absolutamente nada, plástico e uns adesivos de papel, apenas. O tipo de presente que se compraria mais tarde em lojas de 1,99, em dollar stores.
Foi o presente mais vagabundo que eu ganhei em qualquer Natal. Foi o melhor presente que eu ganhei em qualquer Natal. Aquilo tornou aquele Natal pungente, doce, inesquecível. Ainda que não tivéssemos tantas provas da sua dedicação a todos nós, naquele momento nós saberíamos.
Por uma dessas estranhezas da vida, não lembro bem dos presentes que ganhei ao longo daqueles anos. Lembro mais dos que não ganhei: o Panzer, o Stratus, o Ar-Tur, porque minha mãe não gostava de brinquedos desse tipo, controlados por controle remoto. Mas sei que no Natal de 1980 eu ganhei uma lancha de plástico amarelo.
Antes e depois ganhei presentes muito mais caros. Nunca mais ganharia de Natal um presente tão simples, tão barato, tão vagabundo. Mas também nunca mais ganharia um presente tão maravilhoso, tão carregado de amor e esforço quanto aquela lancha de plástico amarelo.
Aqueles presentes tiveram um significado muito maior que qualquer outro depois. Porque percebi imediatamente que era o resultado de um esforço grande. Aquilo era tudo o que ela podia nos dar; talvez fosse até mais do que era possível. Estávamos todos conformados com o fato de não ganhar presentes; e mesmo assim ela fez um esforço grande para evitar que seus filhos não ganhassem nada. Aqueles presentes foram uma surpresa. Eu sabia que os tempos eram difíceis.
Mais tarde, depois da ceia, assisti a uma adaptação de “Romeu e Julieta” na TV Aratu, estrelada por Fábio Júnior e Lucélia Santos. Jamais esqueceria da cena em que Romeu, num porão pedregoso de uma igreja, acreditando que sua Julieta tinha morrido, se oferece a um escorpião: “Vem, bicho nojento.” Quase quatro décadas depois pude rever essa cena no YouTube, e me impressiona ver como eu lembrava perfeitamente dela.
Esse é o Natal de 1980: Shakespeare e uma lancha de plástico amarelo. É também a salada de frutas na mesma bandeja inox que um ano antes, em tempos de fartura absoluta, em tempos de seis empregados em casa, tinha presenciado um Natal tão farto, mas do qual não lembro que presente ganhei.
Vieram outros presentes depois. De alguns ainda lembro, a maioria se perdeu na minha memória. Depois disso, uns poucos Natais permanecem: o primeiro Natal da minha filha, o Natal em que passei doente. Mas em nenhum deles minha mãe chegou com um saco plástico, trazendo dentro dele o melhor presente que eu recebi em minha vida.
Dia desses, uma moça encontrou minha irmã e falou da gratidão que sente em relação à minha mãe: ela era doméstica num apartamento vizinho, ficou doente, e mamãe a colocou lá em casa e garantiu que ela melhorasse. Eu não lembro disso, e minha mãe também não. Mas essa moça lembra, e isso é o bastante. Do que lembro é do Natal em que ganhei uma lancha de plástico amarelo, e decidi que aquele era o melhor presente que eu ganhei em toda a minha vida. Porque tem gente que é filho de gente boa, e tem gente que é filho de gigantes. Eu tenho essa sorte.
Que lembrança bonita 🙂
Legal.
Que texto emocionante, especialmente no final.