Sobre o identitarismo

O Marcus fez um comentário ao último post, reclamando do que parece considerar ataques ao identitarismo e, por tabela, à própria ideia de luta das minorias.

Justo, mas há alguns problemas ali.

O primeiro problema do identitarismo está resumido na segunda frase do comentário do Marcus:

O que chamam de “identitarismo” é apenas a luta de minorias para ser respeitadas, ou, em casos extremos, não ser mortas. Para negros, gays, lésbicas, transexuais, mulheres, pessoas com deficiência, “identitarismo” é a luta por ser uma pessoa completa.

Não é. A impressão de que o identitarismo é a grande representação moderna da luta social de minorias, toda ela, mascara o fato de que na verdade é apenas um segmento pequeno, míope e bastante equivocado de uma luta bem maior.

O problema central do identitarismo é que ele não diz respeito a transformação social real, que necessariamente é algo sistêmico e amplo. Diz respeito a autoestima, a reconhecimento, ainda menos que conquistas para grupos específicos. A identidade, como diz seu nome. É um modo de ver o mundo e reivindicar direitos que, como lembrou o Leo Bernardes, nasceu nas universidades americanas, nas condições específicas de uma sociedade muito mais rígida que a brasileira — e não por acaso, lá é chamado de “cultura woke”, o que denota seu caráter obviamente oriundo da cultura religiosa puritana americana, quase messiânico; o sentimento que deu origem ao identitarismo é o mesmo que nos legou a Lei Seca — e que uma elite acadêmica brasileira, profundamente influenciada pelos Estados Unidos e esvaziada ideologicamente, tenta importar para cá, trazendo junto inadequações e desconsideração de contextos.

Esse trecho de “O Progressista de Hoje e de Amanhã”, de Mark Lilla (lembrando que nos EUA “liberal” significa “progressista”), ajuda a colocar as coisas em perspectiva:

A grande abdicação liberal começou na Dispensação Reagan. Com o fim da Dispensação Roosevelt e o surgimento de uma direita unificada e ambiciosa, os liberais americanos se viram diante de um sério desafio: desenvolver uma nova visão política do destino do país, adaptada às novas realidades da sociedade americana e aprendendo com os fracassos de velhas atitudes. Isso os liberais não souberam fazer. Envolveram-se na política identitária, perdendo o sentido do que compartilhamos como cidadãos e do que nos une como nação. Uma imagem do liberalismo de Roosevelt e dos sindicatos que o apoiavam era a de um aparto de mãos. Uma imagem recorrente do liberalismo identitário é a de um prisma que reflete um único raio de luz, produzindo um arco-íris. Isso diz tudo.

A política identitária certamente não representa nada de novo na direita americana. O mais impressionante durante a Dispensação Reagan foi o desenvolvimento da sua versão de esquerda, que acabou se tornando a doutrina seguida por duas gerações de políticos, professores, jornalistas, militantes liberais e filiados ao Partido Democrata. Não foi um acidente histórico. Pois o fascínio (e em seguida a obsessão) pela identidade não desafiava o princípio fundamental do reaganismo, o individualismo: ele o reforçava. A política identitária de esquerda se tratava, a princípio, de grandes grupos de pessoas — afro-americanos, mulheres — que buscavam reparar grandes erros históricos se mobilizando e se valendo de nossas instituições políticas para assegurar seus direitos. Mas nos anos 1980 essa política cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades. Seu principal resultado foi fazer os jovens se voltarem para a própria interioridade em vez de se abrirem para o mundo exterior. Isso os deixou despreparados para pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo — especialmente a difícil e nada glamurosa tarefa de persuadir pessoas muito diferentes de si a participarem de um esforço comum. Todo progresso da consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal, sem a qual nenhuma visão do futuro pode ser imaginada.

(…)

O paradoxo do liberalismo identitário é que ele paralisa a capacidade de pensar e agir da maneira adequada para conseguir o que se diz querer. Vive hipnotizado por simbolismos: conquistar uma diversidade superficial nas organizações, recontar a história de modo a deslocar o foco para grupos marginais e não raro minúsculos, inventar eufemismos inócuos para descrever realidades sociais, proteger os olhos e os ouvidos de adolescentes acostumados a filmes de terror contra qualquer encontro perturbador com pontos de vista alternativos. O liberalismo identitário deixou de ser um projeto político e se materializou num projeto de evangelização. A diferença é a seguinte: evangelizar é dizer verdades ao poder. Fazer política é conquistar o poder para defender a verdade.

