A África não tem culpa de nada

A geração que hoje tem por volta de seu meio século de tribulações cresceu sob uma narrativa bem clara sobre a Guerra do Paraguai: a de que o conflito foi causado pelas maquinações de uma grande potência imperialista, a danada da Inglaterra, em pânico diante de um modelo de desenvolvimento autônomo protagonizado pelo Paraguai progressista de Solano López. A velha Albion então fez com que suas duas marionetes sul-americanas, Brasil e Argentina, atacassem e destroçassem aquele pobre país.

Pelo menos era essa a tese que “Genocídio Americano”, do Julio Chiavenato, defendia.

A verdade estava muito longe disso, e a historiografia brasileira já tornou essa versão apenas uma curiosidade histórica. Para começar, na época o Brasil vivia graves problemas com a Inglaterra, chegando a romper relações diplomáticas. A Guerra do Paraguai foi causada pelos interesses políticos e comerciais do Brasil na região platina, pela necessidade de unificação e consolidação nacional da Argentina e pela estupidez de Solano López, ditador latino típico de filme americano que não soube avaliar o mundo a sua volta e começou uma guerra desnecessária que não poderia jamais vencer. Tudo isso tendo como fundo o destino do Uruguai, uma pequena Tróia com papel decisivo no controle da navegação no rio do Prata.

Mas aquela narrativa vitimista é típica de uma certa visão de mundo encampada por grande parte da esquerda brasileira, que perdura ainda hoje. Para ela, os vilões dos países em desenvolvimento são sempre os outros. Países subdesenvolvidos são invariavelmente vítimas impotentes das grandes potências setentrionais.

Parecem não perceber que essa constante ênfase na atribuição de responsabilidades a um agente externo nega a esses países até mesmo a condição de sujeitos e protagonistas de sua própria história. Mas não é por acaso: essa concepção nos desculpa, sempre: nós não temos culpa de nada. E ao eleger um inimigo externo, nos livra de olhar para dentro e fazer as mudanças necessárias.

Por isso me incomodei ao ver o título dessa matéria publicada no UOL: “Como este povo africano conseguiu fugir dos portugueses durante a escravidão”.

Não é apenas a inverdade histórica. O título incomoda principalmente pelo que estabelece como pressuposto para o debate político. Porque não era dos portugueses que esse povo fugia. Era de reinos como Axante, Daomé ou Oyó, de qualquer povo mais forte que tivesse condições de subjugá-los e vendê-los, em portos com o de Ajudá, a quem desse melhor preço, mais rifles, mais fumo de rolo, mais cachaça, mais seda.

(A matéria é muito melhor que o título, dando a César o que é de César. Só erra ao colocar o Brasil como mero comprador, quando na verdade tomamos conta do tráfico no século XIX.)

Não se trata de eximir portugueses, brasileiros ou britânicos da imensa responsabilidade e culpa pelo tráfico de escravos. Quando Lula pediu desculpas à África, em seu primeiro mandato, não fazia mais que sua obrigação, a de reconhecer o papel do Brasil no comércio transatlântico de almas e de entender que a demanda gigantesca e inédita por mão de obra escrava ajudou a condicionar a transformação da economia africana. Sem compradores, os escravizadores africanos não teriam motivo para destroçar a estrutura social de tantos povos na proporção que alcançaram. Somos culpados como o diabo.

Mas os europeus “apenas” compravam escravos, em um mercado que já era forte muito antes da descoberta das Américas. Até bem adiantado o século XIX, nunca tinham feito uma incursão de captura.

Alguém capturava tribos inteiras antes disso, faziam-nos andar agrilhoados em libambos por centenas de quilômetros até enterrá-los em porões de navios negreiros, onde 10% deles, na melhor das hipóteses, iriam morrer. E não eram os europeus.

Pensei nisso também quando vi as primeiras notícias sobre o golpe de Estado no Níger, e depois no Gabão. Vi, novamente resgatado do repertório permanente de análises pseudo-dialéticas, um velho conhecido na imprensa progressista: a renovação das esperanças no discurso decolonialista dos golpistas.

Não vou me estender sobre as perspectivas dos golpes porque, mesmo sem conhecer suficientemente sua história, posso apostar que vão terminar como todos os outros na África: mais uma troca de guarda de parte da elite nacional por outra, que vai descambar nos mesmos autoritarismo e corrupção, e tudo isso ancorado na eterna concepção do Estado como algo a ser apropriado pelos indivíduos e famílias de um grupo específico, até que essa casta seja destronada por outro golpe, repetindo o mesmo ciclo ad infinitum que representa a grande tragédia da África e, em menor medida, da América Latina. Sempre foi assim, e nada indica que este vai ser diferente. No caso do Gabão, ao ver os generais responsáveis pelo golpe imaginei ver, também, legendas com o nome de cada um. O da esquerda poderia se chamar Videla; o do centro, Médici; e aquele da direita se chama Stroessner.

