Vi a grade curricular do curso de cinema da UFF.
Entre as disciplinas oferecidas, Teoria da Percepção; Realidade Socioeconômica e Política Brasileira; História das Formas de Expressão; Português XVII; Introdução à Filosofia; Introdução à Sociologia; Ética; Legislação e Pol. do Cinema e do Audiovisual (imagino que o Pol. se refira a “política”, mas vai saber, né?). Entre as optativas uma miríade espantosa de assuntos, que vão de Comunicação Interpessoal a Ética e Ciência.
São oito semestres. E depois desses quatro anos o garoto que entrou na faculdade achando que ia sair de lá transformado magicamente em um novo Scorsese — ou, se tem desvios graves de caráter, um novo Godard — sai praticamente como entrou; talvez apenas um pouco mais arrogante, um pouco mais iludido sobre o seu papel no mundo, com uma variedade maior de conhecimento raso sistematizado e a capacidade de discutir cinema no bar usando termos típicos da academia, como parametrizar, paradigma e intersubjetividade.
Não quero subestimar a ignorância dos jovens que chegam à universidade antes mesmo de terminarem a adolescência, com toda a imaturidade e características específicas que isso implica, nem fazer pouco dos professores dessas matérias que parecem só existir para garantir que a economia do país continue funcionando, gerando emprego numa indústria de educação superior cada vez mais inchada. Talvez seja necessário, mesmo, desasnar os novos alunos em questões que dizem mais respeito ao seu posicionamento na vida do que ao cinema propriamente dito. Mas é estranho que esse tipo de coisa hoje caiba a um curso superior. Eu não sei, porque não entendo muito disso. Não sou professor, não sou pedagogo, não tenho licenciatura em nada — talvez em licenciosidade, vá lá. Gente mais bem qualificada que eu pode falar melhor sobre o assunto.
O que sei é que desses cursos de cinema saem, principalmente, jovens completamente preparados para repetir aulas em universidades, a passar adiante aquilo que aprenderam nos bancos desse tipo de escola — inclusive a não dizerem nada sem a chancela de um bocado de autores que, como eles, passaram suas vidas dentro desse ambiente acadêmico, cada vez mais hermético. A universidade, nos últimos tempos, parece estar se dedicando obsessivamente a perpetuar um círculo vicioso, a se realimentar constantemente enquanto se esgota em si mesma, cada vez mais distante do mundo real.
Os resultados práticos são pífios. A Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, tem um curso de Audiovisual (recentemente promovido a Cinema) há muitos anos. E no entanto o mercado de produção audiovisual sergipano, que já não era exatamente notável e hoje sofre mais que os outros os efeitos da crise econômica e, mais grave, estrutural que está destruindo o setor de publicidade, sofre com a falta crônica de profissionais razoavelmente qualificados.
Por tudo isso, se eu fosse criar um curso de cinema mandava esse modelo às cucuias.
Uma das coisas que mais me impressionam é o número de estudantes que, tendo que estudar para a prova de Sociologia ou de Teoria da Comunicação, não viram os mais básicos filmes da história e não compreendem o seu papel na evolução da linguagem cinematográfica. O ambiente ao menos lhes possibilita falar obviedades sobre o cinema iraniano, ou sobre a militância em prol do cinema brasileiro, que é e pelo visto sempre será um valor que se esgota em si mesmo e não precisa de justificativa existencial. Mas tantos, tantos parecem não conhecer cinema de verdade.
Na Universidade Rafael Galvão (URGH! para os íntimos) o curso oferecido seria bem diferente.
No primeiro ano eu escolheria 200 filmes que, de alguma forma, fizeram o cinema evoluir aos longos desses últimos cento e poucos anos e os exibiria em ordem cronológica. Um filme por dia, com exceções abertas para obras como “Berlin Alexanderplatz”, por motivos óbvios.
Sei exatamente com qual filme começaria: The Wonderful Wizard of Oz, de Otis Turner.
