Dia desses encontrei um blog em que lembravam da Salvador dos anos 80, com uma lista que enumerava lembranças e fatos e que circulou por email há uns 20 anos.
Eu não ligo para essa Salvador. É a do axé, do trabalho, da mudança das lâmpadas brancas de vapor de mercúrio para as vermelhas de vapor de sódio. A Salvador de que eu gosto é a dos anos 70, aquela que apenas entrevi, quando a Barra era uma espécie de pequeno paraíso na terra e a vida era mais doce, como um vento de fim de tarde fazendo cafuné em no seu cabelo na rede. Há outro blog dedicado a esse tempo, bem mais interessante.
Esse eu também não vivi, porque não tinha idade; mas foi nesse clima, nesse modo de ver o mundo, que fui criado e virei gente.
Eu lembro do Parquinho, na TV Itapuã/Tupi, apresentado pela Tia Arilma, que depois iria apresentar o Recreio nas tardes da TV Aratu/Globo (e garantiria a maior audiência no horário para a Globo em todo o Brasil). Era uma coisa bisonha que eu detestava, uma espécie de show de calouros em que crianças esquisitas e sem respeito próprio iam dublar músicas de sucesso, dançar porcamente as danças burlescas da época com a desculpa canalha da inocência infantil, e se submeter ao ridículo da plateia. Foi lá que Mara Maravilha começou — na época ainda “Miss Mara”, provavelmente inspirada em uma cantora da época, Miss Lene, que hoje deve cantar forró em algum lugar do Ceará ou casou com um gringo qualquer e se foi do Brasil dando-lhe merecida banana. Havia também outra cantora mirim, uma menina chamada Geisa, que chegou a lançar um compacto nacional e apareceu no Fantástico em 1982. Geisa saiu na frente rumo ao sucesso, mas Mara se revelou mais permanente, pelo menos até aceitar Jesus e virar mais uma maluca que fica arranjando nigrinhagem por aí — e mesmo nisso ela é baiana da gema.
Parquinho bom, mesmo, era o parquinho de seu Roque, que ficava no Campo Grande e depois se mudou para o Tororó; depois, quem se mudou fui eu. Não sei, na verdade, se ele era o dono ou apenas o gerente; mas era seu Roque que nos deixava andar um pouco mais nos brinquedos, como o autopista e o carrossel, e ninguém pode ser mais dono do que isso, não para mim.
Turistas que hoje vão até a Ribeira se deslumbrar com sorvetes de frutas ou tapioca não conhecem o verdadeiro sabor de um sorvete: a melhor sorveteria da cidade era a Primavera, com loja no Relógio de São Pedro (havia também uma na Joana Angélica, que eu não conhecia ainda) e uma kombi que, ao menos nos fins de semana, batia ponto no Campo Grande, em frente ao Hotel da Bahia; era também no Campo Grande que íamos à Nubar, originalmente destinada aos ingleses e que naquela época recebia damas chiques para o chá das cinco, mas também a nós. Hoje, imagino que o fato de sermos todos lourinhos ajudava.
Uma das entradas do Clube Baiano de Tênis, na 8 de Dezembro, ficava perto de minha casa; eu e Jailton entrávamos ali dizendo que íamos chamar um primo meu. E quando vinha passar férias em Aracaju eu aproveitava para dizer que aqui eles tinham o Clube Sergipano de Conga.
Assisti à “Bela Adormecida” da Disney no cine Astor — que depois de anos exibindo apenas filmes pornográficos, provavelmente em vídeo, fechou definitivamente há algum tempo — e a Superman II no Liceu — que fechou e pegou fogo, ou pegou fogo e fechou, não sei direito. Mas os meus cinemas, mesmo, eram o Tamoio, o Bahia e, principalmente, o Guarani.
Fui ao cinema sozinho pela primeira vez assistir a um filme de Terence Hill e Bud Spencer chamado “Nós Jogamos com os Hipopótamos” em 1980, no cine Guarani, que menos de um ano depois viraria Glauber Rocha; peguei um ônibus no fim de linha da Graça, que na época ficava na rua Catarina Paraguaçu, ao lado do então Campo da Graça, palco de grandes glórias do Bahia mas que já se preparava para dar origem a dois edifícios, Wimbledon e Forest Hills, e desci na praça Castro Alves; naquele dia de dezembro descobri que podia viver nos cinemas nos sábados à tarde.
