Hunter Davies

Anos lá atrás publiquei o que chamei de edição definitiva de uma pequena bibliografia dos Beatles.

Mas de umas semanas para cá, ela está me incomodando.

Olhando agora, é uma boa lista. Ou melhor, seria, se eu não tivesse cometido um erro crasso: deixei de incluir “The Beatles”, de Hunter Davies. Na verdade, até incluí, mas o coloquei num saldão final com vários outros, dizendo a seguinte barbaridade:

“The Beatles”, de Hunter Davies, foi a primeira biografia de verdade da banda, definiu a sua história oficial e foi a mais completa até o lançamento de Shout!. Mas não apenas é extremamente sanitizada como chega a insistir em mentiras deslavadas, como as verdadeiras razões pelas quais Lennon espancou Bob Wooler na festa de 21 anos de McCartney; seu valor é meramente histórico.

É uma das maiores besteiras que já escrevi sobre os Beatles neste blog, e por ela eu peço perdão e rasgo minhas vestes e me cubro de cinzas e choro com as mãos na cabeça como uma velha palestina. Enquanto isso, tento entender como cheguei a esse ponto de estupidez.

“The Beatles” foi o segundo livro sobre a banda que li, depois do de Geoffrey Stokes, livro bobo pelo qual, ainda hoje, tenho um carinho imenso — porque ainda lembro do garoto de 15 anos carregando extasiado um livro envolto em papel celofane vermelho, como era o costume da Civilização Brasileira, da rua do Tesouro até Nazaré, e de como ele leu e releu e releu e investigou cada foto de maneira quase obsessiva.

Alguns anos depois veio parar nas minhas mãos o livro de Davies, em sua primeira edição brasileira de 1968, num exemplar já sem capa. Li rápido porque era livro emprestado.

Com o passar dos anos vieram novos livros e matérias e entrevistas e filmes e textos na internet, e o volume de informações aumentava e se cristalizava, e minha visão em retrospecto sobre a obra de Davies foi ficando cada vez mais negativa, mais ou menos como aquele novo-rico que se obriga a gostar de coq au vin e passa a desprezar o pirão de galinha bem-feito que o fez crescer forte, sadio e feliz.

Foi essa a impressão que se cristalizou: era dispensável diante de tudo o que veio depois, porque estes continham as informações do livro de Davies e ainda traziam coisa nova. Além disso era uma biografia autorizada, bastante editada e censurada, repleta de mentiras e conveniência. Por alguma razão, suas falhas foram criando vida própria na minha cabeça, e pelo visto se descolaram da realidade.

O livro teve duas novas edições. A de 1985 acrescentava um pós-escrito que incluía um desabafo de McCartney feito num telefonema ao autor em 1981, onde ele reclamava de acusações de Yoko Ono e dizia que Lennon podia ser um “porco manipulador”. Essa reedição ganhou as manchetes naquele ano.

Em 2009 saiu outra edição, com uma nova introdução e um apêndice sobre os personagens do livro que já tinha morrido.

Foi pouco depois disso que finalmente comprei o meu exemplar, mais para completar minha biblioteca do que para reler o livro. Li rapidamente a nova introdução e o pós-escrito, e o deixei na estante onde permaneceu intocado até há pouco tempo.

Aí, dia desses, resolvi passar os olhos pelo livro, e algumas coisas que vi contradiziam a minha impressão sobre o livro, e agora não tinha mais jeito: eu tinha que relê-lo.

Pois é. Bem que dizem que cabeça vazia é escritório do diabo, e isso era algo que eu não devia ter feito, porque agora estou aqui, envergonhado, com raiva de mim mesmo, me sentindo um picareta por ter escrito essa vergonha sobre o livro.

É verdade, é uma biografia autorizada e partes dela foram realmente censuradas por algumas pessoas, principalmente a tia que criou Lennon, Mimi Smith. Além disso, o próprio autor teve o cuidado de não exagerar nas partes picantes, para não ofender as esposas e parentes. Ele nunca diz que Brian Epstein era gay e masoquista, embora deixe pistas suficientes para que se perceba isso; e as partes mais picantes sobre a temporada em Hamburgo são deixadas de fora, já que todos eles eram casados ou noivos na época.