Depois de cada exibição, chamaria profissionais da área e mesmo professores para explicar aos alunos o filme que acabaram de ver. Detalhar e realçar os elementos do filme, inovações narrativas. Explicar as técnicas em cada um, as razões pelas quais foram utilizadas. Contextualizá-lo em seu tempo e em relação ao que veio antes. Contaria a sua história e o seu papel na ordem geral das coisas. Mostraria, por exemplo, o que há de revolucionário nas mãos de Mae Marsh em “Intolerância”, ou na narrativa não-linear de “Cidadão Kane”, ou o que há de inovador em “Acossado”. Exibiria, por exemplo, “Perigo Delicioso”, com Tom Mix, “No Tempo das Diligências” e “Era Uma Vez no Oeste”, para que pudessem entender as diferenças e a evolução de um dos gêneros mais importantes do cinema, e também como e por quê.
No segundo ano eu exibiria tudo de novo, na mesma ordem, mas agora para estabelecer um grande debate com a participação de todos. Seria mais aberto, porque a meninada a essa altura teria, espera este eterno otimista, uma visão mais abrangente do que é o cinema e de sua trajetória, e certamente enxergaria tudo de outra forma e compreenderia melhor cada filme. E só então os alunos estariam liberados para se especializar no que quisessem.
Mas em vez de um curso generalista como os de hoje, os dois anos seguintes seriam segmentados: cursos de montagem, de roteiro, de direção, de sonoplastia, cenografia. Não seriam esse amontado de matérias isoladas sobre temas disparatados que não parecem fazer nenhum sentido, a maior parte dos quais não interessa de verdade aos alunos ou a ninguém com juízo. Seriam dois anos de prática, de resolução de problemas, de mão na massa. A tecnologia para isso já existe há muito tempo e é cada vez mais barata.
Obviamente, não dá para garantir a formação de novos cineastas, porque talento é coisa que não se ensina, no máximo se alimenta e incentiva. O que eu poderia garantir é que esses garotos no mínimo estariam preparados de verdade para pensar e fazer cinema, saber o que estão vendo, ter os critérios necessários para avaliar um filme e o conhecimento para fazer também, se quisessem. E eu acho que querem.
Mas, como já disse, eu não entendo desses negócios de escola.
Sobre a inutilidade das universidades e seus circulos viciosos, Janer Cristaldo em seu blog ja comentava sobre essa realimentação. E a maioria dos formados quando jogados no mercado ficam perdidos mesmo.
Gostei 😀
Faço Cinema na UFPE. A gente tem uma introdução à sociologia, e o resto é de Cinema Mundial, Cinema Brasileiro, Som, fotografia, direção, história do cinema, narratividade e etc.
Em seus 10 anos o curso formou zero pessoas que integram o mercado.
Aquela coisa, curso de letras não forma escritores e curso de artes plásticas não forma artistas.
Mas nestes 10 anos de curso se formou muitos cineclubes, gente que organiza festival, críticos.
Aquela coisa, Cinema não é só a sala escura.
Tiago,
Cinema não é só a sala escura, tem razão. Mas há um problema quando nego passa quatro anos estudando apenas para viver na fímbria do cinema. Alguém tem que fazer audiovisual, afinal de contas. Que a universidade contribua para isso. O resto é a maluquice autoalimentadora da universidade hoje em dia. Cada vez mais pobre, cada vez mais hermética.
Acho que há um problema quando cursos universitários se dissociam do resto mundo.
Quanto a cineclubes, embora eu tenha dificuldade para entender sua necessidade e função hoje, em tempos de P2P e torrents, acho sinceramente que esse é o tipo de coisa que deveria, quase por princípio, prescindir do viés acadêmico.
Quando começam as matrículas? Porra, agora quero essa lista de 200 filmes. Faz um post pra nós, vai
“A universidade […] parece estar se dedicando obsessivamente a perpetuar um círculo vicioso, a se realimentar constantemente enquanto se esgota em si mesma, cada vez mais distante do mundo real” decorei esse pedaço pra falar na rodinha quando for conveniente kkk e esses 200 Filmes aí, vai ter que rolar um listão agora hein, com uma descriçãozinha do que observar em cada um kkkk
Vim direcionado pelo seu post de hoje. Gostei da sua proposta de curso. O pessoal da UFF certamente só vê e discute coisas do naipe do “Limite”, do Mário Peixoto. “No Tempo das Diligências” pra eles certamente é coisa de genocida, demonização do indígena estadunidense por machos brancos opressores (sic).