Não pode haver política liberal sem uma consciência de coletividade — do que somos como cidadãos e do que cada um de nós deve ao outro. Se os liberais esperam algum dia recapturar o imaginário dos Estados Unidos e se tornar uma força dominante em todo o país, não bastará que sejam melhores do que os republicanos em inflar o ego do mítico trabalhador braçal. Eles deverão oferecer uma visão do nosso destino baseada numa coisa que todos os americanos, de qualquer condição, de fato compartilhem. E essa coisa é a cidadania.

Cidadania é a palavra-chave aqui. A luta identitarista não é mais por direitos comuns, por igualdade. É sobre ser simplesmente ouvido num mundo midiático em que você só existe se existe nas redes sociais; daí a patacoada de brigar pelo uso de turbante, daí a criação de um conceito deletério como “apropriação cultural”, daí a transformação lamentável de um conceito inclusivo e significativo como o “lugar de fala” em instrumento de exclusão e reserva de mercado por essa minoria extremamente vocal. É o mesmo pessoal que reivindica o candomblé como eleeneto central de sua nova identidade mas fecha os olhos ao fato de que a maioria dos macumbeiros hoje são brancos: os negros estão é nas igrejas evangélicas, algo terrivelmente incômodo para eles, e que mostra ao menos uma certa desconexão com a realidade.

(Nos EUA foi pior. Sem a plasticidade cultural luso-brasileira, os negros americanos tiveram sua identidade cultural totalmente destruída — um pouco menos na Louisiana francesa, claro. Daí que em sua busca por uma identidade uma parte resolveu se reinventar no islamismo, algo que nunca fez parte da identidade cultural dos africanos nos EUA.)

Por isso é tão importante a “palavra”, por isso “ressignificar” é tão central em suas políticas. Foi no universo acadêmico, frequentado por uma elite cultural que vive não da ação, mas da palavra, mesmo que vazia e direcionada a ouvidos surdos, que essa abordagem cresceu e se multiplicou. Como digo aqui há uns 20 anos, esse pessoal parece achar que basta chamar uma pessoa de LGBTQIAPN+ para impedir que um homofóbico lhe desça a porrada.

Em uma esquerda que se viu órfã de um modelo viável de transformação a ser apresentado, com a queda dos regimes socialistas (e sem a capacidade de investigar e tentar entender o modelo chinês), foi fácil se fragmentar em disputas pequenas, localizadas, de pequenos grupos. O problema é que se tornou pequeno demais, e deixou de falar para a sociedade.

Uma matéria antológica na New Yorker, de 1916, mostra bem no que isso resultou. A matéria, publicada antes das eleições, acompanhava a campanha de Hillary Clinton.

Ali, George Packer já apontava o que havia de errado na esquerda americana: nas últimas décadas, o Partido Democrata havia se elitizado e assumido um discurso aparentemente voltado exclusivamente para as minorias: mulheres, negros, gays. Enquanto isso, a classe média branca, empobrecida pela desindustrialização do país e pela crise no setor de serviços causadas por gigantes online como a Amazon, se via abandonada pelos democratas, que se dirigiam às minorias e simplesmente ignorava essa parcela da sociedade. Não se trata de perda de privilégios, e sim de direitos: desempregada, em meio a uma epidemia de opioides que reflete a falta absoluta de perspectivas, ela se via numa situação não muito confortável, forçados a escolher entre o Partido Democrata aliado ao rentismo globalizado, e um lado, e o Partido Republicano aliado à elite produtora nacional do outro.

A escolha era óbvia. Resultado: perda de direitos por brancos, mulheres, negros, gays. Como diria Dilma, perdeu todo mundo. É o que costuma acontecer quando se perde a ideia de conjunto.

Sem pensar muito, posso mencionar dois exemplos graves da cegueira e estupidez dos identitaristas. Um já foi abordado aqui: um jogador de vôlei fez cara feia para a ideia de um “Superman gay”, as pessoas caíram matando em cima dele e ele perdeu o emprego. Por essa perseguição, se transformou em deputado — e agora não se restringe a dar opinião, agora ele vota projetos contra gays, contra a igualdade racial, contra o direito ao aborto.

