Heróico

Já me acostumei com o Word corrigindo minha ortografia. Me acostumei com assembleia, com ideia, me acostumei até com o vazio deixado pelo trema que jurei defender até minha última gota de sangue, embora ainda ache que cinquenta não esquenta, e que os dois pinguinhos líricos no U cumpriam uma função importante e quase indispensável.

Essa resignação é mais notável porque desde o início bati pé contra a reforma ortográfica do Houaiss. Desnecessária, incompleta, e em um caso — é, o do trema — assassina. Mas o tempo vai passando, a gente vai se acostumando, a saudade deixa de doer tanto, a vida é assim mesmo. E os portugueses a odeiam ainda mais que eu.

Tecnicamente passei por duas dessas reformas. A primeira, no início dos anos 70, extinguiu acentos diferenciais e graves como o de “sòzinho” e “êle”. Infelizmente, boa parte do que li na infância e começo da adolescência tinha sido publicado antes de sua vigência, e o resultado eram pequenas confusões quando comecei a trabalhar, até que descobri que vivia em um mundo diferente. A segunda é essa de 1990, ainda mais canalha porque, não contente com acentos até discutíveis e hífens que norteavam minha vida, resolveu mirar no trema, antigo e indelével amor.

Mas eu me acostumei, tinha que me acostumar. Não tinha jeito. Então que tirem o acento dos ii, que os -éis percam-nos também. Eu aceito: “por um, por mil”, é um ditado da minha terra que o tempo me faz perceber tão correto.

Só tem um ou dois assassinatos de acentos que não ainda não consegui engolir. Certo, eu sei que esse dia triste chegará, mas para minha surpresa ele hoje me incomoda mais que a ausência do trema.

Como alguém pode escrever heróico sem acento e sem se envergonhar, sem enrubescer — embora eu ache que ninguém enrubesça mais desde a reforma de 1946?

Talvez essa minha revolta se deva à Reader’s Digest. Quando eu era criança, minha avó me deu um livro — hoje facilmente encontrável nos sebos do Rio — com algumas dezenas de biografias curtas de personalidades notáveis publicadas naquela revista. Eram eulogias, na verdade. Através dele conheci um pouco mais de gente de que havia ouvido falar, como Beethoven, Rondon, Sócrates, Galileu, Ford, Twain, Newton, e descobri um bocado de gente nova: Verdi, Helen Keller, Florence Nightingale, Marie Curie, Robert Peary.

E Toscanini.

Em 1944, Arturo Toscanini recebeu uma carta de um menino que pedia para ele tocar a “Heróica” de Beethoven, porque seu pai, recentemente morto na guerra, gostava muito dessa obra. Depois descobri que a sinfonia se chamava “Eroica” e que eu tinha feito uma confusão a partir da minha própria ignorância: por uma dessas inversões inexplicáveis que a cabeça da gente faz, heróico sem acento só remeteria a um menino que ainda não sabia escrever corretamente e pediu um dia para Toscanini tocar a Eroica.

Quando o corretor ortográfico me corrige nessa palavra, mais um pedaço de Toscanini morre em mim.

Ao resto já me acostumei. Me acostumei, sim. Primeiro era o Word, e no começo, porque gosto de brigar com corretores ortográficos e com a voz de puta do GPS do Google Maps que me manda entrar onde não devo, eu ia lá e recolocava o erro que não era erro em seu lugar. Depois o cansaço tomou conta da minha alma, não valia a pena continuar brigando por isso, ficou até fácil escrever assembleia sem acento, a verdade é que as ideias não ficavam melhores e nem piores por causa daquele traço em cima do E

Mas heroico não desce. Não vai descer nunca.

Se bem que eu disse a mesma coisa do trema e olha eu aqui, escrevendo coisas grandiloquentes sem o respeito necessário a uma pobre, mas importante e inesquecível vítima da modernidade.

Quem sabe.

One thought on “Heróico

  1. No início minha maior tristeza era “ideia” sem acento, uma palavra que eu uso muito e que ficou bem chocha.

    Mas eu me acostumei.

    O que eu faço questão de ignorar são as absurdas regras do hífen, que ficaram piores e mais incompreensíveis do que já eram. O que tenho feito geralmente é não colocar hífen nenhum, e usar o espaço quando necessário.

    Eu sempre escrevo no bloco de notas, só depois passo para o Word, quando necessário. Então eu só vejo essas correções no final, quando peço pra fazer revisão no texto.

    As coisas que eu não concordo eu apenas uso o “ignorar tudo”, hehehe.

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