Glauber

O artigo de Arnaldo Jabor ontem em O Globo fala sobre Glauber Rocha.

Eu não gostava de Jabor, em tempos idos. E confesso que ainda não gosto dos seus filmes. Mas nos poucos momentos em que ele esquece seu ódio à esquerda, cada vez mais hidrófobo, e a qualquer coisa fora do mundo onírico do Leblon, ele às vezes se revela um excelente crítico de costumes. Não sei se acho isso porque fiquei mais inteligente ou se simplesmente guinei em direção à direita, espectro onde ele se localiza. Não sei e não faço questão de saber.

Sua análise de Glauber é uma das mais corajosas e lúcidas que já. Assim como Lennon, Glauber virou mito depois de sua morte, e mitos têm relações complexas demais com suas próprias obras. Jabor diagnostica corretamente o sujeito, colocando na base de toda a sua trajetória o seu narcisismo — embora eu acredite que quem mais reclama do narcisismo dos outros sejam aqueles empolgados demais com o seu próprio. De qualquer forma, ao menos Jabor consegue separar o joio do trigo em sua obra, racionalmente e sem excessos.

Meu pai era amigo de Glauber. Até o dia em que, num bar da rua Banco dos Ingleses, perto do Campo Grande, perdeu a paciência e disse que ele era um filho da puta, pelo seu apoio entusiástico à “abertura” de Geisel. Um amigo comum, Joca (autor de “Memórias das Trevas”, livro-denúncia sobre ACM), precisou separar a briga.

Meu pai havia sido preso em 64 e não tinha nenhum motivo para dar as boas vindas a qualquer medida do regime. De qualquer forma, quando Glauber morreu, meu pai chorou. E nunca deixou de chamá-lo pelo que ele realmente era: um gênio.

Durante algum tempo fiquei pensando se meu pai não estava errado e, afinal, Glauber estava certo. Afinal, o que Glauber previa aconteceu.

Mas Glauber estava errado. Porque o problema, ali, não era saber se a abertura iria acontecer ou não, ou se Golbery era um gênio da raça ou um simples assassino. A questão era que, sob quaisquer ângulos, Glauber estava metendo os pés pelas mãos. Sob o ângulo pragmático da realpolitik era preciso manter aquele fiapo de resistência que restava depois que a ditadura trucidou os guerrilheiros loucos. E abertura não era só vontade de Geisel, era uma exigência imposta pelo desgaste do regime. Ao apoiar Geisel, Glauber estava não apenas fazendo uma besteira do ponto de vista político, mas talvez mesmo prejudicando a própria evolução política do país, dando à ditadura um mérito que não era seu.

Quando menos, por uma questão de coerência e dignidade, a todos aqueles que haviam protestado contra a ditadura só restava continuar a resistência e forçar a abertura.

Nada disso, no entanto, tira o brilho do sujeito. Gostando ou não dos seus filmes — e eu não gosto da maioria —, ele era o melhor cineasta que tínhamos. Era um gênio, sim. E como eu já escrevi em algum lugares, gênios podem fazer besteiras de vez em quando.

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