O episódio lembrou o quanto há de autoritário e totalitário nesse movimento que se pretende exclusivo. O que chamam de cultura de cancelamento é mais que uma resposta legítima a opiniões contrárias. Em nome do respeito, da defesa de “ideias certas”, tolhe não apenas manifestações racistas, mas também quem tem uma visão levemente diferente da deles.

O outro exemplo é ainda mais complicado. Há cinco anos, a historiadora Lilian Schwarcz resenhou um espetáculo da Beyoncé para a Folha de S. Paulo. O tom da resenha era elogioso, mas ela fez algumas reparações ao final. E disse que a Beyoncé precisava “entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”

O mundo caiu. Schwarcz levou pancada de todos os lados do movimento identitário, lhe negando, para começar, o tal “lugar de fala” — no que parece ser uma manifestação clara de uma certa cultura de gueto, de um sectarismo tosco e infantil.  Tudo isso culminou em um pedido de desculpas, em que Schwarcz reconheceu o seu lugar de branca e, portanto, impossibilitada de dar sua opinião sobre racismo ou mesmo fazer reparos estéticos ao que se pretende uma obra de arte. Foi o pedido de desculpas mais indevido que já vi.

Eu não conheço a obra de Lilia Schwarcz. Li apenas um de seus primeiros livros, “Retrato em Branco e Preto”, e isso há mais de 30 anos. Tampouco vi o tal espetáculo. Pela descrição, era uma adaptação tipicamente hollywoodiana, com todos os seus excessos, de “O Rei Leão”.  Se for isso mesmo, era simplesmente uma merda — ruim em sua origem, ruim em sua execução. Negritude não redime a breguice hollywoodiana. Mas dizer isso, para os identitaristas, parece ser o equivalente a assinar a ficha de filiação à Ku Klux Klan.

Nesse affair, infelizmente, não há inocentes. Imagino que a Schwarcz tenha pedido desculpas porque é esse o seu tema de estudo, é para esse público que ela escreve e publica livros. É no ambiente tóxico da Academia que ela circula. Na minha opinião, ela foi simplesmente covarde e pensou no leitinho das crianças — mesmo sendo uma das donas de uma das maiores editoras do país.

Mas esse clima de autoritarismo, de policiamento do pensamento é, talvez, o mais assustador. Alguns anos atrás o Itamar Vieira Júnior pediu a cabeça do Leandro Narloch na Folha de S. Paulo. Ele não queria ver opiniões como a dele no jornal, o que ilustra a dificuldade extrema desse pessoal de conviver com a pluralidade de pensamento, ou mesmo de combater ideias divergentes. Essa vocação para calar os outros é preocupante.

Mais grave, no entanto, é a tentativa de revisão da história. O identitarismo nos legou duas heroínas no Livro de Aço: Dandara e Luiza Mahim. O fato de nenhuma das duas ter existido — no caso de Mahim, mãe de Luiz Gama, não existe como heroína, já que não há nenhum indício de que tenha sequer participado da revolta dos Malês, que nos últimos 40 anos adquiriu uma proeminência talvez não muito justa — não importa para esse pessoal, porque o que conta, mesmo, é a fantasia adequada. Precisam tanto de uma simbologia que se adeque ao seu discurso que, então, a realidade é o que menos importa. Menos mal que Luiz Gama — este um verdadeiro gigante, um dos maiores de nossa história — também esteja no tal Livro.

Vem daí também a insistência em definir a escravidão brasileira como tão ruim ou pior que a americana.

Os Estados Unidos receberam cerca de 400 mil escravos africanos. Quando da Emancipação, havia 4 milhões de escravos e 490 mil negros livres, 11% da população negra no país. A verdade é que, em 1860, a “peculiar institution” não estava sob risco imediato nos estados escravagistas; o que se discutia era sua expansão para os novos territórios. Lincoln só assinou a Emancipação depois de bem adiantada a Guerra de Secessão, e fez isso para conseguir mais soldados e mais apoio no território Confederado

O Brasil traficou quase 6 milhões de escravos da África. Em 1872, havia 1,5 milhão de escravos e 4,2 milhões de negros livres. O número de escravos desabou ainda mais rapidamente nos 16 anos seguintes, na esteira do maior movimento popular da história até então, e da certeza de que a Abolição era inevitável.

