Mamma África

No começo de 2000 uma matéria na Veja me deixou ao mesmo tempo fascinado, curioso e estupefato.

Ela contava que a Somália tinha, simplesmente, colapsado. Não havia mais Estado. O país tinha chegado à anarquia absoluta.

Nos últimos dez anos a Somália tinha sido sinônimo de fome e de caos; era mais ou menos o tempo que se passou desde que perdeu seu governo central.

A reportagem falava com pessimismo sobre sua situação. Nos últimos tempos pequenos enclaves de poder vinham se organizando dentro do seu território, onde clãs conseguiram se impor. A partir deles pequenas cidades-estado pouco a pouco iam se formando e se consolidando.

E era isso que me maravilhava, me espantava e me deixava com a sensação de que sou testemunha de tempos maravilhosos.

A África vem revelando tantas tragédias nos últimos anos que todo o mundo praticamente admite não saber se há uma solução possível. Aids, Ebola, guerra civil com requintes eventuais de canibalismo, tudo isso sai de lá. Mas a solução estava na cara de todos, e a reportagem não via isso.

Qualquer pessoa sabe que a grande tragédia da África foi o colonialismo. A Europa dominou várias regiões e estabeleceu divisões administrativas a seu bel-prazer, pouco importando a história e as etnias daquela região. Quando o modelo se esgotou e as colônias conseguiram sua independência, herdaram essas fronteiras e composições étnicas artificiais. Deu no que deu: hoje em Ruanda, por exemplo, tribos rivais se massacram mutuamente graças a essas divisões arbitrárias

Mas o mais importante, mesmo, é que os africanos herdaram uma cultura que não era a sua. Não se respeitou o processo de formação histórica daqueles povos, que saltou etapas e pulou da Idade da Pedra para um regime democrático que eles não criaram nem jamais conseguiram assimilar totalmente.

Ao descer ao fundo do poço, a Somália finalmente começava a arrumar a casa. Jogava para o alto toda a história da colonização e recomeçava do nada.

Era um processo fascinante, com muitos pontos em comum com a formação dos Estados nacionais europeus após a queda do império romano: fracionamento da unidade original, formação de pequenos Estados de poder reduzido. Acima de tudo era um processo que poderia restaurar as configurações prováveis das nações africanas, retomando o curso da história de um continente que culturalmente ainda tem muito de pré-histórico. As nações que se formariam teriam assim uma base consensual e, finalmente, legítima.

Essa evolução se estendeu por mais de 1000 anos na Europa, mas poderia se desenrolar em algumas décadas na Somália. Na sua desgraça, ela estava apontando o futuro.

E foi ao notar isso que percebi a maravilha destes tempos em que vivemos. A multiplicidade de um mundo que pode ser tudo, menos um só.

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