De vez em quando dá umas vontades esquisitas, e dia desses deu uma mais esquisita ainda, a de ser turista na Bahia. De pegar um grupo de gente e sair me oferecendo a todo vendedor de souvenirs e badulaques e informações meia-boca, donzela fácil para os tantos e tantos cafetões da baianidade.
O mais perto que cheguei disso foi há muito tempo. Adolescente, passava pelo Pelourinho e via os grupos de turistas ouvindo atentamente um guia repetindo as informações que tinha decorado. Então eu parava por perto, como quem não quer nada, e ouvia o que eles tinham a dizer. “Aqui era a Faculdade de Medicina”, essas coisas, apontando as estátuas daquele prédio bonito que minha avó tinha me dito ser apenas o Nina Rodrigues.
Engraçado que nunca vi esses grupos na Avenida Sete, nunca vi ninguém dizendo àquela gente branca avermelhada que a Igreja de São Pedro não ficava na Piedade, ficava no Relógio, e que a Igreja do Rosário teve quase toda a sua nave demolida mas ainda está lá, pequenininha e mutilada; tragédias que aconteceram na mesma época, quando as ruas do Rosário e de São Pedro deram lugar à avenida que deveria ter feito de Salvador uma cidade moderna, quase haussmaniana.
Mas não posso negar que aprendi com eles, e é por isso que tem horas que eu queria ser turista, para ouvir atento e embasbacado as informações básicas sobre uma cidade que, por mais que eu queira, nunca vou conhecer direito.
Não seria fácil. Há uns dois meses, vermelho-turista porque depois de quase 40 anos me abandonei novamente ao sol e à água morna de uma piscininha de pedras no Farol de Itapuã, diante da revoada de vendedores que se aproximavam de mim, adestrados para reconhecer em cada bobo avermelhado o seu ganha-pão, eu reagia instintivamente com irritação e enfado. “Eu sou baiano, rapaz”, frase mágica de eficiência taylorista; mas isso me parecia tão mentiroso, porque faz tempo que deixei de ser baiano.
O que importa é que o negócio funcionava e eles me deixavam em paz, porque não há tempo a perder nesse negócio de engrupir turista.
Mas há algumas semanas parei para olhar a dança de turistas e gaviões, e percebi que há algo ali que eu nunca pude saber o que é, a disposição para entrar naquela zona cinzenta, crepuscular, onde a diferença entre ser servido e ser esfolado quase não pode ser percebida. Foi do que senti falta, porque há nisso uma certa inocência, uma certa joie de vivre e um certo abandono tipo deixe-a-vida-me-levar que a minha empáfia arrogante não me deixa sentir.
Foi logo depois da festa de Santa Bárbara, o palco ainda estava montado no largo do Pelourinho. Parei para acender um cigarro e olhar para o vaivém das pessoas, encostado num umbral de porta como um malandro de Jorge Amado. Um grupo — ou vários, eu não sei — se deslumbrava diante da atenção obsequiosa e simpática daqueles baianos tão gentis. Pintando o corpo com uma tinta branca, fazendo tererê no cabelo, garantindo o pão de cada dia a partir da vontade dos turistas de se sentirem baianos e gastar um dinheiro que não gastariam em suas próprias cidades, eles se desdobravam para conquistar a sua simpatia gringa, sabedores atávicos da verdade que na cidade de Tomé de Souza simpatia é quase amor — ah, Sheslayne, você sabe disso —, e amor é dinheiro no bolso.
Na verdade eu olhava mesmo era as gringas branquinhas, esperando sua vez de serem pintadas como a Timbalada e depenadas como Barnabé teria sido. Devem ter aprendido, naquele filme em que o Lázaro Ramos pinta os peitos belos daquela moça, que para entrar no espírito das mais verdadeiras tradições da Bahia é preciso pintar o couro de branco, era assim que os baianos se vestiam quando iam comprar pão na padaria da esquina: pintavam os braços e as pernas e a cara como um aborígene australiano e saíam rebolando a dança da galinha, “Moça, me dá uma vara de milho”.
Uma mulher no final da casa dos 30 olhava a carteira semiaberta e respondia indignada a um sujeito: “Mais vinte? Mas eu não tenho mais dinheiro!”, e eu pensando que essa vítima já tinha pago caro por algo que não valia nada ou muito pouco, mas era esperta a ponto de entender o seu próprio limite. Nessa hora minha vontade de ser turista na cidade da Bahia arrefeceu um pouco, e lembrei das razões pelas quais nunca quis ser.
Mas então eu o vi.
Era um arremedo de pai de santo — ou, se o leitor tiver o coração pleno da generosidade que falta a este pobre ex-baiano, uma versão estilizada e alegórica —, o sujeito vestido de branco-presepeiro e um turbante que talvez fosse uma versão Goya Lopes do velho pano da costa, empunhando um punhado de galhos de arruda e um vidrinho de água de cheiro, tudo isso abrilhantado por óculos escuros aparentemente herdados de Elton John. Pai de santo “for English to see”, dava passes e, quem sabe, dizia alguma coisa que talvez soasse como iorubá — ou punjabi, ou suaíli, ou língua do P, tanto faz, ninguém ia entender mesmo.
Comentei com minha mãe que ia passar perto dele, esperar ele me abordar e responder algo que, pelo menos a mim, faria rir. Mas eu vacilei, e por alguma razão ele não veio atrás de mim, foi atrás da senhora minha mãe.
Que, mãe amorosa e desvelada que é, jamais deixaria o seu filho dileto na mão. Ela olhou com simpatia e comiseração pia para ele e respondeu o que eu ia responder:
“Ô, meu filho, eu sou evangélica…”
Ele sorriu um sorriso amarelo e falso e saiu virando os olhos com uma profunda expressão de enfado, talvez pensando que “Esses filhos da puta desses crentes ainda vão me matar de fome.” E saiu em busca de outra presa a quem pudesse oferecer a chance de experimentar uma verdadeira experiência baiana, e ter os seus caminhos abertos ali, no meio do Pelourinho, com a garantia de dinheiro e de amor, a pessoa amada de volta em três dias, o corpo finalmente fechado para a inveja dos outros.
Ao contrário dele, continuei a subir o Pelourinho rindo. Infelizmente, com o esprit d’escalier que sempre fez a minha desgraça, foi só ali pelo Terreiro que percebi que tinha feito tudo errado, ou melhor, que não tinha feito tudo certo, tinha feito um trabalho incompleto. Porque eu — eu, minha mãe, tanto faz, você não leu “As Aventuras de Tibicuera”? — não devia ter dito apenas que que era crente. Devia ter olhado para ele, com o rosto bem sério, talvez estupefato, talvez os olhos arregalados com aquele brilho insano dos que viram a luz extática de Deus e se espantam diante dessas artes de Satanás, e então perguntar:
“O senhor teria alguns minutos para ouvir a palavra de Jesus Cristo? São só 20 reais, para ajudar a divulgar a obra do Senhor.”
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