Primeiro foi meu identitarista preferido, Lelê Teles, que me mandou um vídeo de Instagram em que um negão reivindicava a paternidade negra do rock and roll.
Minha primeira reação foi de incredulidade: “Peraí: esse pessoal criou o jazz — o jazz, velho, o jazz. A forma superior de música popular. A música erudita do século XX — e fica brigando pela paternidade de uma música vagabunda como o rock?”
Não vi o vídeo inteiro, que eu tenho mais o que fazer, ainda que seja nada.
Depois apareceu para mim no YouTube um vídeo em que uma narradora de voz monocórdia e jovem faz um apanhado da história do rock para dizer mais uma vez que o rock é invenção de negros, como sempre roubados por brancos saudosos dos tempos da escravidão.
Mães negras americanas deveriam registrar seus filhos como Rock porque aí, pelo visto, os pais não iriam sumir — ah, eu sei que não deveria ter escrito isso, não posso fazer essa piada porque ela só pode ser feita por negros americanos e eu não tenho lugar de fala. Mas sabe como é: foda-se.
A verdade é que eu nunca tinha pensado demais nisso. Para mim e para o resto do mundo ajuizado, o rock é uma criação progressiva e coletiva, como absolutamente toda e qualquer linguagem artística. Um a um, cada músico, branco ou negro, foi colocando seu ingrediente pessoal numa enorme sopa de pedra feita a partir de ritmos diversos, negros como o rhythm and blues e brancos como country & western.
(Escrevi “brancos e negros”; me perdoe. Esqueci maravilhas filipinas como os Tielman Brothers.)
Mas depois de ver esses dois vídeos entendi que o rock and roll, na verdade, é música de branco. Sempre foi música de branco. Eu é que não tinha percebido.
A maneira mais simples de demonstrar isso é fazendo uma pergunta simples: tirando Jimi Hendrix, e em menor medida Phil Lynott do Thin Lizzy, qual artista negro chegou ao estrelato tocando rock nos anos 60 e 70 (vou poupar pixels lembrando que Ike e Tina Turner, Prince, Michael Jackson faziam outro tipo de música, e que artistas como Lenny Kravitz e Living Colour são já dos anos 90, ainda assim exceções que confirmam a regra)?
Não tem. O rock se tornou domínio de golden gods como Robert Plant.
A verdade é que a música negra evoluiu por caminhos separados a partir do momento em que as canções de Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino caíram no gosto do consumidor jovem branco. Essa primeira onda se esgotou muito rápido. Por maior que seja o impacto de cada um, não dá para esquecer o fato de que a obra de qualquer dos pais do rock, brancos ou negros (ou filipinos, antes que eu esqueça novamente), se esgota em uma coletânea de grandes sucessos. Ouça o último disco de Chuck Berry, de 2017: é a mesma música que ele fazia 60 anos antes — uma das faixas se chama Lady B. Goode, por sinal. O mesmo vale para o último álbum de Jerry Lee Lewis.
Mas a música negra não parou ali. Ela continuou evoluindo, por caminhos divergentes. Soul, funk, disco, West Coast Sound (nesses dois últimos casos, sejamos justos: dessas desgraças ninguém briga pela paternidade, né?), hip hop, rap. O rock ficou relegado aos branquelos.
É por isso, por essas limitações, que já no comecinho dos anos 60 aquilo que era revolucionário em 1955 tinha degenerado no twist — eu repito, twist não é música que se dê ao respeito.
Em menos de cinco anos, toda uma geração — Berry, Richard, Jerry Lee, Carl Perkins, Everly Brothers, Gene Vincent, o próprio Elvis — não tinha nada de realmente novo a dizer. Foi preciso que meninos da classe trabalhadora da Inglaterra e uma nova geração americana, como Bob Dylan e os Beach Boys, reinventassem essa música para que ela ressurgisse como algo completamente diferente e maior, agora melódica, harmônica e liricamente mais sofisticado, com uma mensagem mais complexa que ajudaria a dar voz a uma geração e elevaria o que era apenas um gênero musical a um fenômeno cultural e de transformação social.
E aí eu lembro da moça de voz chata que fez um vídeo explicando que rock é música negra.
O vídeo apareceu para mim por acaso, e eu já ia mudar para algo que me interessasse mais — como fazer mudas de fruta-pão, por exemplo, negócio difícil dos infernos — quando a vi cair numa armadilha.
Ela falou de Hound Dog.
Você conhece Hound Dog. Se não conhece, não sei como chegou até aqui, e muito menos por quê. A moça usava a canção para mostrar como a indústria branca roubou o talento dos negros. Hound Dog foi lançada por Big Mama Thornton — por sinal, heroína adequada ao resgate pelos novos tempos, preta, gorda, lésbica e talentosíssima; então veio aquele matuto sórdido, um tal de Elvis Presley, e como ele era branco e bonito e tinha uma pélvis reboculosa, roubou a música e fez dela um sucesso absurdo. Ah, ladrão safado.
O problema é que Hound Dog é o exemplo perfeito de tudo o que escrevi até aqui. A canção circulava por aí havia alguns anos antes que Elvis a transformasse num clássico absoluto do rock and roll. Eu gosto muito da versão de Big Mama, mas são canções completamente diferentes. E basta ouvir as duas versões para entender perfeitamente tudo o que tentei dizer até agora.
Hound Dog , no entanto, não é a obra de um pobre bluesman que vendeu a música a um produtor esperalhão por duas mariolas e um cigarro Iolanda. Foi composta por dois garotos judeus de Nova York, Jerry Leiber e Mike Stoller. Compositores, aliás, de boa parte dos maiores clássicos do rock and roll.
A versão de Thornton, para início de conversa, não é rock and roll. É rhythm and blues — tecnicamente é um clássico blues de 12 compassos. É uma versão adorável, sensual, ostensivamente sexual — é a moça reclamando de um malandro que se aproveitou dela até onde pôde—, cheia de swing, feita para que você rebole sua cintura bem encostado à cintura de quem você quer chamar, mais tarde, de cachorrão ou miseravona. Uma das gravações de Thornton, com a banda de Muddy Waters, é especialmente brilhante.
Mas o que Elvis traz é outra coisa. O menino de Tupelo deu a essa canção uma agressividade, uma ansiedade, uma urgência que está para as versões anteriores como o pós-punk do Nirvana está para o bubblegum rock de The Archies. Comparar as duas versões é como comparar Barry Manilow e Dead Kennedys. Elvis dá, ali, expressão à angústia adolescente. Reduzindo a letra à expressão do desprezo e mágoa, tirando o caráter sexual e dando a ela uma camada de ódio, indignação e revolta que não havia na versão original, Elvis canta em um frenesi que é a melhor definição do que é o rock and roll.
Um crítico cujo nome não lembro dizia que não sabia definir o que era rock, mas sabia identificar um quando ouvia. Ele devia estar se referindo a essa canção.
O mais triste nisso tudo— e talvez o que realmente importa — não é que esse seja um perfeito exemplo da ineficiência dessas tentativas de reescrita da história a partir de uma ótica identitária, que só conseguem o efeito contrário ao que queriam demonstrar. É que depois dessa separação essas vertentes voltariam a se encontrar. É o que se ouve hoje, em grande medida. Uma música cada vez mais repetitiva, derivada, dependente de padrões pré-existente em algum computador. Tão ruim que dá até a impressão de que as pessoas estão buscando algum sentido para sua vida espiritual quando brigam para ver quem é o pai de um filho bastardo chamado Rock.