Um texto de Umberto Eco andou circulando internet afora esses dias:
É tolice pensar que você precisa ler todos os livros que compra, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que jamais serão capazes de ler. Seria como dizer que você deveria usar todos os talheres, copos, chaves de fenda ou brocas que comprou antes de comprar novos.
Há coisas na vida das quais precisamos sempre ter muito, mesmo que vamos usar apenas uma pequena porção.
Se, por exemplo, considerarmos os livros como remédio, entendemos que é bom ter muitos em casa em vez de poucos: quando você quer se sentir melhor, você vai até o “armário dos remédios” e escolhe um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que você sempre deveria poder escolher entre várias escolhas.
Aqueles que compram apenas um livro, leem apenas aquele e depois se livram dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade de consumo aos livros, ou seja, consideram-nos um produto de consumo, uma mercadoria. Aqueles que amam os livros sabem que um livro é tudo, menos uma mercadoria.
Eco é o sujeito que entendeu que a internet deu voz aos imbecis, constatação reafirmada a cada nova dancinha de Tik Tok, a cada comentário analfabeto. Depois de ler esse texto, posso dizer que também permitiu a pessoas brilhantes como ele dizerem sem pejo algumas bobagens de vez em quando.
Claro que num mundo onde a mera posse de livros significa o ingresso instantâneo e não questionado numa certa elite intelectual,ou na impressão dela, um bocado de gente elogiou esse texto, e o compartilhou. Todo mudo ama livros, eu só não entendo por que as tiragens nacionais são tão pequenas.
Há alguns anos eu provavelmente seria um deles. Porque ainda gosto dos danados, me acostumei a eles, tenho um número razoável de exemplares e gosto de saber que eles estão lá. Tenho, inclusive, a vaidade de eventualmente mostrá-los, e já coloquei uma das paredes como foto de capa no Facebook, e de vez em quando coloco no Instagram os que se empilham já sem esperança em minha cabeceira. Em minha defesa posso argumentar que isso é só uma consequência, que eu gosto mesmo do objeto, gosto do papel, do cheiro de tinta, do cheiro do livro novo e do cheiro do livro velho, da sensação de virar a página, de recolocá-lo na prateleira e olhar para ele com orgulho — mas, para mim, nada disso supera a sensação de terminar de ler um livro brilhante, e é isso que, infelizmente, me diferencia de Eco.
Ele acusa as pessoas que leem um livro e então se livram deles de considerarem-no uma mercadoria, apenas. Isso é loucura elitista. É o contrário, na verdade.
Livros existem para transmitir conhecimento. A ideia de livros válidos apenas por sua posse, o fato de olhar a estante e se sentir bem por isso é que é vê-lo como mercadoria, porque não diz respeito ao seu valor real, e sim ao que ele representa, ao valor que o objeto adquiriu numa soceidade que fala mais do que lê. Mas seu valor real se mede depois que você decodifica aquelas letras mortas impressas em suas páginas. Na sua estante, eles só servem para mostrar aos outros que você tem ao menos um verniz de cultura, e que aparentemente reconhece o valor intrínseco daqueles objetos enfileirados. É aquela deturpação capitalista que faz uma primeira edição de um bom livro valer milhões a mais que um fac-símile.
Servem para dar trabalho, também.
Só ama de verdade esses objetos infernais quem tem poucos. Uma biblioteca não só acumula poeira, fuligem e, se você mora perto do mar, salitre que um dia você tem que limpar. Eles também se tornam invariavelmente a morada do Diabo. Guimarães Rosa não sabia de nada. Não é nos detalhes que o Diabo mora, é nas estantes — ou pelo menos é nelas que se maloca um saci escroto que impede que as estantes que você arrumou hoje, depois de dias maltratando suas costas, fiquem arrumadas por nem mesmo uma semana. Eu sou um cético, não acredito que livros tenham vontade e movimento próprios. Mas eu os vejo aparecendo do nada, e se multiplicando em outros lugares como gremlins endemoniados o tempo todo, o tempo todo.
Se você tem algum juízo, uma hora você se pergunta se isso vale a pena.
Como eu disse antes, já pensei assim, já tive esse orgulho. Os amigos de minha filha, quando vão lá em casa, sempre olham impressionados as paredes cheias de livros, porque bibliotecas já não são tão comuns assim, pelo menos fora do ambiente acadêmico, e mesmo nele. A mim não é tanto o volume que orgulha, mas sim sua variedade, o fato de ter sido construída aos poucos ao longo de algumas décadas, refletindo interesses bem diversos, de história a culinária, de vela a literatura húngara. Mas de uns anos para cá mesmo esse orgulho se desmilinguiu em tédio. Deve ser a velhice. E, talvez, a compreensão das bobagens que fiz na vida.
Quando a Amazon surgiu, ou melhor, quando finalmente tive dinheiro para comprar livros na Amazon, eu comprava dezenas de uma vez para economizar no frete.
É a pior coisa que se pode fazer, e me arrependo hoje de ter feito isso, tantas vezes. Essa é quase uma sentença de morte: você condena a maioria deles a não serem lidos nunca, porque antes de terminar o quinto ou sexto você já está comprando mais cinco, mais dez, e a leitura se transforma em uma espécie de derby de demolição, um atropelando o outro, exigindo primazia na leitura, gritando palavrões humilhantes para você, incompetente que não dá conta de tudo aquilo.
Para piorar, qualquer pessoa honesta sabe que existem quatro tipos de livros em suas estantes. Os que você já leu e não pretende reler; os que você leu e sabe que vai reler; os que você ainda não leu mas pretende ler; e, finalmente, aqueles que você não leu e a essa altura entendeu derrotado que não vai ler nunca, porque o tempo é cada vez mais escasso, é o trabalho gritando seu nome, a garrafa verde de cerveja flertando com você, a moça sussurrando passando a língua em sua orelha. O primeiro e o último tipo de livros são realmente desnecessários. Você os mantém por vaidade. É quase como ter mulher para usar ou para exibir: só broxas e enrustidos fazem isso, e Vinícius já avisava que você vai ver um dia em que toca você foi bulir.
Então, não, não tem como concordar com o nome da rosa. Nego diz isso é pra aparecer.
Eu não tenho nenhum apego a livros físicos, vendi vários, doei outros, mantive alguns que não consegui substituir por versões digitais. O que eu faço questão de manter fisicamente basicamente são atlas e dicionário, fora isso se eu encontrar digital pra mim tá resolvido.
Ler no kindle num local como o trabalho, por exemplo, ainda traz uma vantagem que percebi na primeira semana que comprei o kindle: não aparece nenhum chato interrompendo com conversa de “o que você tá lendo?”, “ah, você gosta de tal autor/tema?”. É como se tivesse mexendo no telefone: ninguém liga nem tenta se entrosar me arrastando pra uma conversa tediosa onde sou obrigado a tentar manter um sorriso educado.
Tem um Kindle descarregado na minha cabeceira. É (ou era) de minha filha. Nunca me interessei. Ainda prefiro ler nas árvores mortas, mesmo…
Rafael:
Esse negocio do livro estar lá e você poder pegá-lo na hora que precisa lê-lo, ou relê-lo, é a coisa que mais me conforta na vida. Faço sempre isso. É o meu remedio.
E os que estão lá só para fazer número, aqueles que você no fundo sabe que não vai ler nem reler?