Muita gente que estranha uma criança de 9 anos indo sozinha a um cinema me justifica pensando que talvez aquela fosse uma Salvador diferente, em que andar sozinho pela cidade não era uma sentença de morte assinada e reconhecida em cartório. Eles estão errados. Não era a cidade, que Salvador nunca foi flor que se cheirasse. Nós é que éramos diferentes.
Lembro quando a discoteca Maria Phumaça, na Barra, pegou fogo; eu passava em frente a ela todo dia, voltando do colégio. Ela me parecia lindíssima, com seu trenzinho na frente. Queria crescer para poder entrar ali, mas ela não me esperou. Quenga.
Havia pelo menos duas lojas da Brink Bem, uma na 8 de Dezembro e outra na esquina da Marques de Leão com a Miguel Burnier. Eu frequentava as duas.
Mas há poucas lembranças como a do jingle de abertura da TV Aratu:
Bom dia, bom dia, Bahia do meu coração
Que tenhas um dia tranquilo assim
Com a graça de Deus e o Senhor do Bonfim
Canal 4 está chegando em seu lar
TV Aratu está no ar
Bom dia, bom dia, Bahia.
E o final clássico:
TV Aratu, canal 4
Salvador, meu amor, Bahia
Eram tempos diferentes, porque a TV Aratu, na época retransmissora da Globo, saía do ar no início da madrugada. E quanto voltava, primeiro era com um color bar; depois vinha o jingle, e finalmente uma lista da programação daquele dia. E no entanto a sua programação era melhor que a da Globo do Rio, porque já nos anos 70 ela tinha o Corujão da Madrugada, e exibia três ou quatro filmes seguidos, sem intervalos comerciais, nas madrugadas do sábado para o domingo. Durante décadas achei que aquilo era uma exclusividade de Salvador. Mas São Paulo tinha uma sessão semelhante, chamada Comando da Madrugada.
Havia iguanas nas árvores da Piedade, e lembro exatamente da primeira vez que os vi porque entrei em pânico — para a diversão dos lambe-lambes que funcionavam ali, bando de filhos da puta que não entendem o que é ter 6 anos e se imaginar na selva sem o Tarzan para te proteger. Me disseram que elas ainda estão lá, mas deve ser mentira, deve ser safadeza de baiano tentando engrupir turista, porque eu não vejo mais.
Eu achava que os Harlem Globetrotters eram brasileiros porque se apresentaram no Balbininho, que não existe mais. Eu não sabia que os negões do Harlem jamais dariam nem para a saída na Liberdade.
Fui ao aniversário de 25 anos da Publivendas no Teatro Maria Bethânia. Hoje a Publivendas se chama Morya e o teatro se tornou primeiro um restaurante, depois um bingo e hoje é um hospital ou coisa parecida. No palco havia uma mesa enorme com frios, comidas e comidas e comidas, e enquanto as pessoas confraternizavam e falavam mal uns dos outros eu comia. É a lembrança mais antiga que tenho de casquinha de siri, mas naquela época eu preferia lagosta, e era ela que eu atacava; continuo preferindo, a propósito.
Assisti à chegada da TV Bandeirantes na Bahia e a única coisa interessante nela, o programa de Daniel Azulay, me cansou muito rápido.
Estudei no ISBA, o que era mais que adequado: quem nasceu de frente para a praia tinha que estudar de frente para a praia. E quando morava na Barra, nos períodos em que não ia no ônibus da escola ou que meu tio Romário — que, bom vagabundo, estudou no Pio X, em uma casa da Euclides da Cunha que não existe mais há muito tempo— ia me pegar, eu vinha para casa nos ônibus da Vibemsa, que não eram verdes ainda nem tinham desaparecido para dar lugar a três empresas diferentes; eram ônibus com motor traseiro e eu gostava de ir em pé, ao lado do motorista, olhando o caminho. Acho que aprendi com eles o tempo da marcha, e talvez seja por isso que, tantos anos mais tarde, eu me divertia trocando marchas sem precisar pisar na embreagem.
E no período em que morei em Itapuã, nada pode superar a volta para casa, os mais de 20 quilômetros ao longo da praia, vendo a lua nascer enorme e afogueada no mar, ouvindo “Bandolins” ou “Beleza Pura”.
Mas lembrar tanto do ISBA, que foi demolido dia desses para dar lugar a mais um prédio estúpido, é uma injustiça com o Pequenópolis onde estudei depois, porque foi no Pequenópolis que peguei num peitinho pela primeira vez, e isso é inesquecível quando se tem 10 anos; foi um acidente, mas ali eu senti o gosto do sangue. Essas coisas, como se sabe, viciam que é uma coisa.
Olha, o tempo em que eu era baiano é que era bom.