Pode não ser melhor ou pior; não acredito que seja possível qualificar um sistema escravagista como melhor ou pior que outro. Mas é preciso ser muito estúpido para achar que essa diferença de números, e a presença de uma população negra livre e numerosa, ainda que absolutamente oprimida pelo racismo e pela estrutura socioeconômica do país, não geram uma dinâmica de relações sociais muito mais complexas que aquelas condicionadas pelo binarismo americano. No mínimo, inviabilizam qualquer tentativa cega de aplicar o mesmo receituário americano aos problemas nacionais.

Eu considero que uma das grandes contribuições brasileiras à humanidade é a miscigenação generalizada — “Que se misture tudo!”, dizia Gerônimo. É aterrorizante ver grupos identitaristas chamando, hoje, essa miscigenação de genocídio. Não é à toa que eles insistem em colocar na boca de Gilberto Freyre a expressão “democracia racial”, que na verdade foi dita por militantes negros americanos ao verem no Brasil uma situação social muito diferente da que conheciam.

Falando nisso, e de volta a Lilia Schwarcz, mais recentemente ela publicou um tweet em que diz exatamente isso, que a miscigenação racial neste país é o resultado de estupros. É um pressuposto que tem menos base histórica do que adequação forçada à narrativa dominante de um tempo. Não se trata nem mesmo de entender qualquer relação interpessoal entre senhores e escravos como “estupro estatutório”, devido à estrutura de poder. Mas de negar a variedade e a complexidade dessas relações em uma estrutura de dominação, negar inclusive protagonismo aos milhões de negros livres que já existiam antes da Abolição e que, sim, tomavam o que consideravam ser as melhores decisões.

Nessa moda identitarista de tomar como ofensa pessoal quaisquer posições em relação a grupos, mesmo aqueles perdidos no tempo, eu poderia dizer que a honra da minha família foi atacada pela Schwarcz. Eu, como grande parte dos brasileiros, descendo de escravos e de senhores de escravos. No ramo familiar que posso rastrear mais facilmente — aquele eminentemente branco e “fidalgo” —, meu pentavô mereceu um artigo nos jornais de Sergipe e do Rio por manter escolas para ensinar os filhos dos escravos a ler e por mantê-los em seu engenho mesmo depois de velhos; seu neto, meu trisavô, casou com a filha de um de seus ex-escravos. Pelo menos nesse ramo, eu posso garantir que não houve estupro nenhum.

O Marcus finaliza dizendo que o que tenho escrito sobre o assunto lembra a ele Wilson Gomes e Pablo Ortellado. Nunca li nada do Ortellado, mas conheço um pouco do Wilson Gomes. Não creio que o Marcus tenha dito isso como elogio, mas, sinceramente, pelo menos no que se refere ao Gomes não acho que eu esteja em má companhia.

Isso me lembrou outro sujeito, seu colega de UFBa, que conheço um pouco melhor: Antônio Risério. Seu “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, em que denuncia o binarismo artificial que os identitaristas tentam aplicar à sociedade brasileira, é um bom livro, e obviamente é execrado por esse pessoal. Já faz algum tempo que Risério vem sendo atacado com força pelos setores identitários, e eu tenho notado um fenômeno extremamente previsível: Risério tem se aproximado da direita, até por uma questão de sobrevivência e resistência aos ataques.

Ou seja, o identitarismo apenas divide, reduz. Cria guetos, justamente aqueles que devia tentar extinguir. Ao ver o mundo pelo seu umbigo e com as lentes erradas, focando no que é acessório, enfraquece o movimento social, reduz à caricatura, gera apenas fraqueza. Não é um bom caminho.

Mas, lá no fundo, este velho marxista-leninista é um otimista. Como todo bom materialista dialético, ainda tenho a esperança de que dessas contradições surja uma síntese que expurgue a palhaçada exagerada dos identitaristas. Não sei se viverei o suficiente para ver esse dia. Mas isso não quer dizer que eu vou fechar os olhos para sua estupidez.