Conversando com duas amigas jornalistas dia desses, ambas chegando aos 40, uma formada na Federal e outra em uma particular, pergunto o que achavam de “A Regra do Jogo”, de Cláudio Abramo,
Elas nunca tinham sequer ouvido falar. Nem do livro, nem do autor.
Foi um choque. Até então, me parecia inadmissível que um jornalista não conhecesse esse livro, ou “Minha Razão de Viver”, do Samuel Wainer. Agora tenho a impressão de que o único jornalista brasileiro que conseguiu escapar da sina do papel para embrulhar peixe no dia seguinte é o Assis Chateaubriand, porque seu livro foi um fenômeno de vendas e sua vida extrapolava em muito o jornalismo.
Agora me pergunto como é que “A Regra do Jogo”, publicado em 1988, saiu do currículo de leituras das faculdades de jornalismo — se é que ele já esteve em alguma, dúvida que nunca tive mas agora me assola. E a única resposta que posso dar é a hipóteses de que o mundo universitário se afundou em uma mediocridade tão avassaladora e tão à direita que um livro como esse é considerado na melhor das hipóteses perigoso, ou meramente desnecessário, o que é mais provável.
“A Regra do Jogo” é um dos livros mais importantes sobre jornalismo lançado no Brasil — junto com o “Manual do Peninha”. Traz um longo depoimento autobiográfico de Cláudio Abramo em sua primeira parte, centrado especialmente nas grandes reformas editoriais que fez n’O Estado de S. Paulo e na Folha de S. Paulo, selecionado a partir de algumas entrevistas; na segunda parte, suas visões sobre o jornalismo na segunda. Tudo isso entremeado por uma seleção de artigos escritos ao longo de mais de 30 anos.
Abramo era o sujeito que disse que a ética do jornalismo é a ética do marceneiro — esse é, aliás, o subtítulo do livro. Não existe uma ética específica para um jornalista. Ele não tem nada de especial, nada de diferente em relação a outros cidadãos; como um marceneiro, não pode mentir, não pode roubar. O resto é besteira, é conversa para boi dormir. Ele resume em uma linha o que as universidades estendem por uma matéria que dura um semestre inteiro. O curso de Direito também tem uma disciplina chamada Ética, mas acho que tal matéria, em tal curso, deve ser um chiste, um respiro humorístico, uma brincadeira que fazem com os alunos que precisam estudar para a prova de Teoria do Processo.
Claudio Abramo foi uma lenda da era de ouro do jornalismo brasileiro. Era daqueles últimos humanistas que o século XX e o refinamento do sistema de formação de mão de obra enterrou em universidades e repartições públicas: um trotskista com quase nenhuma educação formal, mas dono de uma cultura fenomenal e extremamente abrangente porque criado em um ambiente favorável a isso.
Quando “A Regra do Jogo” foi publicado, ainda havia o tal “Segundo Mundo”, e sua existência balizava o pensamento ocidental.
Um ano depois, no entanto, o mundo socialista começou a ruir, e a vitória final do capitalismo e o fim da história foram proclamados. O pensamento marxista, até mesmo a crítica dos processos de formação de riqueza começaram a sair de moda. A esquerda, de modo geral, incorporou a derrota, passou a trabalhar dentro do escopo neoliberal e aderiu ao identitarismo como disfarce inadequado para a sua capitulação. Abandonou os temas estruturais e se perde em loops infinitos sobre a ressignificação de palavras, sobre identitarismos, masturbação sub-intelectual cada vez mais rasa e mais delirante, bobagens que abriram uma autobahn para a direita, hoje mais capaz de compreender a realidade e estabelecer um diálogo com o povo.
Ao mesmo tempo, o academicismo cada vez mais hermético, pequeno e autorreferente se consolidava nas universidades, reforçando progressivamente a noção de universidade como formadora de mão de obra cada vez menos especializada e geradora de um excesso de conhecimento inútil ou desnecessário — a Universidade Federal de Sergipe tem um curso chamado “Ciências da Religião”, e sobre isso eu me recuso a falar. Mais recentemente, a ascensão da extrema-direita nas universidades de todo o país, inclusive nos departamentos de ciências humanas, ocupando o espaço que essa “nova esquerda” abriu, consolidou um pouco mais esse processo, ameaçando a universidade no que ela tem de mais necessário para a sociedade.
Num ambiente desses, um livro como “A Regra do Jogo” é obra a ser evitada.
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Como disse há algum tempo Jeff Jarvis, do BuzzMachine, um dos pioneiros da blogoseira, “Informação confiável, de qualidade, é cada vez mais o reduto dos poucos privilegiados que podem pagar por isso, enquanto a desinformação sempre será farta e gratuita”.
O que escapa a isso é caça-cliques. Um passeio pelos portais de notícias é quase um desfile de idiotices, de notícias irrelevantes encaixadas por assessorias que aproveitam a busca desesperada por visualizações para vender seus interesses.
É dentro desse contexto que as universidades têm criado um paradoxo curioso, e assustador. Se tornaram, ao menos em parte, validadoras de ignorância, especialmente nas áreas de humanas.
Há uma cada vez maior turba de meninos que saem das universidades sabendo o básico sobre o nicho de conhecimento em que resolveram seguir carreira Publicidade, jornalismo, engenharia de alguma coisa menor. O fato de terem um diploma, de terem avançado no ensino formal e ao menos em tese dominarem uma área de conhecimento que o resto do mundo não domina, acaba validando a sua ignorância sobre quase todo o resto.
Exagero, claro, mas é como se as universidades, cada vez mais, formassem autistes savants.
Se alguém se pergunta como é que as tias do zap nasceram, como o bolsonarismo se espalha pelas redes, como o terraplanismo se tornou um fenômeno a ser notado, talvez esteja aí a sua resposta.
Um dia, já não lembro quando, o jornalismo sentia que tinha uma missão civilizacional a cumprir, mais ainda do que informar. Mas aqueles axiomas que o definiram, que definiram o orgulho que jornalistas pareciam ter pelo papel que cumpriam no mundo, hoje são — quando muito — desculpas. Hoje sua missão é sobreviver, é garantir que o público pague as contas dos portais, e as perspectivas são muito ruins. E ao ver que um pessoal que entrou na universidade no final dos anos 90 já não sabia quem era Claudio Abramo, nem conheciam um livro lançado dez anos antes, eu entendo um pouco mais como se chegou a isso.