O problema é que nada disso, em nenhum momento, compromete o livro. E relendo o danado agora, mais de 30 anos depois, me pego tentando entender como cheguei ao veredito que dei a ele nos últimos anos.

Porque “The Beatles”, escrito por Hunter Davies, é um livro fundamental para a compreensão do fenômeno. Ao contrário do que passei a achar, é bastante honesto. Só não entra sempre em detalhes — e sim, ele diz claramente por que Lennon espancou Wooler: “Ele me chamou de bicha”, embora não explique que foi por causa da viagem que Lennon e Epstein fizeram à Espanha enquanto uma Cynthia Lennon recém-parida cuidava do filho, o que ele menciona pouco antes Não faltam, por exemplo, as referências necessárias ao consumo de drogas. Há algumas omissões, claro, pequenos erros aqui e ali, e o livro não pretende fazer alguma análise da música, ainda que mínima. Mas o que realmente importa está presente, e o livro mostra seres humanos falhos, inquietos, em um momento em que tinham chegado ao auge de suas carreiras e se sentiam perdidos e sem saber o que fazer da vida.

De qualquer forma, não é isso que faz do livro uma obra basilar.

A questão é que The Beatles tem algo que nenhuma outra biografia tem, nem jamais poderá ter: é a única construída a partir de depoimentos em primeira pessoa de John, Paul, George e Ringo, de seus pais e colegas, por alguém que conviveu com a banda e seu entorno durante mais de um ano. Davies frequentou suas casas, esclareceu fatos diretamente com eles. Isso jamais vai ser repetido novamente, e já devia bastar para que “The Beatles” seja sempre incluído em qualquer lista de melhores livros sobre a banda, o primeiro de todos — e na verdade sempre basta, porque essa minha lista é a única, que eu saiba, idiota o bastante para não incluí-lo.

Sua importância é tão maior do que eu percebia que uma insuficiência sua definiu a estrutura de todos os livros que se seguiram. Escrito no período do Sgt. Pepper’s, ele não alcançou a crise do “Álbum Branco”, a Apple, não viu as consequências da morte de Epstein e a entrada de Yoko se fazendo sentir e ajudando a levar à dissolução da banda. Por isso o livro se estende e muito sobre seus anos iniciais. Essa estrutura e alocação de tempo estabeleceram o padrão obedecido por todas as biografias que se seguiram: biografia de Lennon até formar os Quarrymen, biografia de McCartney, biografias de cada membro narradas a partir do momento em que se encontram, e maior parte do livro contando o início e a ascensão da banda. É como se todos os autores posteriores se baseassem no livro de Davies, e escrevessem profusamente sobre o período entre 1956 e 1966; e ao se deparar com o que ele não cobriu — os anos finais da banda — se tornam mais resumidos, concisos, mais ou menos como os produtores da série Game of Thrones meteram os pés pelas mãos ao terem que se virar sem os livros de Goerge R. R. Martin.

E aí fico com esse pepino na mão. Por que diabos coloquei o “edição definitiva” no título daquele post? Como posso corrigir esse erro vexaminoso sem que pareça a 217ª turnê de despedida de algum artista caquerado que busca descolar uns trocados antes o que o Alzheimer o consuma totalmente, como Elton John ou The Who?

Então resolvi apelar para a safadeza. Meti a mão no post e simplesmente editei, apaguei aquela referência vergonhosa, coloquei o livro no seu devido lugar. Ninguém vai notar mesmo. E eu vou me sentir menos envergonhado. Não, eu jamais negaria a esse livro o seu devido lugar na história, nunca fiz isso, basta você olhar lá na minha “Pequena Bibliografia dos Beatles — Edição Definitiva”.

4 thoughts on “Hunter Davies

  1. O texto na parte desse livro ficou duplicado com o do livro seguinte, do Mark Lewisohn. Foi intencional? Não seria melhor deixar em branco ou com um linque pra cá?

    Do Hunter Davies eu tenho o “as letras dos beatles”. Nunca li sistematicamente, só pego pra consultas quando me bate curiosidade.

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