Cidades pequenas sempre têm seus loucos de estimação. São conhecidos por todos, passam a fazer parte do cotidiano e, quando desaparecem, demora até que alguém se pergunte o foi feito dele, pergunta que raramente tem resposta. São ubíquos e conspícuos, se integram à paisagem e, às vezes, à lenda de cada cidade, como Gentileza atravessou a baía para se integrar à do Rio de Janeiro.
E estes são dias de espanto, porque uma lenda está nascendo em Aracaju.
Ela é uma mulher em seus 50 anos. É negra, mas em algum lugar de sua loucura decidiu que isso pode ser disfarçado. Passa pancake em todo o rosto, e assim cria uma máscara grosseira, óbvia e agressiva. Talvez quisesse se tornar uma boneca de louça, mas a imagem mais fidedigna é a de um aborígene australiano. Se a blusa que está usando deixa os ombros à mostra, ela também os maquia, outra camada grossa de pancake colocada de forma descuidada. Seus olhos, que podem denunciar a si mesma diante de um espelho, estão sempre escondidos atrás de óculos escuros.
Vaga principalmente por centros de compras: shopping centers, hipermercados. Sua loucura é alimentada pelo consumismo de uma sociedade à qual ela não se julga adequada. Não parece comprar nada, jamais; é como um fantasma que contempla, distante e marginal, a lei da oferta e da procura.
Ela já começou a se tornar conhecida, mas ainda causa espanto. As pessoas olham constrangidas, disfarçadas, assustadas ainda; e tentam uma explicação racional, porque ainda não desistiram de entender.
Mas não vai demorar até que desistam de explicações que nunca virão, ao menos não satisfatoriamente, e apenas se acostumem à sua presença. Sua lenda começa a ser criada, e já dizem que ela era professora. É só o começo; ainda é cedo para a lenda tomar sua primeira forma a partir de pequenas informações biográficas. E mais cedo ainda para que dispense até mesmo esses fiapos de verdade, e adquira dimensões fantásticas e irreais.
Para que isso aconteça é preciso que as crianças de hoje cresçam. Porque apenas crianças não se incomodam com a loucura alheia; são elas que vão dar a essa mulher o seu caráter legendário e sua integração à rotina da cidade, ao crescerem com a sua visão bizarra, às vezes fantasmagórica.
Ela tampouco tem um nome. Não é a louca da máscara, nem a maluca dos shoppings. É uma louca pública ainda muito recente, e talvez a cidade tenha crescido demais e não esteja mais preparada para seus loucos. Enquanto isso ela vaga pelos shoppings, pouco se importando com a impressão que causa nas pessoas, porque não são elas que a aterrorizam, é o espelho.
Estes são mesmo dias de espanto.
Em São Paulo, cidade grande, conheci um monte: tinha o coreano (japonês, chinês, sei lá!) que usava o cabelo todo engomado e vivia de bicicleta, com um cartaz que pedia dinheiro pra voltar pra terra dele. O problema é que o cartaz também era escrito na lingua dele. Tinha a senhora de roxo, uma mulher gorda que dormia sentada nos pontos de ônibus, apoiando a cabeça nos próprios seios fartos. Tinha o Jacaré, que não era maluco, mas um personagem conhecidíssimo do Exército da Salvação, que usava sua extrema simpatia nas noites para angariar fundos à instituição. Em Salvador, tinha uma mulher negra que atravessava a Praça Castro Alves e descia à Baixa do Sapateiro, sempre próximo ao meio-dia, completamente nua, segurando a roupa dobrada. Em Assis (SP) tem o milhonário, um sujeito coberto de ouro, com pinta de fazendeiro e que só conversa sobre seus investimentos de milhões de dólares (que real é dinheiro de pobre! – diz). No Embu (SP) tinha o Dunga, o último hyppie e verdadeira enciclopédia do rock. Na mesma Embu tinha, também, o homem invisível, um negro que não falava com ninguém mas andava onde bem entendia. Uma vez o encontrei em uma padaria de Copacabana. O proprietário partia pra cima dele, pois havia pego um pão e ia saindo sem pagar. Ele se espantou (!): “Ué, você tá me vendo? Mas eu sou invisível…!” Pedi ao português que o deixasse ir e paguei por ele. E lá se foi o pão que flutuava pela Av. N. Sra. de Copacabana, desaparecendo aos pedaços.
Ciao
A loucura alheia me fascina, quando encontro um desses loucos numa das esquinas da vida, me pego imaginando qual será a realidade em que ele vive…pois com certeza é diferente da minha e por que não dizer, provavelmente muito melhor?
Pois que fantasia não é melhor que nossa realidade nua e crua?
Temos algumas histórias boas por aqui também, tinha um, já falecido, que era milionário, antes de enlouquecer sempre fora conhecido pela pão-duragem, depois, com a idade a coisa ficou patológica. Morava sozinho em uma barraquinho caindo aos pedaços, vestia-se em trapos e todo santo dia ia pra Agência da Caixa, onde a mais de vinte anos tinha conta, e passava o dia todinho sentado em um cantinho, bebendo cafezinho e lendo os jornais do banco. Olhava desconfiado para todos e, vez por outra, ia até o gerente perguntar se o dinheiro dele estava bem escondido e se não tinham dado pra ninguém por engano. Ficava lá, “vigiando” seu dinheiro. Como era milionário e não incomodava tanto assim, ninguém cogitava a hipótese de contrariá-lo, tinham medo dele “pedir o dinheiro de volta”. O que vez por outra dizia estar pensando em fazer. Morreu feito miserável e não deixou herdeiros.
