Finalmente fui assistir a “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson.
Nas últimas semanas resisti à tentação de escrever qualquer coisa sobre ele. Pela polêmica que o filme causou, era difícil ter qualquer opinião que não fosse tendenciosa. A grande maioria das críticas era negativa. O aspecto mais debatido na internet era o anti-semitismo de Gibson. Depois vinha a violência extremamente gráfica e desnecessária.
Qualquer filme sobre Cristo (talvez com a exceção do belíssimo — e contido — “O Evangelho Segundo Mateus”, de Pasolini) cria polêmica. Até o filme do Zefirelli recebeu sua cota de protestos, ao mostrar Maria parindo com dor, o que cá para nós não é bem digno do Filho do Homem. O de Scorsese foi execrado por mostrar um Jesus pretensamente histórico diferente do retratado na Bíblia. E bobagens pretensiosas como Je Vous Salue Marie, de Gordard, porque zelotes de qualquer religião têm dificuldades com seus antolhos.
O tema é difícil, por tratar do que há de mais irracional em um homem: fé. Quando um filme coincide com o que nós pensamos é brilhante. Quando retrata uma outra visão, é ruim, canalha, o que for. Por exemplo, quando Gibson fez “Coração Valente”, não houve gritaria quanto às deturpações históricas absurdas do filme. Se bem que obviamente William Wallace não tem a importância de Jesus.
Anti-semitismo
Em toda a polêmica gerada pelo filme, as acusações de anti-semitismo foram as que mais chamaram a minha atenção.
Um maluco (Leon Wieseltier, na New Republic) chegou a ver anti-semitismo na barba grisalha e voz grave de Caifás. Cathy Young deplorou a forma como retratam Barrabás — um assassino sujo, asqueroso e de má aparência.
É sempre assim quando alguém retrata judeus como menos que santos: algum idiota radical, o equivalente judaico de Osama bin Laden, grita “Holocausto!”.
A histeria da extrema-direita judaica, de vez em quando, é impressionante. O filme pode ser tudo — mas não é anti-semita. Ou pelo menos, não mais anti-semita que os Evangelhos. Para o filme é necessário representar os fariseus daquela forma, porque a oposição a eles faz parte do arcabouço filosófico do cristianismo. Esse pessoal esquece que Jesus não tentou criar uma nova religião, mas renovar o judaísmo. O cristianismo foi criado por São Paulo.
Os histéricos falharam em perceber uma coisa: com exceção da mulher de Pilatos, todos os personagens de bom coração são judeus. O povo que chora ante a passagem de Cristo na via-crucis é judeu. O homem que o ajuda a carregar a cruz é judeu. Maria e Maria Madalena são judias. E, se alguém esqueceu isso, Jesus é judeu.
Um advogado brasileiro (se eu lembrar que ele também é judeu posso ser acusado de anti-semitismo por esses histéricos, portanto não vou fazer isso) pediu a censura do filme com base no desrespeito à verdade histórica. Embora eu ache injusto esperar inteligência de qualquer advogado, esse passou dos limites. Porque não é possível falar em verdade histórica em se tratando dos Evangelhos. E, se for, a verdade é que “A Paixão de Cristo” se ateve com razoável exatidão à única fonte conhecida: os Evangelhos.
Por exemplo tome-se Barrabás. Se hoje ele é considerado uma espécie de proto-revolucionário, talvez um terrorista, a forma como os evangelhos o retratam é basicamente a de Gibson. Fizeram isso para realçar a heresia dos judeus ao preferirem-no em detrimento de Jesus. “A Paixão de Cristo” não é sequer o primeiro filme a retratá-lo assim: se lembro bem, o Barrabás do filme de Zefirelli não é mais bonito nem mais nobre.
É fácil chamar o filme de Gibson de anti-semita e deixar de lado o principal: o argumento do filme não é dele. Acontece que os Evangelhos pintam os judeus negativamente, por uma exigência histórica e teológica da própria estrutura do cristianismo em seus primeiros séculos. De modo geral, o filme não me pareceu mais anti-semita que os Evangelhos, ou pelo menos que a leitura mais comum que se faz deles. É o que se espera de um católico reacionário como Gibson. Talvez esse seja seu problema. Ou não: Eisenstein tinha sua agenda ao fazer “O Encouraçado Potemkim”. É o que se espera de um comunista revolucionário como ele. O filme é menor por causa disso?
De qualquer forma, um ponto precisa ser ressaltado: os mais óbvios bandidos do filme são os carrascos sádicos que tiram, literalmente, o couro de Jesus. E eles são romanos.
Violência
O Cauê definiu o filme como uma carnificina. Outros críticos menosprezaram Gibson dizendo que não poderiam esperar outra coisa do ator de “Máquina Mortífera”, que ele transformou o filme em um espetáculo sado-masoquista dirigido a hemófilos (acho que essa palavra não existe com esse significado; pelo menos não no Aurélio ou no Houaiss. Se for esse o caso acabei de criar uma tara: pessoas que se excitam sexualmente com sangue. O Google ficaria orgulhoso de mim e diria “eu sempre soube que esse rapaz entendia do babado…”).
