Estátuas

Em que pé anda aquele movimento que questionava e queimava estátuas país afora? Há uns dois ou três anos a iconoclastia andava campeando solta, na esteira das manifestações pelo assassinato de George Floyd, e um bocado de gente queria tirar das ruas estátuas de vultos históricos associados a momentos e atividades hoje abominados. As estátuas estavam se movendo. Traficantes de escravos, bandeirantes, líderes secessionistas e escravagistas nos EUA. Cristóvão Colombo entrou definitivamente na lista. Sobrou até para o Borba Gato, o patinho feio das estátuas quatrocentonas de São Paulo, que virou churrasquinho.

A destruição de estátuas é sempre uma resposta aos tempos atuais. Não é novidade. A atual sensibilidade não admite a escravidão — um passo menos óbvio e mais importante do que parece, já que ela foi uma constante nos milhares de anos de história da humanidade — e encara o processo de expansão europeia no Novo Mundo como genocídio puro e simples, sem nuances ou complexidades. É bom lembrar que também não admite o socialismo científico (ou pelo menos não admitia há algumas décadas, quando estátuas de Marx e Lênin foram derrubadas em todo o Leste Europeu) e, durante muito tempo, não admitiu a cultura greco-romana.

Eu adoro estátuas, seja de quem forem. Acho que elas enriquecem as cidades. Sempre me entristeceu o fato de Aracaju ter poucas estátuas de suas figuras históricas, lacuna parcialmente compensada nas últimas duas décadas por João Alves Filho e Marcelo Déda. Estátuas significam um reconhecimento da própria história e a perenização de um momento no tempo. Concordo com Jacques Le Goff: monumento é documento. E não acredito que a história possa ser contada apenas com os documentos deixados por um lado só.

Daí porque a ideia de derrubar estátuas não é daquelas que me agradam de verdade. Até entendo a motivação, mas acho que ela está mal direcionada. Há um pensamento totalitário que está sempre na base dessas tentativas de obliteração: de certa forma, é como Stálin apagando seus desafetos das fotos soviéticas.

Uma sociedade é formada pelos mais variados segmentos, e por processos históricos muito mais complexos que palavras de ordem. As pessoas querem queimar a tal estátua de Borba Gato (talvez o menos culpado pelo extermínio de índios) e derrubar o Monumento às Bandeiras do Ibirapuera? Certo — mas foram os bandeirantes que aproveitaram a União Ibérica para estender o país até aproximadamente os limites atuais. Bandidos ou mocinhos, eles têm um papel histórico que não pode ser obliterado. Podem cancelá-los à vontade; podem apontar com razão que foram assassinos, escravagistas, até genocidas; mas eles agiram dentro das exigências de seu tempo, de necessidades históricas e econômicas e, ao contrário do que andam dizendo, não eram criminosos em seu tempo, até porque crime é um conceito histórico. Ao contrário, na maior parte das vezes foram chancelados pelo Estado.

Apagá-los da história significa estabelecer uma narrativa moral falsa e insuficiente para o país, algo que a longo prazo não dá certo. É um desserviço. Em vez de apagar, explicar é sempre um caminho melhor. Apagar é essencialmente jogar a sujeira para baixo do tapete: e uma hora ela ressurge. Muita gente adora repetir que um povo que não conhece seu passado está condená-lo a repeti-lo no futuro, mas não tem problemas em tentar obliterar parte dele.

