Mais 10 melhores faroestes

Nunca foi segredo que o faroeste é o meu gênero cinematográfico favorito. Foi ele que me fez gostar de cavalos, por exemplo. O que nem todo mundo sabia é que eu realmente acreditava que o gênero estava morto e enterrado, que já não havia mais o que dizer, nem como dizer.

Eu estava errado.

Para muita gente, hoje, a história da conquista do oeste americano é essencialmente a história de brancos maus matando e roubando terras a mexicanos e índios bonzinhos. E, se tirarmos os adjetivos, é uma percepção verdadeira.

Mas é muito mais que isso. É também a história de milhares de famílias que juntaram o quase nada que tinham e cruzaram um continente pelas trilhas do Oregon e Santa Fé em busca de uma chance de trabalhar e viver melhor. Famílias de origem europeia para as quais era incompreensível e inadmissível que uns poucos índios tivessem tanta terra enquanto outros não tinham nada, porque não conseguiam nem podiam compreender seu modo de vida e o relativismo cultural ainda não tinha dado as caras por aquelas bandas. Muitas dessas famílias deixaram relatos de suas travessias e das dificuldades que enfrentaram, dos cadáveres que foram deixando pelo caminho, e lendo-os é possível fazer um paralelo entre aquela gente e os imigrantes ilegais de hoje, que pagam coiotes para que os levem a uma terra prometida onde poderão viver melhor, não importa se bem vindos ou não. Obviamente eles não falam dos índios que viram os bisões desaparecerem e com eles não só o seu modo de vida, mas a sua existência; não falam dos índios que perderam suas terras e sua cultura, nem das traições do governo americano ou do sofrimento e humilhações que tiveram que enfrentar, das mães e filhos que foram deixando ao longo da Trilha das Lágrimas, por exemplo. Mas não é possível ser simpático à luta dos imigrantes ilegais de hoje ao mesmo tempo em que se condena completa e peremptoriamente a expansão americana.

No fim das contas, a maneira mais isenta de entender esse processo é simplesmente como a luta eterna da humanidade por espaço e produção de riquezas — nem sempre justa, raramente humana. Foi assim com os romanos, foi assim com os visigodos, foi assim no Texas. Pode-se fazer o julgamento moral que quiser sobre o assunto, e cada tempo faz o seu. O veredito atual basicamente inverte o maniqueísmo anterior, condenando indistintamente governo e povo americanos, canonizando índios e vilificando mesmo o pobre imigrante sueco que não tinha o que comer e se apegava à promessa de 40 acres de terra em Oklahoma como a uma tábua em uma corredeira.

Não sei os outros, mas eu acho essa uma história magnífica e rica.

O filme de faroeste foi a maneira como os Estados Unidos sistematizaram e deram dignidade e significado a essa história; de gênese canalha e genocida, é verdade, mas também heróica e brava, que representou uma aventura homérica para o povo que a empreendeu — e que teve, sim, momentos de beleza e grandeza imensos. Único gênero que nasceu com o cinema, o western mitificou a história americana, tornou-a maniqueísta enquanto pôde, entendendo que aquela era uma batalha de civilizações e, ao definir seu lado, não hesitou em apelar para a mentira e para o jingoísmo.

Mas o western também cristalizou no imaginário humano a ideia de que esse fenômeno pertencia a um tempo e espaço específicos e indistintos entre si. E isso é falso.

Pode-se dizer que quando o cinema nasceu a fronteira clássica já tinha sido fechada e estabilizada, e por isso tanta gente pensa no Velho Oeste como algo pertencente ao passado, aquele processo iniciado nos anos 1830 e intensificado após o fim da Guerra de Secessão. Mas em outras regiões o progresso demorou mais a chegar. The Good Bad-Man, um faroeste de 1916 de Allan Dwan com Douglas Fairbanks, se passa no Wyoming daquele ano. E é fantástico ver a cidade típica do oeste com postes telefônicos alinhavados na rua; fosse feito uns anos depois e teria Fords T compartilhando a rua com cavalos e boiadas.