Mas é preciso lembrar qual a intenção de Gibson. Ele quer lembrar a humanidade e o sofrimento de Jesus, distanciando-o um pouco do Cristo asséptico pendurado nos altares, com apenas os joelhos lanhados, a lançada nas costelas, as chagas da crucifixão e um filete de sangue correndo da coroa de espinhos. Ele pretende ressaltar a dor de Jesus, tornando real a frase “Ele morreu por nós”. E em mundo cada vez mais cético morrer é fácil, difícil é levar porrada uma noite inteira. A longa seqüência de açoites, dentro desse ponto de vista, é admissível.
O filme só cai no exagero durante a via-crúcis. Ali, sim, há provavelmente uma inverdade histórica. A crueldade da crucificação estava em deixar o condenado agonizar lentamente até sua morte por asfixia; bater daquele jeito só apressava a morte do sujeito, e tirava a graça do espetáculo. A partir do momento em que Jesus inicia sua caminhada rumo ao Gólgota o filme passa a merecer todas as críticas que recebeu.
No fim das contas, a polêmica sobre as questões ideológicas deixa de lado algo importante: o filme em si. Fala-se da polêmica, do efeito que o filme faz, mas é raro ver alguém falando do filme, mesmo.
Não é exatamente uma obra-prima. Tem uma boa fotografia, e um argumento que deve ser bom, porque faz sucesso há 2 mil anos. Mas como disse o Bia, um dos poucos a fazer alguma apreciação estética sobre o filme, é irregular. Alterna bons momentos com clichês bobos.
O Bia destacou a cena da deposição (que é nitidamente inspirada num quadro de Caravaggio); enquanto isso, eu só consegui me identificar emocionalmente com o filme na hora em que Maria acode Jesus e lembra de um pequeno episódio da infância. Foi a única cena em que eu, particularmente, consegui sentir a dor da mãe.
E quer saber de uma coisa? Para mim, o verdadeiro vilão do filme não é Pilatos, Caifás, o povo judeu ou os centuriões romanos. Não é sequer aquele diabo andrógino e de olhos caucasianamente azuis. O verdadeiro vilão é aquele João, que ao lado de Maria e de Maria Madalena assiste a tudo com uma cara de urubu, mesmo sendo “o discípulo que Jesus amava” (expressão recorrente nos Evangelhos que muita gente usa como evidência de que Jesus era gay).
Pelo menos naquela sessão, ninguém chorou. Mas todo mundo saiu calado do cinema.
pelo menos o gibson teve a decência de não fazer ele mesmo o papel de cristo, disse um amigo. em uma discussão recente um camarada saiu-se com essa: o buda do bertolucci nos causa uma sensação tão boa – e a história é tão onírica – que contrapor os dois filmes talvez aponte onde está o problema de toda civilização ocidental; a direção moral simbolizada em um homem incompreendido sangrando numa cruz. brrrr.
Ainda não fui assistir ao filme.
Acho que faltou um “não” nesta parte:
Os histéricos falharam em (não)perceber uma coisa:
Estou certo?
E essa de jesus ter sido gay é nova para mim.
Então não posso amar um homem?
Também foi aquela cena, a de Maria socorrendo Jesus quando criança, a que mais me emocionou. Confesso que aí, sim, chorei.
Ah, aquela história de João ser o mais amado tem outra versão. Na verdade chamou a atenção a um conjunto de estudiosos do evangelho, na Europa, o fato de um discípulo de um mestre que pregava a humildade, se auto-proclamar o “mais amado”, como João o faz no seu evangelho. Para esses estudiosos, Jesus era esposo de Madalena e João teria sido filho dele. Em muitas discrições pictóricas, João aparece mesmo como um jovem adolescente, o que reforça ainda mais a tese.
Há mais. Um bom pai e esposo da época e pela tradição judaica, haveria que cuidar de três tarefas indispensáveis em relação aos filhos: ensinar-lhe uma profissão – Jesus era carpinteiro -, iniciá-lo nos ensinamentos da Lei, sua doutrina – Jesus era profundo conhcedor dela, vide a cena da discussão dele com os doutores do templo – e finalmente, o pai deveria arranjar uma esposa para o filho. Não se acredita que José tenha negligenciado justamente neste ponto.
Mais. Note-se que – até Mel Gibson retratou isso – mesmo da cruz, Jesus chama à Maria e entrega João para ser seu filho e entrega Maria a João como sua mãe. Nada mais naturtal de que um pai moribundo entregar o filho à avó para ser cuidado por ela e até mesmo para substituí-lo por sua morte.
Além disso, a pedra angular do cristianismo é o dogma da ressurreição. Por que uma vez ressuscitado, Jesus aparece primeiramente para Madalena e pede-lhe que ela comunique aos outros discípulos a sua volta. Por que não Pedro, Maria ou mesmo João? Porque ela era a mulher a quem ele amava – respondem os estudiosos.
É o mesmo o que os evangelhos apócrifos dizem. Eles sustentam que Jesus tinha um avida sexual normal e chegara a casar-se com Maria Madalena. Defendem a tese de que Madalena seja a nova Eva, o novo elemnto de comunhão de Deus com os homens, a noca arca da aliança… Vá discutir.
Pode-se não acreditar em nada disso, mas não se trata de questões estapafúrdias.