Quando as escolhas são possíveis

Uma entrevista do Cabo Anselmo em nomínimo termina com uma frase poética: “Viver vale a pena, sempre que as escolhas sejam possíveis.”

Escolhas são complicadas. E a verdade é que eu não queria estar na pele do Cabo Anselmo. Porque não gostaria de ter que fazer as escolhas que ele fez, e muito menos as que ele pode fazer agora.

A história do Cabo Anselmo é uma das mais conhecidas da crônica da ditadura de 64. Nas últimas décadas foi considerado um agente provocador infiltrado nos movimentos de esquerda desde o início. A história que se conta hoje é outra: só depois de preso pelos carniceiros de Sérgio Fleury em 1971 é que passou a ser um agente infiltrado.

Eu não tenho certeza de que dá para julgar um delator, porque só Deus sabe o que a tortura é capaz de fazer a uma pessoa. Não estou convicto de que alguém possa ser condenado por ter dedurado companheiros num pau de arara; mas por outro lado lembro que, quando era militante comunista, eu fazia questão de avisar: “se acontecer um golpe podem me esquecer, porque se eu for preso não precisam nem me bater: é só olhar feio para mim que eu abro o verbo.” Era brincadeira porque acreditava em um golpe tanto quanto acredito em duendes, mas tinha seu fundo de verdade: eu sabia dos meus limites e da minha proverbial frouxidão. E não acho que alguém tenha entrado na guerrilha sem saber no que estava entrando.

O caso do Cabo Anselmo, no entanto, é ainda mais complicado. É difícil absolver alguém que atuou durante tanto tempo em segredo, passando informações, traindo a confiança daqueles que acreditavam nele, e por cuja responsabilidade direta ou indireta tantos morreram. Não dá para deixar de pensar que em algum momento ele poderia ter alertado seus companheiros, exposto sua situação. E então pensamos no medo em que esse homem vivia, na provável sensação de que sua vida pertencia àqueles que o tinham torturado. Mas ele poderia fazer a escolha de tentar fugir a eles, de escapar de algum modo.

Nada disso é fácil ou admite respostas maniqueístas. De qualquer forma, ele fez suas escolhas.

Hoje o cabo Ansemo vive escondido, paranóico, assombrado pela perspectiva de ser identificado e sofrer uma revanche dos guerrilheiros sobreviventes. É improvável, claro, mas isso não impede que sua vida seja definida por uma palavra: medo. Hoje as escolhas possíveis para ele são pequenas, mínimas (e ao mesmo tempo maiores que para aqueles mortos graças às suas informações). É contraditório que, provavelmente, tudo o que ele fez tenha sido numa tentativa insana de preservar sua vida — essa mesma, pequena e oprimida que leva hoje, uma não-vida de medo constante.

Eu não costumo ter pesadelos à noite, e meu leque de escolhas, por mais equivocadas que sejam as que eu faça, é muito grande. E por isso eu não queria ser o Cabo Anselmo. Viver vale a pena quando as escolhas são possíveis.

3 thoughts on “Quando as escolhas são possíveis

  1. é uma situação delicada.Mesmo pra quem não viveu nessa época o mais sensato é admitir que não podemos julgá-lo…sabê-se lá pelo que ele passou e o que ele sentiu…de todo modo é triste que suas escolhas o tenham levado a isso…ou seria isso que ele viria a ser com ou sem essas escolhas?

  2. Gostei muito do teu texto, Rafael! É mesmo delicado julgar as escolhas de alguém, acho que abordastes super bem o assunto. 🙂

  3. O cabo Anselmo foi designado traidor pelos terroristas, mas outro traidor muito mais importante é acochambrado. Colocaram a culpa da morte de 23 terroristas do Molipo no cabo Anselmo, mas reconhecidamente ele não tinha cacife para tal. Todos sabem que ele, depois de ser preso, concordou em agir contra os terroristas, tornando-se treaidor. Mas ficou só nisso. O outro traidor, citado por Geová Assis Gomes, antes de expirar o ultimo suspiro, em Guaraí, PA, eles, os terroristas, não levam em conta, pois o traidor vale mais atualmente ao PCdoB do que se desmoralizado. O mesmo acontece com Genoíno e Pedro Albuquerque, traidores reconhecidos, denunciados por João Amazonas Pedroso: eles valem mais atualmente agindo e roubando do que se fossem considerados traidores. Quem será o traidor do Molipo. Descubram!

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