Os Anos Dourados

Nunca fui noveleiro.

Ao contrário, na infância cheguei a odiar novelas, porque impediam que eu assistisse aos seriados e desenhos que passavam na TV Tupi e que me interessavam muito mais — as novelas da Tupi, por sua vez, nunca foram vistas lá em casa. Mais tarde, aprendi a tolerá-las e até gostar de algumas, mas raramente assistindo regularmente a elas.

Com a idade, no entanto, passei a respeitá-las um pouco mais. E reconheço sua importância na minha própria história: novelas sempre serviram como referenciais cronológicos, porque em tempo de dois canais de TV não havia jeito de não ser exposto de alguma forma a elas, e por isso eu sabia a ordem da maior parte das que foram exibidas entre a virada dos anos 70 e 80, e ao menos alguma parte de uma trama. Querendo ou não, novelas tiveram algum nível de influência na percepção e vida de todos os brasileiros.

Mas houve exceções nesse desdém: não exatamente novelas, mas as minisséries que a Globo exibiu aí pela metade dos anos 80. De certa forma, a emissora do Boni prenunciou um novo tempo na TV que só agora se tornou corriqueiro. Algumas dessas minisséries foram antológicas, como “Grande Sertão: Veredas”, “O Tempo e o Vento”, “Memórias de um Gigolô”. Assisti a elas, gostei de todas.

Nenhuma, entretanto, foi tão boa quanto “Anos Dourados”. Assisti na época porque falava dos anos 50 e o rock daquela década era talvez o que eu mais ouvia então.

Por muito tempo achei que os anos 80 assistiram a um revival dos 50, mas a verdade é que aquela década sempre esteve presente: da retomada do rock básico pós-psicodelismo em 1968 (do qual o “Álbum Branco”, dos Beatles, é filho dileto e não inventor, como querem tantos beatlemaníacos), aos filmes American Graffiti, Lords of Flatbush ou Grease ao longo dos anos 70, ou o seriado Happy Days, os anos 50 permearam a cultura das décadas seguintes porque, no fim das contas, foi quando tudo começou, quando a adolescência passou a definir os padrões culturais de massa. Isso era mais intenso nos Estados Unidos, mas mesmo no Brasil a nostalgia de tempos leves, promissores, em que avançávamos 50 anos em cinco e todo mundo podia sair da fome no sertão para a fome nas cidades, nunca deixou de permear o imaginário: “Estúpido Cupido”, novela de 1976, é prova disso.

Assisti a “Anos Dourados” novamente quando o Viva reprisou a série, em 2011, 25 anos depois. Agora assisto novamente, no Globoplay, e estou impressionado.

“Anos Dourados” é a obra-prima de Gilberto Braga. A maneira como entremeia o nascimento e os percalços de um primeiro amor pueril e puro com outro, ilegítimo, adulto, contextualizando-os brilhantemente em um tempo de preconceitos rampantes, é obra de um excelente escritor, não importa o meio em que escreve.

O texto é primoroso, os diálogos excelentes em seu naturalismo. Roberto Talma não era um Walter Avancini, mas sua direção é de uma sensibilidade enorme, sempre no tom certo da cena. Cenografia e figurino perfeitos, de um bom gosto e simplicidade que chegam a impressionar, e que ilustram bem o que era o tal “padrão Globo de qualidade”. A música de Tom Jobim é de beleza única, e a narração do Paulo César Pereio, abrindo cada capítulo com um resumo do capítulo anterior, é sempre fascinante.

A recriação da Tijuca dos anos 50, seus códigos sociais, seus preconceitos, o contexto político em que seus personagens estavam inseridos, referências que se perderam no tempo — quem ainda lembra de Mira y López? Ou do que significava dar uma foto ao seu namorado, com dedicatória formal que escondia a intensidade do que se sentia? Ou ainda —, tudo isso é feito de maneira doce, verdadeira, que torna “Anos Dourados” uma obra permanente e sempre interessante.