Isso me fez perceber, antes de mais nada, a subjetividade do tempo. Wyatt Earp, um dos maiores ícones dessa era, morreu em 1929. Isso quer dizer que hipoteticamente ele poderia ter conversado com minha bisavó, que morreu quando eu já ia adiantado na minha terceira década de vida; posso imaginar Earp chegando na casa da rua Cedro, chapéu na mão, para dois dedos de prosa com o velho Valois e dona Sinhá, mentindo mais a cada dia sobre o duelo no OK Corral, contando histórias que 60, 70 anos depois minha avó contaria para mim, em primeira mão. Bastou perceber isso para o western deixar de pertencer a um passado distante e se tornar algo quase palpável.

Mas essa história vai além. Pensando nisso e assistindo a um filme de 2005, finalmente entendi que a essência do faroeste nunca foi o tempo em que ele se passava. Era o lugar e as contradições que ele propicia. O faroeste não diz respeito a um período na história americana; fala da vida na fronteira, do conflito entre povos, da violência inerente a esse processo humano, e isso ainda está longe de acabar.

***

Anos, muitos anos atrás, fiz uma lista dos 10 melhores westerns, na minha imodesta opinião. Mas o fato é que 10 filmes são muito pouco para ilustrar um gênero que, até o início dos anos 60, era talvez o maior da indústria cinematográfica e garantiu boa parte do material produzido nos primeiros anos da TV; quem cresceu nos anos 60 e 70 via faroestes o tempo todo, muitos dos quais permanecem até hoje em canais por assinatura ou streaming.

Ao mesmo tempo, tudo isso ajuda a complicar as coisas. O western tem uma natureza essencialmente esquemática. Nasceu assim, como contos de cavaleiros andantes nas pradarias americanas; basta ver os filmes de Tom Mix. Stagecoach é um clássico porque rompeu esse molde e mostrou que o gênero podia ter uma densidade dramática superior ao limite de cinco neurônios. Além disso, nos anos 50 o faroeste foi espremido até o esgotamento absoluto. Por todas essas razões, e mais algumas, em muitos momentos é um pouco mais difícil perceber a grandeza de um bangue-bangue; daí porque este é um dos gêneros que mais sofre revisões críticas. Por outro lado, muitas vezes é alvo de uma condescendência injustificada, porque esse pessoal da academia está sempre precisando falar alguma coisa diferente, por absurda que seja, para garantir o leitinho das crianças. Assim, um filme malvisto em seu lançamento muitas vezes adquire status superior quando uma nova geração assiste a ele com outros olhos; e quando aparece um filme artisticamente ambicioso como Heaven’s Gate — o filme que quebrou a United Artists —, é tentador dar a ele um status que não merece. Heaven’s Gate é só um grande filme mal feito, que não conseguiu concretizar suas ideias.

Por tudo isso, esta lista é, como sempre, uma escolha muito pessoal. Outros poderão escolher filmes diferentes. Azar o deles. E parando para pensar nas escolhas que fiz, preciso admitir que não vejo lá muita graça na maior parte dos westerns dos anos 70, como McCabe & Mrs. Miller ou Missouri Breaks, impregnados da aura contestatória de sua época. Coisa de velho.

Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, William Wellman, 1943)
Um filme que deveria estar presente em qualquer lista de 10 melhores faroestes de todos os tempos, “Consciências Mortas” é uma obra-prima do cinema como investigação da psique humana e do comportamento da turba. É um filme magnífico, poderoso ainda hoje, que tenta reviver e questionar os padrões éticos sob os quais os americanos gostam de dizer que vivem, ou acham que viviam.

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, John Ford, 1946)
É provável que esse filme tenha feito tanto para a definição do arquétipo do western quanto “No Tempo das Diligências”, e talvez fosse ainda mais importante se feito 7 anos antes. Ford não foi só o maior cineasta do gênero (para alguns, como o Moniz Viana, foi o maior cineasta, ponto); foi também o homem que definiu o que era faroeste, inclusive definindo os Colts Navy e Peacemaker como o padrão de armas usadas no Oeste, o que nunca correspondeu à realidade. É possível que a história dos Earp seja a mais icônica do gênero, a que melhor condensa a experiência do western, e sua narrativa foi definida aqui. É a lenda impressa, e não se pode almejar nada maior que isso.