As diferenças entre a ocupação europeia do Novo Mundo e da África saltam à vista. Se a escravidão no Novo Mundo foi uma tragédia humana e genocida que nos legou estruturas sociais doentes que não conseguimos superar e nos condena ainda hoje, ainda assim não se compara ao nível hediondo de violência e racismo cometidos pelos europeus na África. O que os portugueses perpetraram em Angola e Moçambique, o que holandeses e ingleses fizeram na África do Sul não deixa absolutamente nada a dever aos campos de extermínio nazistas ou à ocupação israelense da Faixa de Gaza.

Nada disso pode ser esquecido, sequer relevado. Mas tampouco deveria servir como bode expiatório para todas as mazelas africanas.

Concorrendo com o legado colonial, a África de hoje é resultado também das estruturas políticas, relações sociais e de classe anteriores e sobreviventes a essa dominação e exploração. Falta entender isso, colocar essa percepção como elemento principal do debate. Mas parece ser mais confortável partir do princípio de que o continente não tem culpa por ter criado e consolidado o mercado de tráfico humano que possibilitou a compra de milhões de africanos por Portugal, Brasil, Inglaterra, Espanha, França. Assim, se a África é um continente atrasado, é unicamente por ter sido espoliada pelas potências europeias. Da mesma forma que é dos países ocidentais a culpa única pela escravidão, pelo arrasamento da estrutura social africana, no Níger é da França a única culpa pelo subdesenvolvimento atávico, pela entrega dos recursos nacionais, mesmo que o país tenha sido colônia por menos de 60 anos.

Mas não foram os europeus que levaram para lá crenças como a de que um portador de HIV será curado se fizer sexo com uma menina virgem. Nem criaram a perseguição a albinos, ou a mutilação do clítoris das africanas, ou ideia de que se você oferecer farofa, pipoca, galinha e cachaça a um ser inexistente ele vai trazer a pessoa amada em três dias. Acima de tudo, não foram os europeus que ensinaram a África a ganhar dinheiro escravizando outros seres humanos.

A tragédia da África é a manutenção de estruturas sociais ruins e frágeis. Mudá-las é tarefa que cabe, única e exclusivamente, aos africanos. Mas jamais será possível com essa percepção de que a culpa é sempre do outro. No máximo, leva a cartazes como o que um nigerino segurava numa das manifestações de apoio ao golpe: “A bas la France, vive Poutine”. Sem entender seu próprio papel, parecem condenados a só mudar de senhor.

Nós, brasileiros, temos ao menos a sorte de conhecer nossos algozes: uma elite canalha, rentista e entreguista, imersa em uma corrupção atávica e estrutural que não dá mostras de que vá ser superada em futuro recente — e, para ser honesto, também um povo cuja percepção do mundo só difere da percepção da elite pela falta de dinheiro e de poder. A gente sabe que a culpa é nossa, e esse diagnóstico é, talvez, a única coisa a nos dar esperança em um futuro melhor.

4 thoughts on “A África não tem culpa de nada

  1. Já há algum tempo vem me incomodando essa tendência da esquerda (a direita é aquilo que se sabe há tempos) a exaltar os equivalentes africanos daquilo que ela sempre combateu ou disse combater aqui no Brasil. Essa fascinação de parte dela pelos recentes golpes africanos é um sinal péssimo. Parece que lhe falta poder para destruir os reduzidos avanços institucionais que tivemos, não vontade.

  2. Comecei pensando
    Comecei pensando – mais um bom escritor se endireitando com a idade.
    Depois notei diversas verdades, afinal não sou escritor mas o tempo passando me tornou velho.
    No final, pensei que analisar bem esses escritos daria mito trabalho, além de além de minha capacidade intelectual.
    Mas ao terminar, pensei,
    melhor título seria “A culpa é da vítima”.

    • Nelson, a ideia de que vítimas não têm absolutamente nenhuma responsabilidade sempre me incomodou.

      Um exemplo simples: eu tenho o direito de ir e vir, de andar onde quiser na hora que quiser, sem ser importunado por isso. O bom senso, no entanto, me faz evitar alguns locais e horários. Porque independente da culpa ser de quem me agride, eu é que vou sofrer as consequências. Me colocar nessa situação é, para mim, culpa minha. Ficar dizendo que a culpa é do outro não vai me adiantar de nada.

      Voltando ao post, essa transferência absoluta de responsabilidade funciona de maneira parecida. Culpar apenas o ladrão me faz achar que não fiz bobagem ao andar numa rua escura da quebrada sozinho às duas da manhã. E isso me condena a repetir o erro.

      A propósito, eu não sou escritor. Sou publicitário e vagabundo. 🙂

  3. Rafael,
    Penso bem parecido, os ‘woke’ me incomodavam décadas antes de serem classificados.
    Mas atualmente até pensar está mais complexo:
    – E as gostosas demais, que mesmo sem produção, são estupráveis, por exemplo ? (até o Maluf vem à memória KKKKK).
    Nesse ponto ocorre uma dos Simpsons, o Bart pirando a professora na ‘escola dominical da igreja’ – “Se o ventríloquo vai pro céu o boneco vai também ?”
    – Quando li “Como este povo africano conseguiu fugir dos portugueses durante a escravidão”, juntei com seu próprio texto e achei normal – fugiram dos atravessadores no estágio mais longo, quiçá oportuno.
    Indagora lia o Dugin num ‘The metaphisics of information warfare’, no “X”.
    Bom domingo, amigo,

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