É assim que o Brasil acerta as contas com o passado: apaga seu rosto na foto. Finge que não existiu. E mais cedo ou mais tarde, esse passado cobra sua conta. O país, por exemplo, se recusou a acertar as contas com a última ditadura, se recusou a meter na cadeia ex-ditadores e torturadores; o 8 de janeiro é, também, resultado disso. Se recusar a encarar o passado é mais que covardia, é quase pedir para que isso se repita, porque apagar um nome não significa apagar os elementos na sociedade que levaram a isso. Alguns anos atrás, o governo de Sergipe renomeou três escolas estaduais que se chamavam Castelo Branco, Costa e Silva e Médici. Não renomeou os conjuntos habitacionais com o mesmo nome porque os moradores não iriam gostar, assim como os moradores da Vieira Souto se recusaram a morar na Av. Antônio Carlos Jobim nos anos 1990. Não tenho coragem de afirmar que esse tipo de atitude não tem nenhuma, nem uma linha imperceptível de ligação com a legião de idiotas que se reuniram diante dos quarteis pedindo a volta da ditadura.

E se é para acabar com referências a ditadores, por que não acabar com as tantas referências a Getúlio Vargas? Getúlio deu não um, mas dois golpes de Estado. Foi envolvido em uma guerra civil em São Paulo. Só não perseguiu mais comunistas que a ditadura de 64. Seria candidato óbvio ao “cancelamento”.

O problema é que a dimensão de Getúlio é muito grande para que as pessoas finjam não ver nele um personagem gigantesco, e talvez por isso decidiram que as coisas “boas” que fez compensam as más e reconhecem o seu papel na formação do Estado brasileiro.

Essa complexidade, por várias razões, é negada a outros personagens; e é muito pior fora do Brasil. Em Bristol derrubaram a estátua de um traficante de escravos. Até anos atrás era considerado apenas um benfeitor da cidade. Nenhum dos dois lados estava errado, e nenhum estava certo.

Em vez de tentar obliterar o passado, o que deviam fazer era erigir mais e mais estátuas, representando os mais variados aspectos da sociedade. Espalhem Zumbis pelo país, Cunhambebes, Sepés Tiarajus, e deixem que os próximos novos heróis ganhem estátuas também; corrijam equívocos como a inexistência, até onde sei, de estátuas de Joana Angélica e tia Ciata.

Por falar em tia Ciata, imagine que, algum dia, um grupo mais vocal resolva “cancelar” Pixinguinha. Sei lá por que razão: por ser maconheiro, por bater na mulher, por não ser ativista negro, por roubar músicas, imagine aí qualquer coisa absurda, verdadeira ou falsa. Parece absurdo, eu sei, mas sensibilidades mudam. O Rio de Janeiro perderia muito se derrubassem a sua estátua na travessa Sete de Setembro. E se isso parece maluquice, a verdade é que boa parte das estátuas cariocas estão ameaçadas. General Osório, D. Pedro I — se alguém se tocar que D. João VI, como todo rei português, foi grande beneficiário do tráfico de escravos, a Praça XV vai ficar um pouco mais feia. Se alguém cismar que Gandhi, como dizem alguns, gostava de menininhas, lá se vai mais uma estátua da Cinelândia.

O reconhecimento dessas sensibilidades atuais me faz achar que não vale a pena brigar por isso. Querem derrubar, derrubem. Enfiem as estátuas em museus. Destruam, se quiserem. Mas quando se derruba uma estátua, estabelece-se o precedente para que o outro lado — e sempre há o outro lado — faça a mesma coisa. E assim segue a história: um lado vencedor derruba umas estátuas, depois o outro lado derruba outras, até a hora em que não vai restar mais nenhuma a ser derrubada, e nos reste enforcar o último padre nas tripas do último rei. Ou o contrário, sei lá.

Lembrei que também na esteira das manifestações, apareceram nas redes comentários de que a HBO iria tirar “…E o Vento Levou” de seu catálogo. Por sorte, antes que eu realizasse a primeira exibição clandestina do filme em um velho aparelho de videocassete resgatado de algum lixão, em que antes de apertar o play todos nos levantaríamos e, emocionados, gritaríamos “Je vous salue, Marie!”, surgiu a notícia correta: a HBO iria exibir, junto com o filme, um documentário explicando o seu contexto. O exemplo da HBO deveria ser seguido por todos. Talvez assim sobrem algumas estátuas no mundo para contar a história.

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