O Preço de um Homem (The Naked Spur, Anthony Mann, 1953)
Dois grandes personagens, abordados com mais profundidade psicológica que a média dos faroestes, numa narrativa invejável. “O Preço de um Homem” é daqueles filmes que extrapolam o gênero e acrescentam camadas e camadas de leituras diferentes. Não há nada de revolucionário aqui: há, no entanto, a exploração de possibilidades diferentes de que poucos foram capazes.

Da Terra Nascem os Homens (The Big Country, William Wyler, 1958)
Em última análise, este filme é a mitologia da aventura americana exemplificada no seu maior arquétipo. A cena em que Gregory Peck e Charlton Heston lutam até cair, dois homens com H maiúsculo, corajosos, decididos, é uma das grandes metáforas do espírito que o americano gosta de imaginar em si próprio e, mais ainda, na história do seu país. Uns marotos, esses americanos. Mas é também um filme que exemplifica a conquista dos amplos espaços do sudoeste, a luta contra uma natureza quase sempre hostil, e o processo de imposição do capitalismo em uma área virgem. A história americana é mais complexa, mais e menos digna do que estrangeiros costumamos imaginar. É a consciência dessa complexidade e do seu valor que faz deste um filme magnífico.

Pistoleiros do Entardecer (Ride the High Country, Sam Peckimpah, 1962)
O faroeste tem uma característica curiosa: nenhum outro gênero cinematográfico demonstra tamanha consciência de seu próprio ocaso, do seu prazo de validade, e talvez por causa disso a ideia de finitude é tantas vezes central aos seus argumentos. “Pistoleiros do Entardecer” é talvez o filme que melhor retrata essa consciência, ao mostrar dois velhos amigos que, sabendo que seu tempo passou mas divergindo quanto ao que fazer e como enfrentar uma nova era que os superou inclementemente, cavalgam juntos pela última vez, representando o espírito dualista do espírito da fronteira.

Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, David Miller, 1962)
É curioso que este filme tenha sido lançado umas poucas semanas depois de Ride the High Country. Porque os dois estão entre os que os westerns que melhor realizaram essa consciência de seu próprio fim, e ainda assim são tão diferentes: enquanto “Pistoleiros do Entardecer” mostra o processo do fim da fronteira, “Sua Última Façanha” é uma espécie de olhar no retrovisor, a celebração de um anacronismo, onde o cowboy, ainda que represente um elemento fundamental e extremamente valorizado do que é ser americano, já é visto como definitivamente superado e incompatível com a moernidade. Há um quê de loucura heróica em Jack Burns, uma loucura que o filme associa a um espírito americano agora domado. É o fim dessa loucura que “Sua Última Façanha” lamenta.

A Conquista do Oeste (How the West was Won, 1962)
Dirigido por John Ford, Henry Hathaway e George Marshall, “A Conquista do Oeste” pode ser visto como o canto de cisne do faroeste tradicional americano. Não e realmente um filme notável como arte, e um pouquinho mais de rigor o impediria de estar nesta lista. Mas ele reuniu alguns dos maiores diretores e os principais atores do gênero para contar em Cinerama (que utilizava três câmeras simultâneas e cujas divisões podem ser vistas claramente na versão em Blu-Ray) uma espécie de sumário da história que vinham contando há meio século. É a narrativa americana típica dos anos 50, e serve como um epitáfio de um modo de fazer cinema, uma espécie de gran finale do velho e bom western americano. Logo depois chegariam os italianos e o gênero nunca mais seria o mesmo.

Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch, 1969, Sam Peckimpah)
Aquela mesma sensação de mortalidade inescapável e iminente está presente aqui, enriquecida por artifícios diretoriais como o abuso da câmera lenta e a sua transformação em marca semi-autoral. “Meu Ódio Será Tua Herança” é um daqueles grandes filmes que buscam plantar um epitáfio num gênero, depois de um olhar de soslaio e desconfiado para o spaghetti western, que enriqueceu e alargou seus horizontes —  se há uma cena para definir o filme, é aquela em que, logo no início, crianças colocam escorpiões para brigar e então os queimam. E o título brasileiro, inspirado nos delírios melodramáticos italianos que tomaram de assalto os cinemas brasileiros no fim dos anos 60, é infinitamente melhor que o título original.

Pequeno Grande Homem (Little Big Man, Arthur Penn, 1970)
O faroeste americano não é gênero que se preste facilmente à comédia; são muito poucos os exemplos bem sucedidos, como Blazing Saddles. Mas este é um filme que faz comédia com inteligência. Ele não poderia ter sido feito antes de 1968 — antes da Guerra do Vietnã, do movimento pelos direitos civis, antes da era de desconforto e autocrítica que definiram as décadas seguintes e do qual somos consequências. Esses novos tempos fizeram mal ao western; aos americanos já não era possível encarar a sua história sob a ótica maniqueísta e dourada de seus primeiros tempos; ao contrário, naquele momento parecia ser impossível olhar para o passado com algo menos que ironia e vergonha, e eu não tenho muitas dúvidas que essa mudança ajudou a acarretar a decadência do gênero. Mas aqui esse desconforto é narrado com talento e graça, até uma certa estupefação.

Os Imperdoáveis (Unforgiven, Clint Eastwood, 1992)
O que mais me chama a atenção é que, acima de tudo, o último western de Clint Eastwood é um bom e velho faroeste americano. As influências renovadoras do spaghetti western já tinham sido digeridas e regurgitadas em alimento, mais que transformação. Eastwood vem tanto do velho faroeste americano — era ator em Rawhide — quanto do spaghetti de Sergio Leone. E aqui escolheu fazer um faroeste tipicamente americano. É um filme que reflete a filosofia do seu diretor, e que pode ser resumida em uma simples frase, dita antes de um dos tantos assassinatos: “Merecimento não tem nada a ver com isso”. Nesse aspecto, é o último grande faroeste clássico. É também um filme do seu tempo, levantando questões que não seriam necessárias nos anos 50.

Três Enterros (The Three Burials of Melquiades Estrada, Tommy Lee Jones, 2005)
Este é talvez um dos mais importantes westerns feitos em muito, muito tempo. Subestimado e pouco visto, “Três Enterros”consegue retomar a mais verdadeira essência do gênero, porque entendeu que o que realmente o define, o que o faz único, singular, não é o tempo: é o espaço. Tommy Lee Jones entendeu que os conflitos que são a razão do faroeste continuam vivos, e captou de maneira impressionante a violência da vida na fronteira e a influência desse ambiente específico sobre as pessoas. Até então, boa parte das tentativas de atualização sempre foram frustradas pela falta de apreensão desse conceito, que pode ser visto como atemporal. Por isso a importância dessa estreia de Tommy Lee na direção. “Três Enterros” poderia ter sido ambientado em qualquer época, e ainda assim seria um faroeste de primeira. É um western de verdade, o mais importante do século XXI, e a prova de que o gênero continua vivo.

E eu continuo sem saber matemática.

7 thoughts on “Mais 10 melhores faroestes

  1. Rafael:
    Quando você diz “em outras regiões o progresso demorou mais para chegar” vale lembrar que o velho oeste “aconteceu” concomitantemente com uma América já muito desenvolvida e civilizada na costa leste. Nesse período houve ao mesmo tempo dois EUA, um ainda sendo desbravado e distribuído para seus futuros habitantes e outro ultra moderno, já entrando na era industrial, da produção em série; isso tudo sendo alanvancado pelos seus barões desenvolvimentistas, gente como os Carnegies e Rockefellers, por exemplo.

  2. Juntamente com o post antigo do top-ten é uma excelente seleção. Eu só acrescentaria “Forty Guns” porque eu amo a Barbara Stanwyck e esse filme antecipa elementos que seriam explorados pelo subgênero Spaghetti.

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