Outra história é a do “Marcha-ré”, este está vivo até hoje e, de vez enquando, te para na rua pra perguntar se você gosta de “pomba”. hehehe Ele anda com um pedaço de pau na mão que usa pra ameaçar as crianças que gritam: “Engata a ré! Engara a ré!”, toda vez que ele passa. A história dele já virou lenda, não dá pra saber o que é verdade ou mentira, dizem que ele era normal e enlouqueceu ao pegar sua mulher na cama com outro. Os amantes fugiram e, como dizem, ele foi dando “marcha-ré” na vida, perdeu emprego, casa, família e passa seus dias andando pelas ruas sozinho.
O último e o “Gigante do pé-de-feijão”, mais um solitário, sem amigos, sem família. Formou-se em direito na mesma faculdade que eu, só que na década de 60. Não se deu bem na profissão e acabou transformando sua casa em um sebo para sobreviver. Esse não era louco, apesar de parecer, pois, nunca tomava banho, o que tornou seu fedor lendário. Também nunca conversava com ninguém, era grande, gordo, careca e usava sandálias franciscanas. Daí o apelido de “Gigante do pé-de-feijão, pois, parecia mesmo com as ilustrações da história infantil. Fechou o sebo e mudou-se da noite para o dia, após décadas naquela vida. Ninguém sabe o destino.
Bom, estão aí mais umas historinhas pra sua coleção.
Abraço,
Roger
“(…) e talvez a cidade tenha crescido demais e não esteja mais preparada para seus loucos.”
Também tenho essa impressão.
Pra ser sincero, eu não consigo imaginar tais pessoas existindo de verdade. Não imagino essa mulher indo para casa e preparando o jantar, por exemplo.
Um outro caso é o do senhor que possui problema de pele e vive tomando chopp sozinho no shopping, você conhece? Como se não bastasse, ele fica lá mussitando coisas para seus amigos imaginários.
O bizarro disso tudo é que nunca presenciei uma interação entre estas pessoas e o mundo real. São sempre sozinhas, prisioneiras de suas maldições. Eu nunca vi, por exemplo, este senhor comprando um chopp na praça de alimentação. Também nunca o vi perguntando as horas. É como se fosse uma espécie de holograma previamente programado encher o mundo.
Não seria este senhor marido da tal mulher do pancake? Imagina, então, os dois fazendo sexo…
Vou vez em quando a Aracaju e teu retrato tá primoroso. E teu texto está no ponto, enxuto e sem falso lirismo. Realidade que toca. Ia contar também sobre alguns loucos em minha cidade, mas acho que já temos loucos demais nestes comentários. Interessante o carinho que se tem por estas figuras. Carinho distante, claro! Todos as conhecem, sabem de suas histórias, mas se mantêm longe de suas loucuras. Seriam os loucos o ponto de referência para a comprovação da nossa sanidade? Uma coisa é certa, estes loucos mansos já sabem bem quem são e pouco se importam com o que pensem, enquanto nós precisamos tanto de aprovação que seguramos nossas loucuras. Abraços.
Rafael.
Com todo o respeito que merece a senhora do pan-
cake pois ela desperta um carinho meio inexplicável pela irreverência, um certo “tô nem aí” pro resto do mundo, arrisco um palpite,: Não seria ela uma versão tupiniquim de Maicon Jackson??
Um abraço
Isadora.
Há alguns bons anos, em Lorena, cidadezinha na época até que pacata do interior de São Paulo, uma figurinha pitoresca andava pelas ruas . Flores nos cabelos, nos pulsos, e até na fina canela, tudo adornado com flores. Duas acentuadas manchas de rouge vermelho intenso na face. Sua labuta diária era vasculhar latões de lixo- na época não existiam os sacos de reciclagem- catando objetos de cores fortes que ia acumulando num carrinho de madeira bem rústico . Nome de Registro: Dolores, pelo que contavam os mais antigos. ” Maria Primavera” era seu codinome. Ninguém nunca soube como e de onde ela surgiu porque nunca dizia coisa com coisas e então foi ficando por isto mesmo. O fato é que ela só incomodava mesmo alguns rabuzentos comerciantes que esbravejavam porque ela espatifava todo o lixo nas calçadas. De resto, todos respeitavam seu estilo próprio de ser. Tinha se tornado um hábito já, e, o hábito é o precursor da indiferença.
Numa tarde de verão foi encontrada , caida no chão. Tentaram reanimá-la, mas nada mais pode ser feito.
A ausência de passado, parentes, amigos fez do ritual de suas despedidas algo pálido, opaco sem honrarias ou homenagens. Ausência absoluta do colorido das flores.
Ficou ali grande parte do tempo só. Alguns poucos curiosos entravam, observavam e saiam rapidamente.
Sua última imagem, a que restou, se tingiu de um inóspito inverno
É a vida… que num certo sentido embute a morte.
PS: Obrigada Rafael. Há muito gostaria de ter escrito algo sobre esta inestimável figurinha que povoou minha infância. E você ofereceu o momento…rsrs
A lenda já tem um fotolog:
Velha Punk