Há tantos e tantos filmes clássicos por aí que falam do nascimento do amor, da emoção de ser adolescente e estar vivo e descobrindo o mundo — ou do amor proibido, sofrido, até sórdido. E enquanto eles eram louvados, a produção teledramatúrgica brasileira era desprezada. Mas a delicadeza com que Braga fala do ciclo da vida em uma Tijuca dos anos 50, inserindo-o de maneira perfeita em seu contexto social e político, não deixa absolutamente nada a dever a muita coisa boa no cinema. “Anos Dourados” serve para lembrar que a teledramaturgia brasileira era infinitamente melhor que o nosso cinema.

E então a gente se pergunta o que aconteceu.

É claro que a decadência da audiência da TV aberta se deve prioritariamente a outros fatores. Mas assistindo a “Anos Dourados”, percebendo os detalhes que passaram batido quase 40 anos atrás, me pergunto se a mediocrização das novelas atuais não é um fator relevante a ser considerado.

Não posso falar muito porque não assisto a a mais que alguns minutos delas, de vez em quando, e há décadas não assisto sequer a TV aberta além do Jornal Hoje durante o almoço. Mas ainda assim me parece desagradável assistir a uma novela hoje. Cenas longas demais, diálogos que às vezes parecem estar enchendo linguiça ao mesmo tempo em que são desnecessariamente complexos, verborrágicos, um tom escuro demais nas imagens que macaqueiam porcamente a estética de seriados americanos, falta de imaginação em movimentos de câmera e enquadramentos. O que as novelas brasileiras tinham de singular e em comunhão com seu público parece ter se esvaído em um caldo de globalização e tecnologia no lugar de criatividade.

E talvez o maior sinal disso seja o alerta que agora é exibido antes de cada capítulo: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”.

Que me perdoem os bem-intencionados cheios de certeza moral que pululam como girinos na internet: essa é a maior confissão de rendição à estupidez humana. Lembra aquelas advertências bizarras em produtos americanos, tipo “tire a criança do carrinho antes de dobrar” ou “não segure a motosserra pelo lado errado”. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de algum pensamento crítico, de contextualizar a história. E diante disso, é difícil não imaginar que estamos ficando mais imbecis. Ou que os anos dourados, definitivamente, passaram.

7 thoughts on “Os Anos Dourados

  1. Rafael:
    Acho que a falta de qualidade está fazendo a diferença na baixa audiência das novelas sim, pois quando passou a última novela com certa qualidade, Avenida Brasil, o sucesso a a audiência foram absolutos.
    Outro dia vi uma cena de uma novela de anos atrás com a Cassia Kiss, filmada em plano sequência, e muito bem feito com a atriz se movimentando em dois andares, ou seja, tínhamos até resquícios de Festin Diabólico nas novelas da Globo.
    PS. Tristemente outro dia vi que o Paulo César Pereio está vivendo no Retiro dos Artistas, totalmente alquebrado.

    • Mas é um sucesso relativo. Uma novela como Baila Comigo, em 1981, tinha média de audiência de 55,5 pontos e ultimo capítulo com 83. Avenida Brasil teve média de 32 pontos e último capítulo com 50,9.

      Mas acho, sim, que falta qualidade. Ontem vi uma cena de da novela das sete, planos excessivamente abertos, burocráticos. Senti falta dos closes. É como se tivessem desaprendido.

      • Curioso, na época eu li em algum lugar que avenida brasil era a maior audiência da história (ou pelo menos que o último capítulo tinha sido, não lembro ao certo).

        Essa novela das 7 é essa com a Sheron Menezes? Não vi, mas minha finada TL do tuíter falava muito sobre essa novela. Achei que tavam arrasando.

  2. Eu não tenho saco nenhum pra novela. Como sou um apreciador do Dias Gomes, às vezes me dá vontade de ver o bem amado ou saramandaia, mas quando vejo uns trechos eu logo desisto.

    • Pois depois do YouTube passei a ver últimos capítulos de novelas antigas, especialmente da Tupi, quase sempre inferiores. A Globo não deixa colocarem, mas antes de retirarem assisti ao último de “Escalada” e fiquei impressionado. E entendi o significado de “Beto Rockfeller”. Eu gosto da estética, não por ser boa ou ruim, mas por me lembrar algo.

      Também tem “Chico City”, até mesmo “Vila Sésamo”. PAra quem gosta de história da TV, é um prato cheio.

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